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terça-feira, 17 de setembro de 2013

NA VÉSPERA DE NÃO PARTIR NUNCA


Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel,
Com acompanhamento involuntário de esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Há quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens, físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!

Álvaro de Campos, in "Poemas" 

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

MULHER



Para entender uma mulher
é preciso mais que deitar-se com ela…
Há de se ter mais sonhos e cartas na mesa
que se possa prever nossa vã pretensão…

Para possuir uma mulher
é preciso mais do que fazê-la sentir-se em êxtase
numa cama, em uma seda, com toda viril possibilidade… Há de se conseguir
fazê-la sorrir antes do próximo encontro

Para conhecer uma mulher, mais que em seu orgasmo, tem de ser mais que
amante perfeito…
Há de se ter o jeito certo ao sair, e
fazer da saudade e das lembranças, todo sorriso…

- O potente, o amante, o homem viril, são homens bons… bons homens de
abraços e passos firmes…
bons homens pra se contar histórias… Há, porém, o homem certo, de todo
instante: O de depois!

Para conquistar uma mulher,
mais que ser este amante, há de se querer o amanhã,
e depois do amor um silêncio de cumplicidade…
e mostrar que o que se quis é menor do que o que não se deve perder.

É esperar amanhecer, e nem lembrar do relógio ou café… Há que ser mulher,
por um triz e, então, ser feliz!

Para amar uma mulher, mais que entendê-la,
mais que conhecê-la, mais que possuí-la,
é preciso honrar a obra de Deus, e merecer um sorriso escondido, e também
ser possuído e, ainda assim, também ser viril…

Para amar uma mulher, mais que tentar conquistá-la,
há de ser conquistado… todo tomado e, com um pouco de sorte, também ser
amado!”

Carlos Drumond de Andrade

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

VOU SURPREENDER-TE

Manhã,  toca o telemóvel. Mal tivera tempo de acordar e ir à varanda espreitar a ipomeia, que a cada amanhecer, continua a saudar-me efusivamente em azul.

A “patroa” a esta hora?! Ri-me. Sai trabalho extra para a tarde. Atendo: “Bom dia. Como está? Precisa de alguma coisa?” Pois claro que precisava. “Pode contar. Fique descansada.” “Obrigadinha, Isabel”.

Lembrei-me do Dr. Silvério, Diretor da Escola do Magistério Primário: “A culpa é sua. Na tropa não se pode ser bom sargento.” Muitos anos mais tarde o Professor Bruto da Costa disse-o de forma académica: “É muito orientada para a tarefa”…

Porque será que, tantas luas contadas, ainda não consegui ser promovida a oficial? Tantos anos depois, ainda continuo a sofrer de excesso de orientação? Não haverá chá, mezinha, comprimido, xarope, benzedura que cure a doença?

A esperança é em mim uma teimosia. Uma manhã, alguém telefonará: “Isabel, veste roupa prática e calça sapatos para todo o terreno. Traz os teus olhos de mata-borrão e a alma vestida de sorrisos. Passo aí a pegar-te. Hoje vou surpreender-te."

E vamos… vamos por aí, nem que seja a “caldo verde” pentear macacos, como dizia em bebé a minha filha mais velha.

WILD IS THE WIND

terça-feira, 10 de setembro de 2013

PRECISAS DISTO?

Quarta-feira, como noutro dia qualquer, desloquei-me ao Lar Emanuel, à hora do almoço, para ajudar a minha mãe na refeição. Porque era quarta-feira e o lar é uma associação também é esse o dia da semana escolhido por um grupo de amigos para aí almoçarem. O grupo é aberto e todos os que aparecem são, no mínimo, meus conhecidos, de alguns sou amiga, e com muitos partilho até ideais de vida. Coincidiu, por isso que eu e o RPP, cujo destino era o referido almoço de amigos, chegássemos quase em simultâneo, com uma ligeira vantagem de décimas de segundo para mim. Saí do carro e esperei que arrumasse, para o cumprimentar.

“Vens almoçar connosco?” – perguntou-me. Não, não ia. Na verdade nunca confraternizei naqueles almoços. Vá lá saber-se porquê. Porque não! “Vou dar almoço à minha mãe”.

“Ah! Precisas disso? - perguntou RPP – “e quando não estás?” “Quando não estou, não venho. Há cá imensa gente que a cuida bem” – respondi e o meu cérebro fervilhava com a questão “preciso disto?” “Preciso disto?” Sem atinar com a resposta à questão que nunca se me pusera. 

O RPP continuava “a minha irmã era assim com a minha mãe” “Acho que precisamos as duas” ouvi-me a responder. Uma resposta de consenso que achei equivaler a responder coisa nenhuma. Tínhamos acabado de entrar na portaria. Cumprimentei o sr. H. brincando com a camisola vermelha que vestia e adiantei-me ao RPP que ficou na conversa com este. “Vou andando. Vemo-nos lá em baixo” - e desci até ao refeitório.

A pergunta não me largou nessa tarde “preciso disto?”, Que me perguntava o RPP? Afinal a que chamaria ele “isto”? “Isto” era a visita diária a minha mãe, a ser entendida como quê? Catarse? Rotina? Penitência? Ali havia qualquer coisa que não me soava bem…

Sem querer vi-me sentada naquela mesa do refeitório, meia de esguelha, entre as duas Amélias, minha mãe e aquela outra, de quem fora vizinha em pequenina e a quem, para desespero de minha mãe, tratara sempre por tu, coisa que nem acontece com ela e que acabara por ser minha madrinha de casamento. Vivíamos em pequenas vivendas geminadas e contam, eu era pequena de mais para me lembrar, que saía do meu jardim e batia-lhe à porta. “O que queres?” “Não gosto do comer da minha mãe. Quero o comer do Quinzinho”. O Quinzinho era o marido, que também nunca teve direito a tratamento cerimonioso. E a minha mãe passava-lhe o meu almoço pelo muro do quintal que ficava nas traseiras da casa e eu comia regaladamente “o comer do Quinzinho”. E era uma festa quando ele chegava, mas assim que este despia o casaco e ficava em mangas de camisa... eu saía imediatamente. Vá lá saber-se porquê.

No outro lado do quadrado está a Dona Felicidade, desdentada e bem-disposta. Mingaram os maxilares e não teve direito a novas próteses dentárias, come tudo passado. Está mal da mão esquerda. Está a fechar-se e por isso tem de segurar sempre um rolo de ligaduras para evitar que piore. Ajudo-a quando precisa, parto-lhe o pão aos bocadinhos para a sopa. Em troca ela encomenda-me a alma: “merece o céu” “é muito boa senhora” e diz aquilo com um ar tão convicto que eu quase me sinto tentada a acreditar…. E rio-me “eu trato bem a Felicidade para a felicidade não se esquecer de me tratar bem a mim”. E ela percebe a brincadeira e também ri “Deus a proteja e aos seus” “Muito obrigada. Há de proteger e a si também”. No outro lado da mesa está a dona Adelaide. Uma senhora triste, só sorri e o sorriso ilumina-se quando reparto com ela algum mimo que levo para minha mãe.

Afinal o que acontece é que é muito fácil criar laços... É uma questão de disponibilidade afetiva. Algo que acontece porque sim.

“Isto” como dizia o meu amigo, não é uma questão de necessidade, nem minha, nem de minha mãe. É uma questão de afeto. Entre mim e a minha mãe há laços absolutamente inquebráveis de amor que se criaram ao longo de muitos anos. A minha mãe é o último "amor-perfeito" que me resta. Quero mimá-lo bem enquanto dura. Porque sim!

terça-feira, 3 de setembro de 2013

É SETEMBRO

“Venham amanhã” - sugeriram as amigas e os amigos que anualmente encontro naquela fila de barracas, em S. Martinho do Porto, no mês de agosto, quando, com as amigas de Leiria, me despedia disposta a partir. “A Patrícia oferece-nos o dia de bónus” – acrescentaram. A Patrícia é a concessionária que nos aluga a barraca de praia. “Não! Mês e meio de S. Martinho, chega! E despedimo-nos. “Adeus. Até à Festa da Senhora do Fetal” – Disseram, tal e qual como haviam dito o ano passado, para só nos voltarmos a encontrar, este ano, em pleno mês de agosto, na praia.

Antes o Rui fora a Turquel buscar queijadas à fábrica do pai e aconteceu outra confraternização. Tirámos fotos e viemos. Os outros ficaram. Possuem lá casas, não precisam de respeitar o calendário, mas para mim, já é tempo de repor as rotinas.



Desci até ao centro. A cidade continua despida, quase não há gente nas ruas, talvez por ser domingo, um domingo de sol, sem vento. E eu gosto da cidade despida da fauna habitual. Lembro-me sempre da cantilena “Que é que você vai fazer domingo à tarde?... Passear por aí, numa rua qualquer da cidade…” a cadência é triste e a canção fala de solidão, mas eu gosto de deambular pela cidade despida de quotidiano, olhá-la na nudez dos fluxos que lhe dão vida, como se a visse lamber-se nas feridas para sarar-se  de mágoas e encontrar um novo sentido, esquecidos interesses. E sinto-me a fada madrinha que estalando os dedos ilumino os sítios mais cinzentos, planto malvas-rosas em todas as janelas e deixo que os gatos se espreguicem ao sol.

Não ia calçada para grandes passeios, mas não foi isso que impediu que me alongasse pelo rio, cidade fora. Subi a ponte pedonal, que ainda não conhecia e debrucei-me sobre o rio. “Que pena” – pensava – “não haver dinheiro, para a limpeza do leito. Para a recuperação das casas junto à margem…” e detive-me. Detive-me enamorada daquela velha casa com escadas para o rio onde tanto desejei morar, quando menina. Ri-me à lembrança dos tratos que dava à imaginação no sentido de convencer a minha mãe a deixar-me tomar banho no rio, se algum dia ali morasse. E da forma simples como me consolava: “se não me deixar tomar banho, vai deixar que me sente no degrau com os pés de molho”. Hoje a água já nem chega aos degraus e quem, para além dos patos, quereria tomar banho neste rio tão pouco convidativo?!

As ruínas falam de abandono, de outros interesses, de vidas que foram, já não são. Aquela casa projeto Korrodi a cair aos bocados…

E eu calmamente a regredir no tempo, contrariando o curso do rio, anos a fio em tão poucas horas, a sorrir ao que foi e feliz por poder voltar para trás e seguir em frente na expectativa do que virá depois.

É setembro.