Começo a
chorar
do que não finjo
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança
porque me enamorei
de caminhos
por onde não fui
e regressei
sem ter nunca partido
para o norte aceso
no arremesso da esperança
Nessas
noites
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais
em que de sombra
me disfarcei
e incitei os objectos
na procura de outra cor
encorajei-me
a um luar sem pausa
e vencendo o tempo que se fez tarde
disse: o meu corpo começa aqui
e apontei para nada
porque me havia convertido ao sonho
de ser igual
aos que não são nunca iguais
Faltou-me
viver onde estava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava
mas ensinei-me
a não estar completamente onde estive
e a cidade dormindo em mim
não me viu entrar
na cidade que em mim despertava
Houve
lágrimas que não matei
porque me fiz
de gesto que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
porque me fiz
de gesto que não prometi
e na noite abrindo-se
como toalha generosa
servi-me do meu desassossego
e assim me acrescentei
aos que sendo toda a gente
não foram nunca como toda a gente
Mia Couto,
Raiz de Orvalho e Outros Poemas
O maior e mais profícuo neologista que conheço e muito admiro.
ResponderEliminarO ser que vive a vida que nunca nasceu e está onde nunca esteve.
Eu acho que Mia Couto inventou um português "imperfeito" maravilhosamente poético que não só coabita pacificamente como enriquece a linguagem erudita que o novo acordo ortográfico se está a encarregar de destruir. Não é o caso deste poema. Aqui ele joga com as ideias. É muito interessante a forma como fala de conformismo e desassossego. Também o admiro muito.
ResponderEliminarQuando o sangue é feito de massa desta qualidade bem podemos dizer que a palavra lusófona tem em Mia Couto um delta ramificadíssimo no grande rio que é tudo quanto escreve em português com cheirinho à terra quente e vermelha que eu também vi em Moçambique... Sente-se aquela terra, a imensidão do espaço, o tempo que passa, o que já passou e o que veio depois ..
ResponderEliminarEstou-me a ver a chorar... eu e o Zé Rocio, um avião a partir de Nampula, daquela imensa planura, o desassossego instalou-se dentro de mim, dias a ver o impossível...
O tempo que não passava!...
E as cruzinhas no calendário já fora do tempo!...
Belo poema!
Bonito texto, o que escreveu como comentário. Bem haja pelo seu testemunho comovido!
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