Há tempos, há atrasado, como diz a minha amiga IA, num lindo e calmo linguarejar nortenho, meti um amigo em trabalhos. Aliás, ele é que se deixou meter. Convenci-o, facilmente, diga-se em abono da verdade, a participar num concurso de poesia que decorreu ao longo de dez semanas. Só que o meu amigo, independentemente da sua atividade no âmbito da escrita, já estava mergulhado de corpo e alma num outro trabalho de grande responsabilidade, a concluir até final de dezembro. O tempo de que dispunha era pouco.
O meu amigo é um purista da
língua, na linha de Vasco Graça Moura com um leve toque do surrealismo de
O’Neil, embora garanta que tendo começado por ser neorrealista, hoje escreve
livre de tendências e escolas. É também um contemplativo. A sua poesia tem um
refinado sabor a serenidade. Usa preferencialmente os verbos no passado. E eu
leio-o e sinto a confortável sensação de me debruçar na janela, numa tarde
amena, admirar os dias que já foram, saboreando minuto a minuto aquilo que
vivi; ou que me sentei à beira do regato a vê-lo, não fluir para a foz, mas
alongando o olhar no sentido da nascente. O tempo parou e eu rebobino a vida,
com a doce sensação de quem come un petit gâteau e quando este chega ao fim, tem hipótese de voltar ao
princípio para voltar a saborear o mesmo petit gateau e usufruir o mesmo paladar, vezes sem conta, até se saciar da ternura da vida.
Durante o concurso, os temas sobre
que se deveria escrever, eram sugeridos semana a semana e o poema urdido
deveria ser enviado, obrigatoriamente, até às zero horas de domingo. Numa
qualquer semana, o poema, sempre até às vinte e cinco linhas, teria de conter
cinco vezes a palavra “toque”. O meu amigo escreveu um desencadear lindo de
versos, que me pediu que lesse em primeira mão. Falava de tempo e da espera da
amada, certo de que ela vinha e ia sonhando, acariciando a textura dos lençóis
onde se deitara, os passos que quebrariam o silêncio da tarde, pisando o saibro
do caminho. E no suave encantamento das palavras quase se conseguia ouvir o
pensamento do poeta, até ao último verso que, devendo conter toda a intensidade
poética do poema, resultara frouxo.
“Não precisas de esperar.
Adivinha-se que tens a amada junto a ti.” Escrevera eu no email de resposta,
onde dei a sugestão de alteração. E de facto o meu amigo vive uma relação calma
e harmoniosa há alguns anos. Isso estava ali, claramente expresso no último
verso daquele poema.
Por essa altura, eu andava muito
triste, tinha morrido a minha madrinha de casamento, que mais do que isso fora
um dos fortes pilares do templo onde me acoitei enquanto crescia e nem sei se
na cabeça, se no coração, ou mesmo nos dois lados, era Saúl Dias que me
lembrava:
Havia
na minha rua
uma árvore triste.
Quebrou-a o vento.
Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.
(Assim fiquei quando partiste...)
E o último verso, contendo tão
elevada carga poética, que sem ele nem haveria poema, trouxe-se me à lembrança
o trabalho do amigo. “Até a minha sugestão é mole” – pensei.
Ia a caminho de Lisboa, a Rita
estava doente e eu acelerava na autoestrada como já não fazia desde o acidente
da Z.. Diminui o andamento e envie-lhe um sms com nova sugestão.
Ele ligou. “Quase não tiveste
tempo de ler o sms… “ – comentei. Que não, que não tinha recebido nada. Fora
por acaso que se verificara a sequência. Já em Lisboa percebi porquê. A
mensagem não lhe fora endereçada. Como utilizo sms antigos para enviar
mensagens mais rapidamente, escolhera um, carreguei em “responder”, só que não
fora num dele e lá seguiu a recado para quem estava a seguir… A conduzir, nem
reparara na troca.
Debatemos o assunto e o final
terá (ou não) sido alterado… Nunca me preocupo em saber.
Posteriormente, de outra pessoa,
recebi um sms: “Sim, eu sei como é difícil não pensar que sou uma sonsa
dissimulada…” Seguindo o mesmo tipo
de raciocínio, pergunto: a quem lembraria escrever tal coisa?
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