“Por que não tiras a carta de condução?” Não havia quem não perguntasse. E alguns até acrescentavam: “Uma rapariga tão despachada como tu…” Ela ria-se. “Ora, gosto mais de acelerar nos sofás da sala.” - e dava a conversa por terminada. Só que a questão voltava a ser-lhe posta. Ninguém entendia as suas razões que, verdade seja dita, ela também não revelava. Era um “porque não” implícito, que ninguém aceitava: “Hoje a carta é uma necessidade e não um luxo” – havia quem sentenciasse. E ela sorria. O sorriso substituía o esclarecimento que negava.
Ela tinha um segredo. Ora todos
sabemos o que é um segredo. Só não sabemos, como ninguém sabia, qual era o seu segredo.
Nem sequer havia quem suspeitasse que existia um segredo. Tão alegre, tão
faladora, tão espontânea! Segredos?! Nem pensar. Pois havia mesmo um segredo! E
se era segredo, como o poderia revelar? Era por não poder responder que sorria.
Sorria e calava a razão pela qual nunca pensara aprender a conduzir um
automóvel. Aquele motivo, segredo inconfessado até à mãe, era uma limitação que
ela aceitou, como aceita tudo o que a vida lhe proporciona e não sabe ou não pode
alterar. Era a sua circunstância e tratou de ser feliz com ela.
Como o tempo não para, a vida foi
acontecendo.
Desde pequena que usava óculos,
melhor dizendo, deveria usar. Se os cuidados da mãe se aligeirassem, esquecia-se
de os colocar. Já em adulta, brincava: “Sem óculos vejo o ordenado inteiro, se
os coloco fico com metade”. Ela sofria de hipermetropia e achava que via muito
melhor sem óculos do que com eles, o que até era verdade. Possuía uma
extraordinária visão de longe e de perto, só após muito esforço é que os olhos
lacrimejavam. Para quê os óculos?!
O oftalmologista insistia: “Use
os óculos. Ao longe, com eles colocados, vê tanto como uma pessoa com visão normal”
“mas vejo menos” - respondeu naquele dia. O oftalmologista, com ar fechado, encarou-a
e sentenciou “mas tem problemas por não usar os óculos.” Ela olhava-o desafiadora e o médico continuou “nunca lhe aconteceu, à noite, quando
viaja de carro, não saber para que lado é a curva da estrada?” Ela quase pulou
da cadeira “o seu segredo!” Num misto de espanto e alívio, confessou ao
oftalmologista que sentia essa limitação. “Por isso nunca pensei aprender a
conduzir um automóvel.” “Pois então use os óculos, vai notar a diferença.”
Passaram muitos anos após esta
consulta de “adivinho”. Garante quem sabe que ela tirou a carta de condução
com o número mínimo de lições de código e de condução exigido por lei, que, até
hoje, não sofreu qualquer acidente rodoviário e aprendeu que, na vida, até o irremediável deve ser questionado.
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