29/03/2013 - 03h04
Formas de matar um escritor
DE SÃO PAULO
Exemplo de frase atribuída a
Clarice Lispector na internet: "Ainda bem que sempre existe outro dia, e
outros sonhos, e outros risos, e outras pessoas, e outras coisas". Outro
exemplo: "Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome".
Ambas estão num site que,
reagindo ao que o mundo virtual faz contra autores como Luis Fernando Verissimo
e Caio Fernando Abreu, dispõe-se a conferir a autenticidade de citações. Tarefa
digna, embora eu fique em dúvida sobre o que é pior: a Clarice falsa (sonhos e
pessoas) ou a verdadeira (desejo sem nome).
Quer dizer, a Clarice
transformada em autoajuda ou a tirada de contexto, numa vulgarização do
registro original. A segunda frase é o ponto de vista de uma personagem --a
protagonista de "Perto do Coração Selvagem"--, e fora do ambiente
claustrofóbico e idiossincrático do romance vira apenas banalidade.
Há muitas formas de matar um
escritor, e a mais segura talvez seja botá-lo num pedestal, escondendo as falhas
e oscilações que o tornam humano --e, portanto, próximo do que a literatura
deve ser. Acontece quando o transformamos num oráculo, com verdades a revelar
sobre temas que pouco ou nada têm a ver com os seus.
Caso dramático é o de
ficcionistas cujo mérito maior não é a capacidade de síntese, ou mesmo as
ideias. "Grande Sertão: Veredas" é um clássico por vários motivos, um
deles o acúmulo caudaloso e virtuoso de termos raros e palavras inventadas por
Guimarães Rosa, num ritmo e ambientação a serviço de uma grande narrativa de
aventura.
É um efeito que só se
potencializa por causa desse fluxo --ao qual o leitor precisa dedicar tempo,
paciência e atenção diversos do que exige uma simples frase. Destacar do
romance uma fala como "pão ou pães, é questão de opiniães", do
jagunço Riobaldo, é escolher (e indiretamente apontar como essência) apenas o
que Rosa tem de diluído --uma celebração algo ingênua, ou algo demagógica, de
uma suposta sabedoria popular.
Se a fala até pode ser charmosa
pela sintaxe, sonoridade e empatia que evoca no contexto de "Grande
Sertão", na vida real equivale a uma criança dizendo espertezas diante de
adultos. "Viver é muito perigoso", outra máxima conhecida do livro,
não é uma tolice, ok, mas repita-a sem a muleta de um medalhão das letras, em
tom compenetrado, numa festa ou reunião de trabalho, e saboreie o efeito que
causará.
Claro que citar é inevitável. Há
autores talhados para isso, de frasistas como Nelson Rodrigues e Paulo Francis
a romancistas cujos diálogos valem de maneira autônoma. Isso ocorre quando os
personagens estão no mesmo nível do criador, sem que o último precise se
rebaixar ou distanciar --com ironia, crueldade, paternalismo ou
condescendência-- para exprimir a voz dos primeiros.
Também quando não emprestamos às
frases uma filosofia moral adaptada a conveniências. Transformar Rubem Braga
num militante da ecologia, como fez um programa recente de TV por causa de um
trecho sobre passarinhos, é alistar o cronista numa batalha que não era a sua,
ao menos nos termos ideológicos de hoje. E trair o que ele tinha de particular,
sua melancolia cética e nunca açucarada, na contramão de qualquer bom
sentimento da moda.
Da mesma forma, "o que
desejo ainda não tem nome" talvez diga algo de "Perto do Coração
Selvagem", mas usar isso em confissões de Facebook --como se houvesse
grande transcendência nos anseios indizíveis do eu feminino-- é puxar para si
uma sugestão de mistério, profundidade, alma complexa. Um egocentrismo tão
contemporâneo e distante do que o texto de Clarice significou, inclusive em
risco de incompreensão e fracasso, à época em que foi escrito (1943).
A boa ficção usa mentiras para
dizer a verdade, e as citações malfeitas são o contrário: usam verdades
(trechos reais) para mentir (atribuir ao livro um sentido que ele não quer
ter). Ao contrário do que pensa quem as promove, é um desserviço à literatura.
Apenas mais um, num tempo em que pouca gente tem disposição para abrir um
romance --ou pensar qualquer coisa-- e ir além de meia dúzia de slogans.
*
Michel Laub é escritor e jornalista. Publicou cinco
romances, entre eles "Diário da Queda" (Companhia das Letras, 2011).
Escreve a cada duas semanas, sempre às sextas-feiras, na versão impressa da
"Ilustrada"
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