Morreste-me Amélia. Faz amanhã um
mês. E eu sei que não deveria chorar-te. Não se chora uma mulher que viveu
noventa e um anos. Deveria celebrar-te a vida, agradecer-te a aprendizagem longa que me proporcionaste. Mais que tudo, deveria celebrar os muitos anos que tive o
privilégio de usufruir do teu amor-perfeito e não chorar por o ter perdido.
Os primeiros dias, Amélia, até
correram bem. Tu sabes como sou. Aguento os primeiros impactos, mas depois,
sempre que chego ao Lar a minha mãe pergunta: “Foste ver a Amélia? Como é que
ela está? Estou tão preocupada”- acrescenta. E eu, invariavelmente respondo-lhe
que sim, que fui e que estás muito doente. “Do coração?” – quer ela saber – “De
tudo mãe. Do coração, do estômago, dos intestinos” E lembro-me do teu último
almoço “deixa-me ajudar-te. Deste-me tantas vezes comer na boca. Deixa que hoje
seja eu a dar-te a ti” e tu “não é a mesma coisa” e a entornares tudo e eu a
pedir de mansinho “deixa que te ajude” e tu deixaste e dei-te o último almoço
que comeste ali e quero voltar a ter-te ali ao pé de mim a entornar a sopa e eu
a pedir por favor para ta dar.
Ficou palpável o teu afeto crochetado em quilómetros de linha fina, repousando nas minhas gavetas. “Se
queres essa toalha, pede à Amélia que ta faça” disse minha mãe quando apontei
um botão de rosa inscrito num quadrado de renda. E eu pedi e tu fizeste. Quando
voltar a estender a toalha sobre a mesa resistirei às lágrimas?
Como detestavas que tricotasse
passando a lã pelo pescoço! Achavas pouco elegante. E como estou arrependida de
não me ter esforçado para aprender a fazê-lo com os gestos finos que em mim sonhaste!
As tuas sobrinhas tiveram a
gentileza de te alindar com um lenço que te oferecera. “Ela leva um lenço que
lhe deste” – disse-me a Nelinha. “Já viste?” perguntou a Lena. Olhei-te deitada
serenamente no esquife. Não respondi. Há comoções que as palavras não descrevem.
A Felicidade ocupou o teu lugar
na mesa de refeições. Que ironia! Pareces tu a dizer-me que a vida continua,
mas eu estou cheia de pena de mim, de não te ter mais a gostares de mim assim,
tal como sou. E penso "morreu-se-me outra Velha!" E choro
desconsolada. A voz da razão bem me sussurra, celebra o facto de ainda te
sobrarem duas, entre elas a tua mãe, mas a menina que em mim existe precisa da
certeza do apoio e mais que tudo da certeza do carinho, da ternura e do amor,
que a morte em ti me leva deixando-me cada vez mais só.
Nunca te direi adeus. Digo-te,
como fazia diariamente: “Olá, Amélia” para que tu me possas retorquir como
enquanto te beijava a magra face “Estás boa ou nunca o foste?” e eu, num ritual comum de risos “Ora! já sabes a
resposta…”
Não te preocupes. Todos os dias
ao almoço dobro o guardanapo de papel da minha mãe como tu fazias. Ela, se
soubesse, não deixaria que te esquecesse.
E no templo renovam-se as colunas…
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