Não sei em que curva do caminho, aboli do meu vocabulário a palavra saudade. Não é por isso que gosto menos das pessoas que passaram na minha vida ou dos lugares que serviram de cenário à forma como me fui tecendo, mas o sentimento de saudade é um contra-senso que a minha paixão pelo existencialismo não consegue aceitar. A vida, quanto a mim, toca-se para a frente, de acordo as circunstâncias sociais, políticas, económicas e culturais de cada um e ninguém pode ter a veleidade de trazer ao momento presente o que aconteceu no passado, porque as circunstâncias por muito próximas que sejam, na verdade, nunca se repetem.
Quando dos anos que o meu bilhete de identidade diz que tenho e que eu não há meio de acreditar possuir, olho para trás não me sinto mal porque acredito que em cada momento eu decidi o melhor que sabia, o melhor que podia, da melhor maneira que poderia decidir, que aquela era, nas minhas circunstâncias a melhor escolha e que agi sempre em liberdade, com responsabilidade, com amor, com dedicação e com empenhamento.
Ah! Mas aquilo que não depende de mim, aquilo que não posso ser eu a decidir, aquilo em que não posso interferir…. Que dor! Que raiva! Que frustração!
Há dois anos, mesmo no fim de Agosto, a Piedade suicidou-se. Como não poderia deixar de ser, eu estava em S. Martinho do Porto, onde era hábito juntarmo-nos, com mais algumas colegas para saborearmos uns gelados “este ano, sou eu que pago os gelados” dissera-me ela num encontro rápido no estacionamento do Continente num dia em que vim a Leiria visitar a minha mãe. Não a voltei a ver. Eu não gostava dos gelados, mas gostava de conviver e gostava sobretudo do sorriso afável da Piedade.
E no dia do seu funeral, a que me recusei assistir, instalou-se na minha alma um sentimento de solidão de uma grandeza tal que ainda não me consegui libertar dele.
Que dor! Que raiva! Que frustração!
A Piedade nasceu livre. A Piedade era livre. A Piedade tinha o direito de fazer da vida o que quisesse, mas eu também tinha o direito de continuar a usufruir da sua amizade.
Dois meses depois, no dia dois de Novembro, suicidou-se a Esmeraldina.
A Esmeraldina era uma mulher com quem se poderia falar sem “rede”. Com ela podíamos falar de tudo sem receio de que nos repetisse ou criticasse. Era uma sonhadora. Muitas vezes lhe disse que se pintasse o seu retrato lhe enfiaria cabeça numa nuvem e lhe deixaria os pés acima do chão. Acho que adivinhava o seu anseio pelo voo, sem contudo saber exprimir a tristeza que sinto por sabê-la par’Além naquele salto temerário do sétimo andar. Até nisto tinha de ser diferente.
Também ela era livre de fazer da vida o que quisesse, mas também eu era livre de continuar a usufruir da sua amizade.
E vão dois anos de dor, de raiva, de frustração, de não ter podido evitar o inevitável, de não poder continuar a usufruir o sorriso de uma, a amizade de ambas e de não possuir a certeza de lhes ter transmitido o carinho que ambas me mereceram.