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quarta-feira, 29 de junho de 2011

FOTOGRAFIA

Há dias, no Facebook, encontrei um nome conhecido. Seria um amigo dos recuados anos da adolescência? Seria, não seria? Perguntei e era. Fiquei contente por o ter reencontrado. Trocámos dois ou três mails, ele aproveitou para me chamar “naba”, porque lhe errei o endereço e a piada que lhe mandara não chegou, mas convenhamos que entre amigos os piropos são mesmo assim e, há dois dias, obsequiou-me com esta foto fabulosa de S. Martinho do Porto, que resolvi partilhar.Quando em S. Martinho, passeio pela beira-mar até Salir, quase a chegar ao rio, há imensas conchas espalhadas pelo areal e entre elas, umas pequeninas cor-de-rosa, que esta foto faz lembrar.

E eu sorrio ao olhar para esta concha pequenina porque tenho a sensação que basta baixar-me e, num gesto tantas vezes repetido, estender a mão e meter S. Martinho no bolso para trazer para casa.



Mas, será que não trouxe já?

terça-feira, 28 de junho de 2011

OS MEUS RELÓGIOS

Meu tio Manuel Leitão, por qualquer motivo que não lembro, até poderia ter sido para “matar saudades”, pois também acontecia, deslocara-se do Ramalhal a Leiria e pernoitara em nossa casa.

De manhã bem cedo levantei-me e em vez de ir direita ao quarto dos meus pais, como era hábito, resolvi aproveitar os mimos do tio. Ele usava um relógio de bolso que me fascinava. “Sabes ver as horas?” Teria seis anos. Não, não sabia e o tio Manuel pacientemente, num bocadinho, ensinou-me. Lembro-me tão bem… “cada bocadinho destes que o ponteiro grande anda são cinco minutos…”, dizia ele apontando para o relógio que eu segurava na mão. E a minha mãe a chamar: ” Não aborreças o teu tio. Ainda é muito cedo, volta para a cama.”

Era fácil contar de cinco em cinco e aprendi num instantinho, além do mais o relógio era lindo, com aquela corrente comprida que se prendia na casa do colete para não se perder o relógio, que vivia aconchegado num bolso pequenino.

Mas, dona e senhora de um relógio, só fui quando concluí a escola primária. A minha avó Isabel, era sempre a minha avó Isabel que se encarregava de me estragar com mimos, como prémio de tanto brilhantismo evidenciado no exame oral, decidira entregar ao meu pai determinada quantia para que ele adquirisse o relógio que ela pretendia oferecer-me. O meu pai, com a visão economicista que sempre o caracterizou, em vez de comprar o relógio de que fora encarregado, comprou um barato e devolveu o troco. Um Cauny, nada bonito que serviria muito bem “para estragar”.

Não sei se à época haveria muito por onde escolher, mas sei que me sentia orgulhosa com a prenda e feliz por ser dona do tempo, mas também achava o relógio feio, porque o sonhara de mostrador quadrangular e bracelete branca e não circular como aquele, que ainda por cima tinha a bracelete preta.

Durou anos a fio, o meu Cauny e ainda repousa no fundo de uma gaveta, que eu não sou de descuidar os meus presentes.

Hoje, tenho relógios de vários feitios, inclusive de bolso, como o do meu tio Manuel. Nada de grande valor, porque o tempo é tão traiçoeiro que não merece mordomias.

Há anos, para entreter o tempo, bordei alguns. Mandei colocar as máquinas e pendurei-os na parede. Calei o de capela que veio de casa de minha avó Isabel, silenciei o de cucu que só canta horas a pedido do André e são estes que marcam o tempo que me apetece.





sábado, 25 de junho de 2011

CUCA

Em Dezembro, o meu amigo Cuca telefonou. “Fui ao seu blogue e estou farto de rir. Posso saber o que vai cortar? Àquelas “lindas horas” eu entendia lá a ironia! “Abra o blogue”, “Não vê nada?” Eu ainda nem o tinha fechado e via lá alguma coisa só com uma nesga de olho aberta! “Escreveu ablações em vez de abluções e mais abaixo escreveu Sol onde deveria ter escrito sol. Será que agora escreve com os pés?”

“Mas que simpático que o meu amigo está hoje! Não falamos, há imenso tempo, não nos vemos há muitíssimo mais e liga para me dizer essas coisas “simpáticas”? Boas Festas também para si!”

A surpresa tolhera-me. Não fora isso, eu teria cantarolado à marrazense “você é muito róim!" Seria a resposta ideal à observação de quem, especializado em metáforas e afins, estava do outro lado do fio a rir descaradamente do meu texto acabado de publicar. Mas, nada feito! O sono diminuíra-me a capacidade de reacção!

Conheci o meu amigo Cuca por volta de mil novecentos e oitenta e um, quando ambos trabalhávamos na EMPL. Apresentou-nos Eça de Queiroz, numa qualquer manhã, em que eu atentamente ouvia uma prelecção de que não me recordo o tema. Lembro-me da sala onde aconteceu, do lugar onde estava sentada e da voz clara, calma e grave, com que o meu amigo Cuca começou a declamar, de cor, um longuíssimo período do belíssimo conto de Eça “O Suave Milagre”.

“O quê?” pensei, “será que o cavalheiro está apostado em derreter a manteiga das torradas que não comi?”

Sou uma mulher de emoções, comovo-me facilmente, mas detesto que os outros dêem por isso e não pretendia que fosse acontecer naquele momento. “Como pode gostar desses períodos longos? Prefiro frases curtas e concisas” interrompi eu, sem cerimónias, comparando o incomparável ao citar um livro que acabara de ler, de que já nem recordo autor e título.

O meu amigo Cuca calou-se e olhou-me. A pausa terá servido para contar até dez, pelo menos uma dúzia de vezes, enquanto engolia a resposta que eu merecia ouvir naquele exacto momento e, de seguida, tentou delicadamente demonstrar que eu estava errada. “O Suave Milagre” ficou para outra ocasião. O meu objectivo fora atingido.

Iniciámos aqui um jogo do rato e do gato, de cariz profissional feito de salutares provocações em que a única regra válida, embora nunca formalmente estabelecida era a alternância de papéis. Não se pretendia “apanhar” o outro, mas desafiá-lo nas suas capacidades de trabalho, no seu poder inventivo, para as resoluções de situações de aprendizagem.

Confesso que quem lucrou fui eu. Aprendi imenso. O meu amigo, com uma formação académica muito superior à minha e uma generosidade desmedida prestou-se à brincadeira de cariz pedagógico e deixou-me pensar que o desafiava quando na verdade ele “tinha as cartas, baralhava e distribuía o jogo”. Ambos tínhamos consciência disso e se eu estava disposta a aprender, ele estava disposto a ensinar. De qualquer modo, que não fique a ideia de que o processo foi pacífico. Tanto um como outro são dos que "vendem" cara a pele.

Encontrámo-nos depois na ESEL, onde me confiou as aulas práticas de uma das suas disciplinas de quinto semestre. Aceitar este trabalho obrigou-me a juntar à bagagem de férias, quatro calhamaços, em cuja leitura tive o “mau gosto” de gastar o mês de Agosto. Fui ainda a sua aluna mais atenta nas aulas de “Comunicação não verbal” a que voluntariamente assisti por achar o tema fascinante.

Um dia entrou no meu gabinete e sentenciou “o livro que requisitou na biblioteca, está ultrapassado, não vale a pena perder tempo a lê-lo” “Também o D. Afonso Henriques”, respondi enquanto remoía a raiva por o meu amigo ter metido o nariz nas minhas requisições “não querem lá ver o cuca, a meter o nariz no que leio, não faltava mais nada” comentei com os meus botões, mas afinal faltava. Faltava ter percebido que aquele homem sabia de cor todos os livros que existiam na biblioteca da escola e por ter ido casualmente à prateleira onde aquele deveria estar, notara-lhe a falta e com boa intenção tentava avisar quem o requisitara, sobre as matérias em que o mesmo estava ultrapassado.

Como a minha vida se simplificou! Sempre que precisava de bibliografia sobre qualquer assunto, batia-lhe à porta (o seu gabinete ficava em frente ao meu) ”há na biblioteca alguma coisa sobre tal assunto?” e o meu amigo Cuca respondia “estante tal, talvez na prateleira tal, mais ou menos o número…” Simplesmente impressionante!

Assim ganhou o carinhoso epíteto de Cuca (quando souber trucida-me), não por meter o nariz onde não é chamado, mas por ter passado a ser a minha enciclopédia ambulante.

Que é feito de si amigo Cuca? Calce as botas da tropa e telefone. Já tenho saudades dos seus “mimos”

sexta-feira, 24 de junho de 2011

O RAPAZ DA GASOLINEIRA

Apetecia-me passear. Ir até S. Martinho era a ideia, mas o carro não anda a água – forte pena!

Fui abastecer. No acto do pagamento o empregado perguntou “tem cartão?” Não, não tinha. “Então ofereço-lhe este envelope. Se tiver facilidade com a NET, ganha imediatamente quinhentos pontos ao aderir.”

Sorri. “Muito obrigada.”

“Não estou a perguntar-lhe se tem NET em casa, estou a perguntar se tem facilidade em mexer na NET.”

Alarguei o sorriso. “Sim, tenho.”

“Mas tem de concordar que há muitas pessoas, por volta dos quarenta e tal, cinquenta anos que têm dificuldade. Por exemplo: os meus pais…”

Interrompi com um sorriso ainda mais amplo. “É por isso que me recuso a fazer mais de trinta e cinco.”

O jovem corou, mas não se atrapalhou. “Oh! Mas a si, não dava mais de vinte e sete anos.”

Decididamente, o rapaz da gasolineira vale quinhentos pontos!

quinta-feira, 23 de junho de 2011

O DIA DOS PRODÍGIOS

A Isabel regressara de férias e com o seu regresso findara a minha obrigação de presidir interinamente à Junta de Freguesia.

Entregue a “pasta”, na manhã de terça-feira, rumei a S. Martinho do Porto. Foram quinze dias tão “entretidos”, tão trabalhosos, que nem sequer me apetecia “entreter o tempo” como sugere Mário de Sá-Carneiro ao relatar o amor louco de Raul Vilar por Marcela. Quem leu A Loucura lembrar-se-á deste binómio entreter-se/entreter o tempo? Que pormenores me prendem a atenção! Bom, eu precisava de parar o mundo e sair um bocadinho (a quem pertence a ideia? A um dramaturgo francês de que não me lembro o nome), repousando os olhos na vida, absorvendo-a devagarinho, gota a gota, que os últimos tempos foram excessivos. Muito movimento para quem, como eu, gosta de saborear a vida gole a gole, cheirar, adivinhar aromas, apalpar texturas, como quem se regala com um bom vinho. A preocupação não é quanto, mas o quê!

Estava baixa-mar. Já sabia quando saí de casa. Tinha consultado o horário das marés na NET, na semana anterior – sonho antecipado – portanto a alteração não seria grande em relação ao horário conhecido. Confirmou-se.

Passeei-me pela praia, de ponta a ponta, com a despreocupação de quem se equilibra na borda da concha onde guarda a vida que sabe que é sua, como um tesouro aberto à vista de todos que sabe que ninguém vê. Estava sol, mas havia vento. Em S. Martinho sopra quase sempre um vento bom para me desatar os nós do pensamento e me restituir a sensação de liberdade, que a cadência das horas tantas vezes me rouba.

Alma liberta, regressei ao mundo. A esfera voltou a girar.

Foi a meio da tarde, através do telemóvel: “estamos aqui, queremos ver-te”. “Aqui, onde?”. “À tua porta”. E fui de imediato.

Um encontro rápido, vertiginoso, apetecido, conversa louca e num instante quantos anos tínhamos? O tempo a andar sem tino em qualquer direcção…

“Trazemos a tua prenda de anos.” “Onde vão os meus anos…” – contrapus. “Não nos vimos na altura, veio hoje” “Qualquer tempo é bom para mimos… (como se de mimos não tivesse havido já fartura)” e abri o presente.

Da caixa saiu um relógio. Um relógio daqueles que me arrancam sempre um sorriso, daqueles que por brincadeira classifico como “próprios para pessoas inteligentes”: um mostrador negro e dois ponteiros, sem pontinhos que indicassem as horas. Basta um leve conflito com a amplitude, um olhar de lado, uma distracção enviesada e o tempo será o nosso tempo…

“Como tal prenda me assenta bem!” – ri-me – “Nem sei ver as horas neste relógio! Que boa desculpa para não chegar a horas a lado nenhum!”

Quando me aposentei, farta de correr à frente das horas, pus em cada relógio um tempo diferente. Que importavam as horas? Mais minuto, menos minuto tanto faria. Haviam cessado as obrigações e com elas os horários rígidos.

Partiram e voltei à Junta. O Tó Lis, um dos vogais, fazia cinquenta e cinco anos, quis juntar a minha voz ao coro das felicitações.

Quando entrei, uma das funcionárias reparou: “Que lindo CK traz no pulso!” “Bonito será, mas não tem horas” – respondi e ri-me, inexplicavelmente é o único relógio que possuo a marcar o tempo certo.

O tempo certo dos afectos.

Terça-feira, foi o dia dos prodígios.

terça-feira, 14 de junho de 2011

JURO

Quando ensinava crianças do primeiro ciclo do Ensino Básico, começava normalmente, pelo primeiro ano de escolaridade e acompanhava-as até ao quarto ano. Por esses tempos, já lá vão alguns anos, havia necessidade de socializar as crianças, o que se fazia desenvolvendo o discurso oral (e não só), problemática que cabe hoje ao Jardim de Infância resolver.



Tendo em conta a prossecução do objectivo atrás referido, entre muitas outras, uma vez por semana, eu realizava com as crianças uma actividade a que chamava pomposamente desfuncionalizar objectos. Era “um faz de conta” planificado em que eu dava o mote, que poderia ser por exemplo: “hoje vamos pescar”. Caberia então a um dos alunos escolher um objecto que tivesse à mão, por exemplo, o lápis e dizer “eu levo esta cana de pesca”, outro mostrando a afiadeira, acrescentava “eu coloco este anzol que é bom para pescar sardinhas” e assim íamos através de associações criando um texto oral colectivo, desenvolvendo a imaginação e conversando uns com os outros (hoje a dificuldade é conseguir que oiçam!).



É claro que ao longo da escolaridade as actividades deste tipo, fossem elas para proporcionar aprendizagens ou para catarse da minha loucura (como eu gostava de promover tais estratégias!), iam progredindo, passando da invenção de histórias a partir de gravuras, até culminar no nonsense das “histórias sem pés nem cabeça”, sem esquecer, eu nunca esqueci, a aprendizagem da redacção, entendida como texto que obedece a um plano, como texto estruturado, com princípio, com meio e com fim.



No domingo fui a Ourém. Imaginam qual não foi o meu espanto quando à entrada da zona histórica, onde me dirigia, me deparei com o que os vossos olhos podem testemunhar?!





Eu juro, juro e volto a jurar que não tenho nada a ver com este carrinho de rolamentos!
Mas que a banheira andava depressa...isso garanto! Ah! E o travão, aplicado nas rodas traseiras até funcionava!

Afinal há "loucos" que não foram meus alunos!

segunda-feira, 13 de junho de 2011

CENTO E CEM

“Andava a cair da boca, aos cães” como ironicamente diria meu pai. Aliás esta expressão era ouvida, mesmo muito ouvida, na casa de minha avó Joaquina Joana a propósito da necessidade de tratar fartamente tanto quem cavava a terra andando “à jorna” como “a merecer”. Era uma obrigação alimentar bem os trabalhadores e, além de comida forte fornecia-se vinho farto. “Não quero ninguém a cair da boca aos cães” dizia a minha avó, porque, penso eu, não quereria ninguém faminto. O trabalho era duro!

Talvez pela boca de meu pai, foi a expressão levada para as vindimas de minha avó Isabel, onde o trabalho, na altura todo manual, também difícil, só contava no transporte das uvas com a ajuda dos bois que, pachorrentos, puxavam os carros onde antes se fixavam as pesadas dornas onde se levavam as uvas para o lagar.

A expressão, de tanto uso, tomou raízes. Assim, quando o esforço dispendido começa a ser superior à força disponível, surge para definir o estado à beira do caótico “anda a cair da boca aos cães”.

Era assim que eu me sentia quando da última vez levei a minha mãe à consulta médica. “Doutor, estou mal. Depois de oito horas bem dormidas, sinto-me um saco de batatas sem mercadoria. Mal me ponho em pé, sinto vontade de desabar.” Confessei com vergonha de resumir o meu estado de cansaço com a gíria em moda cá em casa.

E assim, sem mais aquelas, encontro-me a tomar duas “feijocas” ao almoço, dizem que de vitaminas, que me devolveram à velocidade vertiginosa dos “cento e cem”.

Se não afrouxo, ainda me estampo numa curva!

sábado, 11 de junho de 2011

É HOJE

Há dias a Alice telefonara: “queres ir a Alcongosta?”. Num relâmpago pensei: quer enfiar-me naquela caneca que vi não sei onde. Sim, eu tinha lido aquela palavra numa linda caneca e não sabia o que significava. Afinal o cenário era outro. Estava a perguntar-me se queria ir à Festa da Cereja lá para os lados do Fundão, no dia dez de Junho. Bendita ignorância! Anui, pensando que se tivesse juízo aproveitaria o dia para deixar o esqueleto sossegado em cima do colchão e combinámos que no dia aprazado estaria à sua porta, cerca das sete e quarenta e cinco minutos.

Ao fim da tarde do dia nove, fui à inauguração da II Semana Gastronómica da Boa Vista (quem resiste a convites onde a franca camaradagem se mistura com a inigualável qualidade do leitão?) e cheguei a casa às zero horas do dia dez. Daí a umas horas teria de estar à porta da Alice, que se situa uns metros mais abaixo, mas antes prometera ir buscar outra amiga que mora mais longe.

Àquelas lindas horas fiz pataniscas de bacalhau para o farnel (havia prometido que levava) e lá me deitei, tarde e más horas para me levantar às seis e meia dessa mesma manhã.

O despertador tocou e eu não atinava com as teclas para o fazer calar. De olhos fechados é difícil, mas não foi impossível e foi ainda de olhos fechados que cheguei à banheira onde a água do chuveiro mos começou a abrir. Acho que ainda não estariam completamente abertos quando me sentei na camioneta.

Alcongosta cumpriu-se. No horizonte desse dia adivinhava-se uma noite descansada.


Tenho por hábito dizer, quando algo não me corre a contento, “apetece-me atirar ao rio”, mas tenho o cuidado de acrescentar “só não o faço porque a água está molhada”. Na verdade muitas vezes o motivo nem chega a ser esse, pois a água é tão pouca que “nem está molhada” e eu correria o risco de partir a cabeça.

Pois esta manhã aconteceu o impensável. O silvo agudo do despertador, onde eu me esquecera de anular a marcação do dia anterior, interrompeu o melhor dos meus sonos.

É hoje, é hoje que me atiro ao rio. Daqui a bocado tratarei disso, mas levo a castanhola de cana que comprei em Alcongosta, não pensem os patos que dormem, se eu não pude fazê-lo!

quarta-feira, 8 de junho de 2011

A VÍRGULA

- Quero vender-lhe uma vírgula.
- Uma vírgula? - perguntei eu, pasmo. E ele completou:
- Sim, uma vírgula para que continue a escrever seus textos, pois um homem sem vírgulas é um homem sem história.
A partir desse momento, meus olhos se abriram. Descobri que sempre usara a teoria dos pontos finais e não a teoria das vírgulas. Alguém me frustrava? Eliminava-o, colocava um ponto final no relacionamento. Alguém me feria? Anulava-o. Enfrentava um obstáculo? Mudava de trajectória. Meu projecto estava com problemas? Substituía-o. Sofria uma perda? Virava as costas.
Eu era um professor-doutor que usava os livros dos outros em minhas teses, mas não sabia escrever o livro da minha existência. Meus textos eram descontínuos. Considerava-me um anjo, e os que me frustravam, demónios, sem jamais admitir que fora carrasco da minha esposa, do meu único filho, dos amigos e dos alunos.
Quem elimina todos ao seu redor um dia será implacável consigo mesmo. E esse dia chegara. Mas felizmente encontrei esse enigmático homem e entendi que é possível conviver, sem vírgulas, com cachorros, gatos e até com cobras, mas não com humanos. Frustrações, decepções, traições, injúrias, conflitos fazem parte do nosso cardápio existencial, pelo menos do meu e de quem conheço. E as vírgulas são imprescindíveis.



Augusto Cury, O Vendedor de Sonhos e A Revolução Dos Anónimos, Planeta, Lisboa, 2010


Intrigada. Busquei na bolsa a minha caneta preferida. Uma linda caneta em tom vermelho escuro, de tinta permanente, que alguém gentilmente um dia me ofereceu e questionei-me: terei vírgulas para continuar a escrever a minha vida, ou foi a escrever a vida que adquiri as vírgulas?


terça-feira, 7 de junho de 2011

NÃO VENHAS DEVAGAR

Não venhas devagar
com tanta pressa. Deixa
que derrame a fome
nos quintais e a maldição

suspeite do suave
aroma do delírio. Envia
o que te sobra
ou rouba

o mais pequeno passo
por um fio.

JOSÉ CARLOS SOARES


Este perder-se [de Areia de Same], edição do Autor, Porto, 2011.

Publ.em http://hospedariacamoes.blogspot.com/


A selecção foi da minha amiga A.P., a quem agradeço ter-me dado a conhecer este belo poema.


segunda-feira, 6 de junho de 2011

DEZ COISAS DE QUE GOSTO (entre muitas outras)

Fui ao blog da Carol e vi que me havia sido lançado um repto. Postar aqui dez coisas de que gostasse.
Pois bem aqui estão, dez coisa de que gosto muito, das que gosto mais.


A gente que eu amo. Espero que não me ralhem por ter divulgado aqui as suas caras.


A vida, que as circunstâncias me proporcionaram...


S. Martinho do Porto, que mais que um lugar é um estado de espírito. É onde desato os nós da minha alma e onde os sonhos me parecem mais fáceis de concretizar.
As ondas, mesmo na maré alta, são uma carícia para os ouvidos.
A brisa afaga-me a face e retempera-me o espírito.


Fazer teatro, melhor dizendo "armar barraca". Eis-me aqui, em 16-6-2010, no papel de Januário, na peça "Médico à Força". No palco do Teatro Miguel Franco. Como devem calcular Molière (pobre senhor) estava aos pulos no Além...


Conviver com os amigos. O jantar é um ritual obrigatório (ou quase) das sextas feiras, cujo testemunho não me atrevo a publicar sem a devida autorização dos presentes.


Livros. Gosto de ler e os livros vão-se amontoando na mesa de cabeceira, por falta de tempo, mas o prazer de comprar um livro... a expectativa das palavras não lidas ... Conversas adiadas que não se cansam de esperar...


Cheiros agradáveis, de preferência o cheiro quente fecundo das dunas de S. Martinho depois de uma leve chuvada seguida de uma tarde de sol.
O cheiro de terra molhada...



Flores e texturas da Natureza. Que bela buganvília tem a vizinha! É uma ventura abrir a janela da cozinha em cada manhã de Primavera.



Sons, todos os sons harmoniosos. Desde o chilrear dos pássaros às diferentes entoações da voz humana. E o silêncio! O silêncio cheio de doce intimidade...



Descobrir coisas novas, andar a pé, viajar. E porque não? Ficar assim: a saloia a olhar para o balão!

domingo, 5 de junho de 2011

DEBRUCEI-ME...

Debrucei-me na “Varanda das Estrelícias” e o Álvaro Costa acenou-me:

Cuidado!

No olho do furacão
Nesse triângulo das Bermudas
Que se chama de paixão
Nessa vertigem de águas
Tem cuidado, coração!

Audaz, pois nem conheço o Álvaro, protegida pela distância informática e pelo silêncio da minha sala só quebrado pelo matraquear das teclas do PC, sinto-me incapaz de o deixar sem resposta.

Há paixão com cuidados? Há conformismos no amor?

Ele chegou qual Eróstrato. Traz o fogo no olhar, mas traz também mel nos lábios, suavidade nas mãos, ternura no abraço e em si a encantadora frescura do gesto, sempre diferente, sempre melhor, cada vez mais gostoso.

O encontro é rápido, como rápido é avançar na maré cheia. O mar acomete-os em ondas sucessivas e basta abrir os braços e erguer os pés para serem possuídos e gozarem a posse. Se não tiverem tempo de avançar, a onda rebenta-lhes em cima e leva-os à praia.

Ébrios de movimento erguem-se meio tontos e respiram fundo. Só então sentem no peito a vertigem do mergulho que já deram e apetece-lhes mais.

Tentam de novo, repetem o gesto.

Estão à beira-mar . Tentam respirar. Bem-vindos à vida!

Mais tarde, o Álvaro escreverá

Agora eu sou um pingo
Bem diferente dos demais
…………………………………

Poderei depois ser onda
………………………………
Desfeita em pingos, poalha
Espuma leve na praia
Que depois o vento espalha
E de mim nada na areia...!

Que o Álvaro Costa me perdoe a ousadia, a irreverência. Ele escreve coisas belas e sensuais. Merece ser lido. É fácil encontrá-lo em “Varanda das Estrelícias”.

sábado, 4 de junho de 2011

ROSAS


Serão as rosas, o meu contentamento?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

SAUDADES

O ensaio acabara tarde. Faltam muitos dias para o dia catorze, mas não podemos dispor do Teatro Miguel Franco quando nos apetece. Há que respeitar a calendarização! Então, como nos disponibilizaram a sala, para toda a tarde de hoje, tivemos que aproveitar; desde as marcações de cena ao ensaio geral, aconteceu tudo em tempo recorde. Eu estava cansada, estávamos todas cansadas, mas eu sentia-me feliz, porque representar diverte-me.

Saí e ainda fui ao Turismo cumprimentar as amigas que tinham acabado de inaugurar a mostra de alguns quadros. Um refresco, dois dedos de conversa; possivelmente até foram mais de dois, esqueci-me de contar e dispus-me a retomar o caminho de casa, não sem antes passar pela feira do livro, que ficava em caminho. Buscava, por conta de M., “A Ronda da Noite “ da Agustina. Azar! No último momento esquecera o nome e vim para casa de mãos a abanar, ou deveria vir…

Eram quase vinte horas, estava um fim de tarde fabuloso e eu deixei-me seduzir. Parei o carro perto do Estádio, disposta a passear-me pela margem do rio antegozando já o cantarolar da água junto ao açude.

Afinal a quietude era total. As comportas estavam fechadas e o caudal ia alto. Os patos mergulhando aqui e ali ofereciam aos meus ouvidos o único som cristalino que se justapunha a um ou outro motor de carro e eu ia seguindo inebriando-me de verde, de brilho da água e de luz, na calma deste fim de tarde.

Viu a L. e dei uma corrida, e lá fomos tecendo mais uns minutos de velha amizade. Ela ficou perto de casa e eu voltei. Olhos cheios, alma mimada, no silêncio da tarde.

Um dia hei-de morrer. Pensei cheia de pena. E os cambiantes de verde continuarão a repetir-se em cada ano, salpicados de arco-íris. Que saudades terei do rio Lis!

quarta-feira, 1 de junho de 2011

DIA MUNDIAL DA CRIANÇA

Já não tenho olhos de "mata-borrão", já não há avidez no meu olhar, mas sobra da criança que fui o mesmo encantamento pela vida.