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quinta-feira, 8 de julho de 2021

COMO VI "A MARGEM DO TEMPO"

 

Fui ontem ao teatro ver a que é tida como a última representação de Eunice Muñoz e em simultâneo a passagem de testemunho à neta Lidia Muñoz, na peça “A Margem do Tempo”, de Franz Xaver Kroetz, com encenação de Sérgio Moura Afonso.

Expectante, questionava-me como estaria Eunice em palco, aos noventa e dois anos de idade. Quanto à neta, que vira já a contracenar com ela, no Teatro Experimental de Cascais, para aí há uma dezena de anos, admitia ter aprendido bem, com tal mestra, ao longo do tempo.

Silêncio, depois quebrado pela música do maestro Nuno Feist, e Eunice entra em palco, executando as rotinas de uma mulher só, num habitual fim de tarde. Sem palavras, falava a música, senti a solidão da velhice logo à sacudidela da imaginada mancha de pó, da manga do casaco que despira, depois no olhar que se alonga pela janela que entreabriu, não para ver a paisagem, mas para se centrar em si, como tantas vezes me acontece.

A neta entra em cena sacudindo a mesma mancha imaginária, repetindo os mesmos gestos e entre ambas vão executando as tarefas, até à exaustão repetidas, de alguém que chega a casa antes de jantar, prepara a refeição e organiza o dia seguinte, enquanto a juventude vai morrendo ou melhor, se vai suicidando aos poucos, na perspetiva de dias sempre iguais.

Vi em cena duas atrizes encarnando uma só personagem em momentos diferentes da vida, o que numa perspetiva cénica, achei fabuloso, mas vi também as rotinas perpetuarem-se ao longo dos anos, vi os dias repetidos a papel químico.

Tentando convencer-me, repetia-me mentalmente que as rotinas nos fazem felizes, mas por outro lado sentia que a segurança que oferecem é falaciosa e torna a vida tão triste e solitária.  

“O que a vida tem para oferecer a uma mulher só?” lembrei a questão lida numa qualquer apresentação do espetáculo e garanti-me que a questão não é essa, mas sim “Que hipóteses tem uma mulher de fazer diferente?” que, bem vistas as coisas, só altera o sujeito da ação.

Eunice incomodou-me, mas o aplauso vai para o maestro Nuno Feist, que falou e gritou de desespero.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

FANTASMAS

 Hoje, à tarde fui à cabeleireira.  Disse a mim mesma que era para começar a confinar bonita, já que vou ficar fechada em casa, pelo menos, por mais um mês.

Se é verdade que decidi, de há muito, que o medo de morrer não poderia impedir-me de viver, o que tem servido de justificação às minhas deambulações, mais do que as recomendáveis, nos dias que correm, confesso, também é certo que a inteligência manda adaptar-me às circunstâncias e obviamente seguir as normas que me salvaguardam a pele. 

Farta, como toda a gente, deste vírus que nos mantém reféns do medo e com a família longe, resto-me eu como companhia de mim, o que de momento me parece pouco embora saiba que as vídeo chamadas da neta não deixarão de me colorir a circunstância dos dias e que, se algo me acontecer, a empregada me encontrará, na quarta-feira seguinte.

Não se pense que passeio muito, gosto é de ter a liberdade de não o fazer.

Considerandos à parte, em abono da verdade só posso dizer que a minha ida à cabeleireira não foi para me pôr bonita, o que redundaria num trabalho inglório para a dita, independentemente da boa vontade e do empenho com que tentasse, foi sim a tentativa frustrada de negação da clausura que se avizinha.

Saí da cabeleireira, meio rabugenta “a poesia salvar-me-á” e em vez de seguir na direção do carro, fui à Bertrand.  Pretendia um livro de poesia e acabei saindo de lá sem poesia nenhuma e mais rabugenta comigo do que antes, arrependida de não ter optado por visitar o meu livreiro preferido, que, quando não tem os livros que me apetecem, inventa forma de os conseguir. “Decididamente, não será a poesia a salvar-me da monotonia dos dias de confinamento…” – pensei.

Subi a ladeira, estacionei à porta do prédio e mal saíra do carro fui abordada por uma adolescente, cara de susto, voz trémula “por favor ajude-me!” Aquele medo acordou em mim a mãe, a professora, a pessoa… a pequena estava mesmo assustada. “Então o que se passa?” “Perdi o autocarro para Leiria” em Leiria estava ela, pretendia, isso sim, descer ao centro, ou deslocar-se ao outro extremo da cidade, “quero voltar a casa e não consigo entrar no prédio porque aquele cão não deixa. Tenho medo dele”. O pensamento é rápido “cão?! Cão?!” Pela direção do olhar, a jovenzinha morava no outro lado da praceta…  A imaginação desenhou, de imediato, uma fera nas minhas costas.

O cérebro continuava a martelar… “cão?!” “como um cão?! Logo a mim que dou distância de bicho de quatro patas?!” Corajosamente voltei-me…

 “Cão?!” Lá estava o cão…

Em toda a vida só me relacionei com dois cães: o Torry, o pastor alemão dos vizinhos, que batia à porta da casa de meus pais com a prótese de uma das patas com a intenção de velar-me o sono de menininha, enfiando o focinho entre as grades da minha cama e mais recentemente a Yuka cadela meio rafeira, meio qualquer coisa, que corre para mim e me pula aos ombros mal me vê, numa amizade que até há bem pouco tempo não pensara possível.

“É aquele o cão?” sim era aquele. “Então vamos. Vou levar-te a casa”. Atravessámos a praceta. “Tens chave?” “A minha mãe abre a porta” e, ao aproximarmo-nos, ouviu-se o ruído da porta do prédio abrindo-se. A mãe estava atenta. “Entra que o cão está longe” “Obrigada, por me ajudar”.

O cão, o dito cão que a adolescente temia era, comparado com os dois que referi, menos de metade de bicho, não era, tampouco, um qualquer rafeiro, era um cão de raça, também ele a pretender entrar em casa, suponho, de onde haveria fugido, nem me pareceu haver reparado na jovem ou em mim.

Embora a situação possa parecer hilariante, em momento algum me apeteceu rir. Aquela adolescente, pelo medo demonstrado, precisará de mais ajuda do que a que lhe poderei, alguma vez, prestar. Fiquei, isso sim, a dever-lhe um agradecimento por me ter mostrado o poder dos fantasmas que inventamos se não os exorcizarmos.

Não vos vou falar dos meus fantasmas. Já de há muito nos habituámos à mútua companhia. Exorto-vos, isso sim, a encarar com bonomia o fantasma de um novo confinamento, mais essa limitação que se adivinha, na certeza que graças a ela poderemos sobreviver.

Viva a vida!