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domingo, 5 de setembro de 2010

O MUSEU ESCOLAR DE MARRAZES

Texto publicado em Jornal de Leiria - 19-08-2010


Fui hoje ao Museu Escolar de Marrazes, não para visitar o acervo, mas por imperativos da minha actividade na Junta de Freguesia.

Franqueei a porta e avancei disposta “ao que ia”, sem delongas. De passagem, uma menina-de-cinco-olhos pousada em cima de uma mesa prendeu-me o olhar e fez-me sorrir. Absolutamente desprevenida tinha acabado de esbarrar na memória.

Vivi oito meses no Minho, tendo concluído a primeira classe na escola de Quintiães. A professora, Helena de seu nome, possuía um instrumento semelhante àquela menina-de-cinco-olhos, com que desancava quase só o irmão, seu aluno da quarta classe, cujo defeito, único por sinal, era ser irmão da professora, o que tinha inerente a obrigação de ser o melhor aluno e o mais bem comportado.

A escola era um edifício de primeiro andar, no rés-do-chão do qual havia um estábulo, possivelmente para que o calor dos animais aquecesse a sala de aula situada em cima. Na verdade nunca ali vi as vacas; fui para o Minho em Março e talvez à hora da escola as vacas estivessem no pasto, mas espreitei o estábulo através do alçapão que se situava por baixo da secretária da professora e mesmo por cima de uma lareira que havia no andar de baixo. Daí, já nem lembro como, vi-me integrada no grupo que teve a brilhante ideia de atirar a menina-de-cinco-olhos para a lareira na esperança de que ardesse. Mas não ardeu! Para nossa decepção, apareceu de novo na secretária da professora. “A menina-de-cinco-olhos caiu na lareira do Sr. Manuel” comentou a D. Helena. Silêncio absoluto na sala de aula. Ninguém se atrevia a levantar os olhos dos cadernos, receava-se o que viria a seguir. Nada! A professora deixou esquecer o assunto, certa de que o silêncio, nomeadamente aquele a que não faltariam as palavras, reconheço hoje, é muitas vezes mais eficaz do que tudo o que poderia ser dito.

Porque vos conto isto? Porque hoje, por uns momentos, mesmo conhecendo bem aquele espaço esqueci ao que ia, esqueci a pressa e fui de novo criança graças ao poder de um espaço, o MUSEU ESCOLAR DE MARRAZES, menina-dos-olhos da Freguesia e um legítimo motivo de orgulho para todos nós leirienses que, tendo-o aqui tão perto, poderemos desfrutá-lo a nosso belo prazer.

Poderemos, como aquele emigrante que o visitava na companhia dos amigos, procurar a terra natal no mapa, poderemos fazer a pesquisa que antecede um estudo científico específico ou poderemos, como aconteceu comigo, deixarmo-nos arrastar e mergulhar no tempo, para ser de novo meninos de escola.

Não quero falar-vos da exiguidade deste espaço face ao espólio que possui, nem da necessidade de um outro, que sonhamos polivalente e que há-de chamar-se “O Centro Cultural de Marrazes”.

Mas, porque a educação é o repositório das experiências mais marcantes do homem; porque (parafraseando António Lobo) possuímos uma memória colectiva que através do tempo vamos construindo, sujeitos intencionalmente a solicitações “de pura validade ou dignidade”; porque somos uma sociedade com história, quero desafiar-vos:

. Visitem o Museu Escolar de Marrazes e reconheçam a sua dignidade, inscrevendo-se na Liga de Amigos.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

OS SAPATOS AZUIS

Quando era adolescente, às voltas com incríveis dúvidas existenciais próprias da idade, e lendo Sartre (o primeiro livro escolhido foi O Muro - já se pode ver que presidia à escolha o critério de ler tudo o que apanhasse), atacada de pseudo intelectualidade e “sabedoria”, suspirava por mais uns centímetros de altura.

Uns míseros dez centímetros, acrescentados ao meu metro e sessenta e cinco, teriam feito então a minha felicidade. “Gostava tanto de ser alta e magra como as inglesas…” lamuriava-me vezes sem conta, ao longo do dia.

Não sei o que me terá convencido da elegância britânica, pois o reconhecimento público da Princesa Diana como ícone do bom gosto e elegância só viria a acontecer muitos, mesmo muitos anos mais tarde, mas eu ia tecendo os dias numa mistura de Sartre e suspiros sem vislumbrar uma solução para aquele terrível problema da falta de altura.

O meu pai que possuía um humor cáustico absolutamente exasperante, qualidade ou defeito, nem sei bem, que transmitiu aos descendentes, entre os quais me incluo, não perdia a oportunidade de contrapor, para meu desespero e irritação, “pois é minha filha, tu saíste uma inglesa curta”.


Este Agosto aconteceu…

Entrei e passeei os olhos naquela calma de que só as mulheres são capazes quando querem avaliar tudo com um só olhar. Num canto, entre tantos outros ele destacou-se e “sorriu”. Desdenhosa voltei as costas, fazendo-me desinteressada, mas aquela “piscadela de olho” inflamara-me o coração. Voltei três vezes, estar na praia sem nada que fazer tem destas vicissitudes e, finalmente, pedi o par e rendi-me.

Os lindos sapatos de camurça azul petróleo da prateleira do meio, daquela estante da ponta esquerda da Sapataria Nova 3 são meus.

Com eles nos pés eu fico alta e apessoada como a mais elegante inglesa, daquelas que estariam de férias no estrangeiro e que por isso as não encontrei quando em Junho estive em Londres.

Resolvi finalmente o meu problema de altura. Numa etapa da vida em que já me sentia a encolher fiquei alta, bem mais alta do que alguma vez sonhei.

Agora que resolvi o problema da altura, alguém me saberá dizer como se anda com estes sapatos?!

Resolve-se um problema e surge logo outro! Esta vida é mesmo ingrata!

Não querem lá ver que em vez de sapatos para passear comprei umas pantufas para dormir?!

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A OVELHA COR-DE-ROSA

S. Martinho do Porto, 25 de Agosto de 2010

De uma cortina de banheira adquirida numa loja chinesa, para ser utilizada com fim diferente daquele para que fora concebida, sobraram as doze argolas com que o André brincava.

“Sabes o que é isto avó?” Ele abre o “a” tornando a palavra tão sonora que eu ao ouvi-la sinto na alma o som vibrante de um campanário em paisagem idílica. Nesse breve instante sou a única avó do mundo na ternura deste neto igualmente único. A modéstia aliada ao bom senso faz-me acrescentar ao “mundo” os arredores e reconhecer que tudo se situa sobretudo aí, nos arredores, na latitude exacta do meu mundo de afectos. Todas as avós são assim e se alguma me ler saberá que falo verdade. O mundo de uma avó cabe inteirinho no olhar do neto.

Olhei para as suas mãos que seguravam as argolas da cortina entrelaçadas e respondi “uma corrente” “e sabes o que tenho aqui na corrente?” A alegria de ter acertado na resposta à primeira questão esvaiu-se. Acabado de acordar, ele vestia ainda o pijama cuja camisola simbolizava um enorme cão com a língua de fora. “Na ponta da corrente está este cão preso” retorqui puxando a língua vermelha pendurada na camisola do pijama e fazendo-lhe cócegas na barriga. “Não avó, na ponta está uma ovelha”. “Uma ovelha?”. Admirei-me. “Tu tens uma ovelha?” “Tenho uma ovelha cor-de-rosa”.

Sem achar graça ao devaneio, a mãe questionou-se de onde viria a ideia da cor porque a da ovelha teria sido importada da visita a uma quinta pedagógica, lá para os lados da capital, realizada poucos dias antes.

“Ora, se a avó tem um cavalo verde cavalgando mundo fora, porque é que o neto não poderá ter uma ovelha cor-de-rosa e de preferência presa nas argolas de uma cortina de casa de banho?!”

Naquela manhã a minha filha mais velha não estava para devaneios e a conversa morreu. O facto não impediu o André de continuar a brincar com a ovelha cor-de-rosa e o meu cavalo verde de continuar a cavalgar ”sabe Deus por onde”.

Hoje, no passeio matinal que a baixa-mar vem tornando possível, num canto da memória, vislumbrei a ovelha cor-de-rosa “olha a ovelha do André?!” exclamei à laia de cumprimento. Não, aquela passeava-se por um prado azul, perto de um moinho de velas coloridas…

Quando era criança, teria cinco anos, quase seis, adoeci com sarampo e logo de seguida com escarlatina o que fez com que estivesse doente muito tempo, obrigatoriamente enfiada na cama devido à febre muito alta.

Recordo desse tempo os horrores das zaragatoas que o enfermeiro me ia fazer ao fim da tarde, os protestos sem qualquer resultado com que o recebia e mais do que tudo, a forma como o meu irmão conseguia fazer-me esquecer a doença.

Entre os brinquedos espalhados pela cama havia uma boneca de que já não vislumbro as feições e um fio de lã cor-de-rosa.

O meu irmão, doze anos mais velho, teria então dezassete anos e muita paciência à mistura com o amor que me dedicava. A minha mãe para seu alívio, na terrível tarefa de me entreter, ensinara-lhe a enfiar cinco malhas numa agulha e a tecer em ponto mousse, até ao fim, aquele fio de lã cor-de-rosa transformando-o numa tirinha de cerca de três centímetros que eu de imediato desfazia para ele voltar a tecer, sem beliscar a sua masculinidade.

Num qualquer dia, farto talvez de fazer malha, cortou um trapo e coseu na saia azul da boneca um lindo moinho de velas coloridas.

A morte do meu irmão é uma mágoa que transporto no peito há catorze anos e que ainda não consegui chorar de vez.

Aquele fiozinho de lã estava perdido num canto da minha memória. E o fio de lã cor-de-rosa só pode ser feito do pelo da ovelha igualmente cor-de-rosa que pasta junto ao moinho na saia azul da minha boneca.

Foi preciso o André ensinar-me que as ovelhas cor-de-rosas são gestos de amor-perfeito (porque desinteressado e incondicional) para eu reparar como tenho descuidado o meu rebanho!

A partir de hoje, não vou chorar mais o meu irmão. Com as lágrimas temperarei as azeitonas daquele enorme alguidar em que me fez cair. O amor do meu irmão foi um privilégio. É disso que quero alegrar-me.