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terça-feira, 27 de maio de 2014

LUGAR NENHUM


Espreitou por entre os vidros daquela janela larga… A chuva caía. Abundante, na tarde cinzenta, lavava tudo. “As plantas agradecem” – pensou. Fosse menina e escapar-se-ia aos cuidados da mãe para também ela se lavar, lavar a alma celebrando a chuva, no jardim. Só que então nem sabia que tinha alma e agora não tem jardim. 

As flores avulsas da varanda tremelicavam ao impacto das grossas gotas. Apeteceu-lhe movimento. Gosta da chuva. E então?! Há quem diga que tem mau gosto, mas ela sorri e responde resignada que há gostos para tudo.

Atravessou a casa e espreitou por outra janela a buganvília da vizinha no abraço bravio da ipomeia. Numa ponta do quintal, virada à rua, a nespereira sorriu no amarelo vibrante de seus frutos. Ela lembrou-se da velhota, que numa manhã de sol, puxava com o guarda-chuva as braças da árvore e se abastecia de nêsperas. “Fora hoje e já as levava lavadinhas, prontas a comer.” Sorriu. Nesse dia tivera pena da velhota e apetecera-lhe levá-la ao supermercado, mas ela sabia que não poderia oferecer-lhe nêsperas mais saborosas que aquelas que ela acabara de subtrair sorrateiramente à nespereira da vizinha.

Lembrou-se que também ela tinha nêsperas em casa, oferta de um amigo. “Hei-de semear um caroço, no vaso, para ver se cresce.” É assim com tudo, “para ver se cresce”, com os afetos como com as plantas, mas quantas vezes a terra do vaso é mais fértil que a bondade das almas…

Disposta a sair, vestiu um casaco e desceu as escadas. Enfiou-se no carro e partiu. Onde ia? Ia à chuva…

A musicalidade da água coloria a tarde parda. Ela conduzia devagar… Seguia para lugar nenhum. Lugar nenhum era o abraço que não tinha: “por mais que caminhe não sei como chegar à ausência” e conduzia estrada fora inebriando-se de verde, de um verde fresco, lavado do pó dos caminhos.


Parou frente ao mar a ver chover. Na beatitude da tarde, embalada pela chuva, aconchegada pelo oceano, adormeceu…

segunda-feira, 26 de maio de 2014

GOSTO

E, na linha de pensamento de Robert Boutroux (séc.XIX) que afirmou que ao contrário de França em que as elites eram tudo e o povo não valia nada, em Portugal o povo era maravilhoso e as elites deixavam muito a desejar... a crónica de Ferreira Fernandes, do Diário de Notícias de hoje:

Um povo que merecia melhores líderes
por FERREIRA FERNANDESHoje

Se os juros pedidos aos países não fossem baseados na tanga, Portugal, depois do dia eleitoral, deveria ter hoje banqueiros à porta - e não seria para resgatar dívidas mas a emprestar dinheiro. A custo zero, ou quase. Já tenho idade suficiente (tenho mais de três anos, vivi os bombardeamentos de 2011: "Chiu, não assustes os mercados...") para saber medir a nossa condição: Portugal é o país social e politicamente menos assustador da Europa. Não digo que isso seja bom em tudo (tanta calmaria também atrai líderes xoninhas, de olhos baços e bananas), mas em matéria de juros, merecia tê--los baixos. Ponto. Sobretudo quando à volta é o estilhaçar da Europa: no Reino Unido a surpresa é o UKIP que quer sair da UE, em França a sulfurosa FN ganha, na Grécia são vedetas o esquerdista Syriza e a extrema-direita Aurora Dourada, populistas austríacos e caceteiros húngaros marcam, é eleito um grupo de alemães anti-UE e, talvez, um eurodeputado neoazi, os espanhóis PSOE e PP afundam... Arraial doido enquanto os portugueses não se deixam iludir com sereias e insistem em não votar com a cabeça quente. Não é fidelidade, coisa de lacaios, é prudência, qualidade hoje rara nos povos. E se há povo que tenha sido sujeito a governos sem soluções e oposições sem alternativas, é este. Sujeito, pagando com dor e raiva - mas sem desespero, como ontem mais uma vez mostrou. Que sorte, que desmerecida sorte, têm estes partidos e líderes do centrão.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

SMS

Hoje está uma linda tarde de sol. Os vinte e nove graus centígrados embalados por uma leve brisa lembram o verão que ainda vem longe.

Renegando o hábito, sentei-me a uma mesa, noutra esplanada. Há por onde escolher. Tento alterar uns hábitos, mantendo-me fiel a outros. As obras de remodelação do Chico Lobo descaracterizaram o espaço e eu, como não tenho contrato assinado que me obrigue a fidelização, mudei de lugar no mesmo espaço. Repete-se a Praça Rodrigues Lobo, mas agora vejo-a numa rotação de cento e oitenta graus. 

A sensação é de conforto. Este lado da praça é mais abrigado. Nem se sente a leve brisa que agita as folhas das árvores junto à esplanada do Chico Lobo. Rodeia-me gente nova brincando com computadores e telemóveis ente goles de cerveja. Não gosto da mesa a que escrevo. Faz-me sentir absorvida pela multidão que me rodeia. A cadeira balança devido à irregularidade do piso e, de vez em quando, aproveito o embalo. Gostaria de apreciar melhor o desenho do pavimento da praça que me chega em farrapos dispersos entre pedaços de gente e que o tolo que todos os dias se arrasta por aqui discursando junto de quem por piada o anima, tolos também, mas de tolices outras, se calasse.

Detenho-me... Parece que a vida moderou o passo e segue lentamente, sem pressa de chegar seja onde for. 

Alguém me pergunta por SMS: “Estás a curtir este dia já com algum calor?”, forma simpática de me perguntar onde estou. “Saboreio a vida.” – Apressei-me a responder e alongo-me pela folha da agenda, improvisado bloco de notas, aberta à minha frente. As palavras que vou tecendo esbarram noutras que haviam chegado antes: “Durmo e acordo. Frio e silêncio. A tua ausência.” Sorrio. Copiara para a agenda, para voltar a tropeçar nele, o pedacinho de ternura com que alguém numa noite de insónia me lembrara. “Olho e não vejo. Sol ameno e brisa leve. A tua lembrança.” Seria, neste momento, a resposta que não seguiu.

Quantos chás prometi sem que os bebêssemos?!
E fechei a agenda disposta a partir…