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quinta-feira, 23 de outubro de 2014

SEMPRAUDAZ - ASSOCIAÇÃO CULTURAL


Sonhei com lúcidos delírios
À luz de um puro amanhecer
Numa planície onde crescem lírios
E há regatos cantantes a correr.
Sophia de Mello Breyner Andresen

Uma mulher comprometida com o conhecimento sonhou. Sonhou transmitir o saber para além dos anos para os quais a sua profissão de professora de Filosofia lhe permitira fazê-lo, no ensino público. Incapaz de permitir que a vida se esvaísse no corredor da esperança, Helena Moreira Duarte Carvalhão, figura incontornável da história de Leiria, na segunda metade do século XX, soube imprimir movimento ao sonho e, após a aposentação, fundou no início de 1999 a primeira Academia Sénior da cidade de Leiria. Nascendo assim, da sua vontade férrea e do voluntariado de várias professoras e professores amigos a Academia de Cultura e Cooperação, com o apoio da Câmara de Leiria e da Misericórdia de Leiria, entidade que cedeu as instalações onde, durante treze anos, funcionaram as diferentes atividades que, entre vários objetivos, tinham o fim de arrebatar ao isolamento, mantendo ativas e fazendo sentir-se úteis pessoas com idade superior a cinquenta anos. 

Com a promessa de uma sede própria formou-se posteriormente uma nova associação. Em 13 de Outubro de 2012, a Câmara Municipal de Leiria, através do Presidente Dr. Raul Castro, assinou com a Dra. Helena o protocolo de cooperação e atribuiu como sede própria o Edifício - Praça Eça de Queiroz à instituição recém-criada: Sempraudaz - Associação Cultural, da qual a Dra. Helena Carvalhão é a Presidente.


Dois anos são passados. A festa aconteceu segunda-feira. Do programa constou a conferência sobre Sophia de Mello Breyner Andresen, proferida pela Professora Teresa Vieira, a declamação de poemas pelo grupo de teatro e a partilha do bolo de aniversário, entre os convidados e associados.

Para a Sra. D. Helena, a quem admiro o extraordinário dom de antecipar o futuro e que por motivos de saúde não pode estar presente, deixo, com os sinceros votos de rápidas melhoras, as palavras de Sophia:

Feliz aquela que efabulou o romance
Depois de o ter vivido
A que lavrou a terra e construiu a casa
Mas fiel ao canto estridente das sereias
Amou a errância o caçador e a caçada
E sob o fulgor da noite constelada
À beira da tenda partilhou o vinho e a vida.
Isabel Soares
Jornal de Leiria, 16 de Outubro de 2014, modestamente na página 18.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

DÚVIDAS

Numa qualquer sexta-feira, fui ao médico.

“Não estou doente.” – disse ao clínico, um jovem pela idade da minha filha mais velha ou talvez nem tanto.  Ele levantou os olhos do PC. Agora os médicos interagem mais com os computadores do que com os doentes. E eu, para que não me tomasse por arrogante, ou presumida, ou como me quisesse chamar, emendei: “Bom! Penso que não estou doente. Isso terá de ser o doutor a avaliar, pois recai no âmbito das suas competências. O médico voltou a interessar-se pelo PC.

“Venho por uma questão que se prende com a qualidade de vida” – continuei – “nem tão pouco sei se poderei encontrar o que pretendo numa caixa de comprimidos.” O médico escrevia e eu desfiava o rosário das minhas ideias, pretensões, dúvidas, ou lá o que se queira chamar ao discurso que ininterruptamente proferia.

Quando me calei, o doutor desviou o nariz do PC, olhou-me, e num tom surpreendido sentenciou: “É uma senhora castiça, característica a que sabe muito bem aliar a inteligência.”

Eu sorri à leitura subjetiva que fiz do que acabava de ouvir, que não vem ao caso e lá vim com uma receita de pílulas que continuo na dúvida se devo ou não adquirir. No fim paguei setenta e cinco euros de consulta.

Conclusão: Castiça poderei ser, quanto à inteligência… tenho sérias duvidas. Pregar aos peixes ter-me-ia saído muito mais barato.


terça-feira, 12 de agosto de 2014

A CARTA DE CONDUÇÃO


“Por que não tiras a carta de condução?” Não havia quem não perguntasse. E alguns até acrescentavam: “Uma rapariga tão despachada como tu…” Ela ria-se. “Ora, gosto mais de acelerar nos sofás da sala.” - e dava a conversa por terminada. Só que a questão voltava a ser-lhe posta. Ninguém entendia as suas razões que, verdade seja dita, ela também não revelava. Era um “porque não” implícito, que ninguém aceitava: “Hoje a carta é uma necessidade e não um luxo” – havia quem sentenciasse. E ela sorria. O sorriso substituía o esclarecimento que negava.

Ela tinha um segredo. Ora todos sabemos o que é um segredo. Só não sabemos, como ninguém sabia, qual era o seu segredo. Nem sequer havia quem suspeitasse que existia um segredo. Tão alegre, tão faladora, tão espontânea! Segredos?! Nem pensar. Pois havia mesmo um segredo! E se era segredo, como o poderia revelar? Era por não poder responder que sorria. Sorria e calava a razão pela qual nunca pensara aprender a conduzir um automóvel. Aquele motivo, segredo inconfessado até à mãe, era uma limitação que ela aceitou, como aceita tudo o que a vida lhe proporciona e não sabe ou não pode alterar. Era a sua circunstância e tratou de ser feliz com ela.

Como o tempo não para, a vida foi acontecendo.

Desde pequena que usava óculos, melhor dizendo, deveria usar. Se os cuidados da mãe se aligeirassem, esquecia-se de os colocar. Já em adulta, brincava: “Sem óculos vejo o ordenado inteiro, se os coloco fico com metade”. Ela sofria de hipermetropia e achava que via muito melhor sem óculos do que com eles, o que até era verdade. Possuía uma extraordinária visão de longe e de perto, só após muito esforço é que os olhos lacrimejavam. Para quê os óculos?!

O oftalmologista insistia: “Use os óculos. Ao longe, com eles colocados, vê tanto como uma pessoa com visão normal” “mas vejo menos” - respondeu naquele dia. O oftalmologista, com ar fechado, encarou-a e sentenciou “mas tem problemas por não usar os óculos.” Ela olhava-o desafiadora e o médico continuou “nunca lhe aconteceu, à noite, quando viaja de carro, não saber para que lado é a curva da estrada?” Ela quase pulou da cadeira “o seu segredo!” Num misto de espanto e alívio, confessou ao oftalmologista que sentia essa limitação. “Por isso nunca pensei aprender a conduzir um automóvel.” “Pois então use os óculos, vai notar a diferença.”

Passaram muitos anos após esta consulta de “adivinho”. Garante quem sabe que ela tirou a carta de condução com o número mínimo de lições de código e de condução exigido por lei, que, até hoje, não sofreu qualquer acidente rodoviário e aprendeu que, na vida, até o irremediável deve ser questionado.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

INQUIETAÇÃO


O cenário era o da mata dos Marrazes da sua infância. Aquele dos tempos dos piqueniques organizados pelo Atlético Clube da Sismaria, pelo dez de Junho. Não sabe a que propósito acontecia a festa, mas todos estavam animados. Vestia a sua idade atual e estava contente, como todos os que a rodeavam e eram muitos. Não sabe quem estaria responsável pelo bar: se o Sr. Chico, se o Silva Gante, se outro membro da direção do ACS daquela época.

Quis pagar, nem sabe que despesa. Meteu a mão na carteira, sem olhar. Como ao tato faltou o porta-moedas, prestou atenção: “Fui roubada.” - concluiu num misto de indignação e insegurança. “Pagar a conta! Como? – Preciso de dinheiro.” Não podia ir ao Multibanco – os cartões de débito haviam desaparecido com o porta-moedas. “A casa! Tenho de ir a casa!” Apressadamente procurou as chaves, mas nem a do carro, nem a da porta. Também a bolsa onde as guardava tinha sumido… Restava a Carma, a empregada que tem uma chave para entrar quando não está para lhe abrir a porta. Mas ela não sabia onde morava a Carma. Na paisagem onde tudo acontecia, o bairro onde reside a empregada, cem metros de ladeira a descer para o Sampão, não existia. 

“Como é que faço? Como é que faço?” Até os documentos de identificação haviam desaparecido...

"Ninguém me conhece. Como é que faço? Como é que faço?


“Não fazes de maneira nenhuma. Não precisas de fazer!”- ouviu-se a exclamar. Ido o pesadelo, com o sono por dormir, acabara de acordar.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

AMIGAS

A tia entrou e alongou-se pela sala, ocupando um lugar do lado direito. Ela encontrava-se já do lado esquerdo. Não se conheciam pessoalmente, mas sabiam da existência uma da outra.
Terminadas as exéquias, ela atravessou a sala. A tia era a única pessoa da família a quem ainda não apresentara condolências.

- Perdão.  – disse a senhora – Não estou a reconhecê-la.
- Chamo-me…
- Ah! Sei bem quem é… - (E os olhares acariciaram-se mutuamente.)
- Queria dizer-lhe…
- Sei que é uma pessoa alegre. Muito obrigada pelos momentos de alegria que proporcionou ao meu sobrinho.

Ela ficou sem jeito. Sorriu. Sorriu balbuciando:
- Gostei de a conhecer. Que pena ter sido nestas circunstâncias!
Depois, encaminhou-se para a porta e saiu atrás dos outros.

Ao sentimento de perda pela morte do amigo, aliava a falta daquela amizade que só não fora porque ela se esquivara a conhecer a família.
- Temos muito tempo. – dissera tanta vez.
Afinal o tempo fora escasso. Mas uma dor bastava, estrangulou aquele acréscimo de tristeza: “sabes lá se seriam amigas…”

Quanto tempo passou? Que importa?!

Há dias, aproveitando uma tarde amena, ela sentara-se na esplanada do café habitual e vagava pelas páginas de um livro. Alguém vindo por detrás enfiou-lhe os dedos nos cabelos acariciando-lhe o alto da cabeça. Nem se mexeu. Saboreou a carícia…

- Olá! – e a tia sorria – Há quanto tempo não nos vemos?!
Levantou-se e cumprimentou a senhora.

Seriam amigas, sim!



terça-feira, 27 de maio de 2014

LUGAR NENHUM


Espreitou por entre os vidros daquela janela larga… A chuva caía. Abundante, na tarde cinzenta, lavava tudo. “As plantas agradecem” – pensou. Fosse menina e escapar-se-ia aos cuidados da mãe para também ela se lavar, lavar a alma celebrando a chuva, no jardim. Só que então nem sabia que tinha alma e agora não tem jardim. 

As flores avulsas da varanda tremelicavam ao impacto das grossas gotas. Apeteceu-lhe movimento. Gosta da chuva. E então?! Há quem diga que tem mau gosto, mas ela sorri e responde resignada que há gostos para tudo.

Atravessou a casa e espreitou por outra janela a buganvília da vizinha no abraço bravio da ipomeia. Numa ponta do quintal, virada à rua, a nespereira sorriu no amarelo vibrante de seus frutos. Ela lembrou-se da velhota, que numa manhã de sol, puxava com o guarda-chuva as braças da árvore e se abastecia de nêsperas. “Fora hoje e já as levava lavadinhas, prontas a comer.” Sorriu. Nesse dia tivera pena da velhota e apetecera-lhe levá-la ao supermercado, mas ela sabia que não poderia oferecer-lhe nêsperas mais saborosas que aquelas que ela acabara de subtrair sorrateiramente à nespereira da vizinha.

Lembrou-se que também ela tinha nêsperas em casa, oferta de um amigo. “Hei-de semear um caroço, no vaso, para ver se cresce.” É assim com tudo, “para ver se cresce”, com os afetos como com as plantas, mas quantas vezes a terra do vaso é mais fértil que a bondade das almas…

Disposta a sair, vestiu um casaco e desceu as escadas. Enfiou-se no carro e partiu. Onde ia? Ia à chuva…

A musicalidade da água coloria a tarde parda. Ela conduzia devagar… Seguia para lugar nenhum. Lugar nenhum era o abraço que não tinha: “por mais que caminhe não sei como chegar à ausência” e conduzia estrada fora inebriando-se de verde, de um verde fresco, lavado do pó dos caminhos.


Parou frente ao mar a ver chover. Na beatitude da tarde, embalada pela chuva, aconchegada pelo oceano, adormeceu…

segunda-feira, 26 de maio de 2014

GOSTO

E, na linha de pensamento de Robert Boutroux (séc.XIX) que afirmou que ao contrário de França em que as elites eram tudo e o povo não valia nada, em Portugal o povo era maravilhoso e as elites deixavam muito a desejar... a crónica de Ferreira Fernandes, do Diário de Notícias de hoje:

Um povo que merecia melhores líderes
por FERREIRA FERNANDESHoje

Se os juros pedidos aos países não fossem baseados na tanga, Portugal, depois do dia eleitoral, deveria ter hoje banqueiros à porta - e não seria para resgatar dívidas mas a emprestar dinheiro. A custo zero, ou quase. Já tenho idade suficiente (tenho mais de três anos, vivi os bombardeamentos de 2011: "Chiu, não assustes os mercados...") para saber medir a nossa condição: Portugal é o país social e politicamente menos assustador da Europa. Não digo que isso seja bom em tudo (tanta calmaria também atrai líderes xoninhas, de olhos baços e bananas), mas em matéria de juros, merecia tê--los baixos. Ponto. Sobretudo quando à volta é o estilhaçar da Europa: no Reino Unido a surpresa é o UKIP que quer sair da UE, em França a sulfurosa FN ganha, na Grécia são vedetas o esquerdista Syriza e a extrema-direita Aurora Dourada, populistas austríacos e caceteiros húngaros marcam, é eleito um grupo de alemães anti-UE e, talvez, um eurodeputado neoazi, os espanhóis PSOE e PP afundam... Arraial doido enquanto os portugueses não se deixam iludir com sereias e insistem em não votar com a cabeça quente. Não é fidelidade, coisa de lacaios, é prudência, qualidade hoje rara nos povos. E se há povo que tenha sido sujeito a governos sem soluções e oposições sem alternativas, é este. Sujeito, pagando com dor e raiva - mas sem desespero, como ontem mais uma vez mostrou. Que sorte, que desmerecida sorte, têm estes partidos e líderes do centrão.


quinta-feira, 15 de maio de 2014

SMS

Hoje está uma linda tarde de sol. Os vinte e nove graus centígrados embalados por uma leve brisa lembram o verão que ainda vem longe.

Renegando o hábito, sentei-me a uma mesa, noutra esplanada. Há por onde escolher. Tento alterar uns hábitos, mantendo-me fiel a outros. As obras de remodelação do Chico Lobo descaracterizaram o espaço e eu, como não tenho contrato assinado que me obrigue a fidelização, mudei de lugar no mesmo espaço. Repete-se a Praça Rodrigues Lobo, mas agora vejo-a numa rotação de cento e oitenta graus. 

A sensação é de conforto. Este lado da praça é mais abrigado. Nem se sente a leve brisa que agita as folhas das árvores junto à esplanada do Chico Lobo. Rodeia-me gente nova brincando com computadores e telemóveis ente goles de cerveja. Não gosto da mesa a que escrevo. Faz-me sentir absorvida pela multidão que me rodeia. A cadeira balança devido à irregularidade do piso e, de vez em quando, aproveito o embalo. Gostaria de apreciar melhor o desenho do pavimento da praça que me chega em farrapos dispersos entre pedaços de gente e que o tolo que todos os dias se arrasta por aqui discursando junto de quem por piada o anima, tolos também, mas de tolices outras, se calasse.

Detenho-me... Parece que a vida moderou o passo e segue lentamente, sem pressa de chegar seja onde for. 

Alguém me pergunta por SMS: “Estás a curtir este dia já com algum calor?”, forma simpática de me perguntar onde estou. “Saboreio a vida.” – Apressei-me a responder e alongo-me pela folha da agenda, improvisado bloco de notas, aberta à minha frente. As palavras que vou tecendo esbarram noutras que haviam chegado antes: “Durmo e acordo. Frio e silêncio. A tua ausência.” Sorrio. Copiara para a agenda, para voltar a tropeçar nele, o pedacinho de ternura com que alguém numa noite de insónia me lembrara. “Olho e não vejo. Sol ameno e brisa leve. A tua lembrança.” Seria, neste momento, a resposta que não seguiu.

Quantos chás prometi sem que os bebêssemos?!
E fechei a agenda disposta a partir…


terça-feira, 1 de abril de 2014

OUTRO ANIMAL DOMÉSTICO


Jantávamos os quatro: o André, de oito anos, a Rita de dois, o Afonso, um dos seus primos direitos, com três anos de idade e eu. Circunstâncias adversas haviam-nos juntado nessa tarde de domingo, dia trinta de março, cabendo-me cuidá-los até que os pais chegassem.

A Rita aproveitava magistralmente a circunstância de o Afonso se encontrar pela primeira vez ao meu cuidado, pois isso fazia com que eu atendesse às suas exigências, dado que era necessário que ele não sentisse a falta da mãe e do pai. Ora se eu fazia todas as vontades ao Afonso, também podia atender às dela… Como ele não gostava de sopa, ela a comê-la com apetite, também não gostava; o Afonso não gostava de cogumelos, ela farta já de os comer, também não queria… E o jantar ia decorrendo entre colheres de sopa e garfadas de arroz com a minha paciência à mistura.

A certa altura, O André dirigiu-se ao Afonso:

- Diz o nome de um animal selvagem. 

E da boca cheia do Afonso saiu “leão” embrulhado em bagos de arroz e bocadinhos de carne.

- Avó, como se chamam os animais que podem estar em nossa casa?” - perguntou-me o André.

-  Domésticos.

- Afonso, diz um animal doméstico.

- Doméstico. - respondeu este pronunciando mal a palavra.

- Não é para repetires, é para dizeres o nome de um animal doméstico. – esclareceu André.

Eu apercebendo-me que Afonso não dominava o conceito, dei uma ajuda:

- Gato, cão…

-Cão. - repetiu Afonso.

- Não digas avó. - Afonso, diz o nome de outro animal doméstico.

Então a Rita, de nariz no ar, sentencia:

- Outro cão.


sábado, 29 de março de 2014

AS PALAVRAS TRAEM-NOS


Há tempos, há atrasado, como diz a minha amiga IA, num lindo e calmo linguarejar nortenho, meti um amigo em trabalhos. Aliás, ele é que se deixou meter. Convenci-o, facilmente, diga-se em abono da verdade, a participar num concurso de poesia que decorreu ao longo de dez semanas. Só que o meu amigo, independentemente da sua atividade no âmbito da escrita, já estava mergulhado de corpo e alma num outro trabalho de grande responsabilidade, a concluir até final de dezembro. O tempo de que dispunha era pouco.

O meu amigo é um purista da língua, na linha de Vasco Graça Moura com um leve toque do surrealismo de O’Neil, embora garanta que tendo começado por ser neorrealista, hoje escreve livre de tendências e escolas. É também um contemplativo. A sua poesia tem um refinado sabor a serenidade. Usa preferencialmente os verbos no passado. E eu leio-o e sinto a confortável sensação de me debruçar na janela, numa tarde amena, admirar os dias que já foram, saboreando minuto a minuto aquilo que vivi; ou que me sentei à beira do regato a vê-lo, não fluir para a foz, mas alongando o olhar no sentido da nascente. O tempo parou e eu rebobino a vida, com a doce sensação de quem come un petit gâteau  e quando este  chega ao fim, tem hipótese de voltar ao princípio para voltar a saborear o mesmo petit gateau e usufruir o mesmo paladar, vezes sem conta, até se saciar da ternura da vida.

Durante o concurso, os temas sobre que se deveria escrever, eram sugeridos semana a semana e o poema urdido deveria ser enviado, obrigatoriamente, até às zero horas de domingo. Numa qualquer semana, o poema, sempre até às vinte e cinco linhas, teria de conter cinco vezes a palavra “toque”. O meu amigo escreveu um desencadear lindo de versos, que me pediu que lesse em primeira mão. Falava de tempo e da espera da amada, certo de que ela vinha e ia sonhando, acariciando a textura dos lençóis onde se deitara, os passos que quebrariam o silêncio da tarde, pisando o saibro do caminho. E no suave encantamento das palavras quase se conseguia ouvir o pensamento do poeta, até ao último verso que, devendo conter toda a intensidade poética do poema, resultara frouxo.

“Não precisas de esperar. Adivinha-se que tens a amada junto a ti.” Escrevera eu no email de resposta, onde dei a sugestão de alteração. E de facto o meu amigo vive uma relação calma e harmoniosa há alguns anos. Isso estava ali, claramente expresso no último verso daquele poema.

Por essa altura, eu andava muito triste, tinha morrido a minha madrinha de casamento, que mais do que isso fora um dos fortes pilares do templo onde me acoitei enquanto crescia e nem sei se na cabeça, se no coração, ou mesmo nos dois lados, era Saúl Dias que me lembrava:

Havia
na minha rua
uma árvore triste.

Quebrou-a o vento.

Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando partiste...)

E o último verso, contendo tão elevada carga poética, que sem ele nem haveria poema, trouxe-se me à lembrança o trabalho do amigo. “Até a minha sugestão é mole” – pensei.

Ia a caminho de Lisboa, a Rita estava doente e eu acelerava na autoestrada como já não fazia desde o acidente da Z.. Diminui o andamento e envie-lhe um sms com nova sugestão.

Ele ligou. “Quase não tiveste tempo de ler o sms… “ – comentei. Que não, que não tinha recebido nada. Fora por acaso que se verificara a sequência. Já em Lisboa percebi porquê. A mensagem não lhe fora endereçada. Como utilizo sms antigos para enviar mensagens mais rapidamente, escolhera um, carreguei em “responder”, só que não fora num dele e lá seguiu a recado para quem estava a seguir… A conduzir, nem reparara na troca.

Debatemos o assunto e o final terá (ou não) sido alterado… Nunca me preocupo em saber.

Posteriormente, de outra pessoa, recebi um sms: “Sim, eu sei como é difícil não pensar que sou uma sonsa dissimulada…”  Seguindo o mesmo tipo de raciocínio, pergunto: a quem lembraria escrever tal coisa?

segunda-feira, 17 de março de 2014

LISBOA, 16 de MARÇO de 2014


Depois de uma semana mal dormida, não por falta de sono, mas por falta de horas, associada ao passeio  pela Judiaria de Leiria, na manhã de sábado, pus-me a caminho de Lisboa.

Esperava-me a sétima comemoração do aniversário. Se não apagasse as velas com os netos corria sérios riscos de não ter feito, mais uma vez, os habituais trinta e cinco anos.

Ao longo dos quilómetros as vértebras lembraram-me que não ia sozinha, a sacroiliite assobiava de mansinho uns "ai que me dói" e o pé esquerdo marcava o ritmo, por baixo do atos. Desta, acabo a minimaratona de "charola"..., pensava.

O tempo gagueja há vinte e nove anos, mas nada o detém...

Domingo de manhã, a filha mais nova, habitual companheira de folguedos, arrancou-me da cama pelas orelhas e ainda estava a esfregar um dos olhos e já a Maria Albertina telefonava, receosa de não chegar a tempo de ganhar os cinquenta mil euros atribuídos a quem batesse, em tempo, o record do mundo, na Maratona de Lisboa.

Este ano o ponto de encontro foi a estação do Metro, em Sete Rios. E o que ela telefonou... "Já estás no Metro?", "Vou a caminho..."; "Em que estação estás?"...



Encontro em Sete Rios, estação do Metro. Da esquerda para a direita: Albertina, Teresa e Conceição.


A pose para a posteridade.E a Ró ao telefone... esperava-nos no Pragal.


Estação do Pragal: encontro com a Ró.  A Banda Filarmónica comemorava o acontecimento...



E quem as tirava de lá? Estavam encantadas com as "gaitas"


Lá fomos andando. Momento do protetor solar. Já todas tínhamos e para prevenir a Teresa levara de uma das suas perfumarias (cumprindo as "ordens" da Albertina)


O dia parecia de primavera.



As  mimosas estavam lindas!

Alguns enfiaram-se num saco de plástico. A sauna dos pobrezinhos...


E toca a andar até à meta... Dois quilómetros extra prova ninguém nos tira das perninhas...


Aconselhava um cartaz...  "Obrigada pelo recomendação. Já somos. E além de livres, tontas. Por isso é que estamos aqui..."


E Cristo disse: Perdoai-lhes Senhor, que não sabem o que fazem... " 
Éramos ao todo 40 000 almas!


A Albertina quis logo aproveitar a boleia... "Calma! Ainda tens de palmilhar uns quilómetros..."


Passámos a portagem, aproximando-nos da linha da partida.


Pose para a posteridade sem a Ró. Já a tínhamos perdido...


Na fila do WC... Tudo é motivo de festa.


Este ano não perdeu as calças... atempadamente mandara renovar o elástico. 


Mandaram-nos pôr a mão no ar...


Este era o senhor que contava as mãos.


Este o que dividia o número de mãos contadas, por dois.
O controlo este ano foi muito apertado. As inscrições foram abertas até às quarenta mil. A ponte não aguentava com mais gente. Tudo verificado, era hora de avançar. Os cinquenta mil euros esperavam-nos...


FOLLOW ME! E nós "folámezio"...


A manifestação ia na PONTE! 
(A foto não é minha e desconheço o dono. "Roubei-a" no Facebook)

E quem e quantos seguiam atrás das palavras de ordem?


Muitos! Uns a pé, outros de carro...


Outros de helicóptero...


A TAP também se fez representar...


O Che veio apoiar-nos


A Arábia Saudita também mandou um emissário...


Seguia uma família inteira com o chefe à frente.


 Não faltaram os Kágados. (Desconhecemos se todos tinham acento gráfico, mas não quisemos averiguar)


Não faltaram os caracóis furiosos.


A Minnie...


Estilistas de renome. ("Que gira está a vossa T-shirt! Posso tirar-vos uma foto?" - Que sim, que podia. E eu tirei)


Modelos de alta costura...


Alguns, para se sentirem protegidos...


... levaram mascotes...


E a comandar as operações????


Ela!!!! A maior da PONTE!


Aos 2Kms encontrámos a Ró...


Festa!!!!


"Vamos lá dar um ar sério ao encontro." E elas por um segundo, portaram-se bem...


"Mas há sítio onde uma inspetora de trabalho não apareça?" Não! decididamente as "pestes" encontram-se até no meio de 40 000 comuns mortais... :D Resultado da "luta": perdera um bocado da T-shirt...


Vencido o "mau bocado"... a pose das artistas!


A Ró apanhou funcho e queria ir fazer arroz, mas os que vinham a seguir (e eram  muitos) não a deixaram voltar para trás.



Aqui perdi-me. Elas foram aos "couratos", numa tasca à beira da estrada (soube depois - assim como é mentira, poderia ser verdade... Eu é que fiquei pasmada a ver sei lá o quê...)


E eu sem ter quem me levasse pela mão...


O senhor de costas pulava: "Boa corrida! Governo para a rua!" Ah, Valente! Há sempre resistentes...




E as palavras de ordem repetiam-se de 50 em 50 metros...




Eram muitos os que nos animavam a continuar: "Ainda aí estão? Gritem connosco!"


Estive mesmo para ficar por aqui...



Animou-me a hipótese... mas ainda não foi desta que consegui as tais verdes que quero...


  "Esperem aí!" Disse o telemóvel. Havia duas senhoras perdidas...


Finalmente, a meta...
O pior tempo, mas muita conversa, muita brincadeira, muito avanço e espera. "Perdi-me! Onde estão???"
Muito riso, muita amizade. 
Mais uma manhã bem passada, entre amigas.


Filmaram a nossa chegada.

A medalha: frente e verso


Hora da banana...





E do gelado...


E das gulosas...


E de novos projetos: "Para o ano traremos tu-tus de tule..."


Feitas as despedidas, fiquei sozinha.
"Quero a minha filha!!!!!" 
Ela havia-se escapado... Queria medir com rigor o tempo do percurso e estava há horas a banhos de sol, no relvado em frente ao Mosteiro dos Jerónimos, à espera que eu chegasse. E encontrá-la????


As minhas sapatilhas cansadas ficaram em Lisboa (no lixo)...

Para o ano haverá mais...