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terça-feira, 10 de outubro de 2017

TEMPERO


Hoje, almocei na Tasca da Gracinda. Fui despedir-me das sardinhas assadas, que a época em que sabem bem está quase ida. Sábado passado fora o dia escolhido pelos amigos para o efeito, só que nesse dia eu não pude comparecer. Tive outro almoço em que se celebrava a amizade de dois anos de curso, vividos entre estudo e falta dele, aflições e brincadeiras, na Escola do Magistério Primário de Leiria, já lá vão quarenta e sete anos… Não tive coragem de pedir aos amigos que adiassem as sardinhas para outro sábado. Sim, só há sardinhas ao sábado ou à terça, nos dias de mercado.
Cheguei cedo. Antes telefonara a confirmar o menu do almoço. Sentei-me sossegada num dos cantos e esperei pacientemente pelas sardinhas a que uma sopa de feijão com nabiças roubaria metade da vontade de saborear.

Ele chegou e cumprimentou os amigos, que lhe ofereceram lugar na mesa que ocupavam do outro lado da sala. Embora o espaço seja exíguo, só reparei porque aquele homem, muitos anos de leis e barra de tribunal (imaginei eu) chegara num gesto tão largo e tão sonoro que seria impossível passar despercebido. Não aceitou partilhar aquela mesa “não vale a pena ficarmos todos mal sentados” – ouvi, já desligada da cena que não chegara a interessar-me, mergulhada de novo nas sardinhas…

“Posso ocupar este lugar na sua mesa?” O cavalheiro acabara de me cair no prato… “Com certeza! Queira sentar-se” – retorqui. “As sardinhas estão boas?” “Ofereço-lhe a que está na travessa, para que possa avaliar” - que não, que viriam outras para si… “Como explicar a este homem que estou a brincar aos caranguejos?” – perguntei aos imaginados botões da camisa que não vestia. Em pequena escondia-me no quarto escuro, com a cabeça de fora, sonhando as formas das coisas que lá se arrumavam, depois habituei-me a mergulhar em mim, olhando a vida e ouvindo-a, não como ela é, mas como gostaria que fosse. (Agora que estou cronicando, reparo que fui uma criança estranha de que resultou uma adulta meio esquisita…)

Não sei como, ouvi-nos a falar do bacalhau de que a sua amiga finlandesa não gostava “e eu com isso?” (“frase idiomática” com que no vocabulário familiar dizemos que o assunto não interessa) - pensei, não disse… e lá fui respondendo e sorrindo à conversa de ocasião. A minha mãe, se visse, orgulhar-se-ia… Tão educadinha e simpática, que a sua filha estava a ser…
Afinal não havia mais sardinhas. “Fez mal por não ter saboreado a que lhe ofereci! A sardinha havia voltado para trás na travessa.
O senhor escolheu outro prato e eu, que acabara de almoçar, saí depois de lhe desejar uma excelente tarde.

A caminho do carro arrumado morro de São Gabriel acima, confirmei-me mergulhada noutra etapa da existência. Passara tantos anos entre angústias e medos de errar, vencendo desafios constantes muitas vezes a fazer o que não sabia naquela filosofia do que “se não sei aprendo”, que agora só o que me traz paz me dá felicidade. Homens como aquele nunca seriam bom tempero para as minhas sardinhas.