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domingo, 27 de janeiro de 2013

PORTUGAL PORQUE SIM

(...)


Podia pedir-te e dar-te contas
de tudo aquilo que sonhámos e não alcançámos.
Podia fazer tudo isso e muito mais,
mas prefiro vislumbrar na tristeza dos teus olhos
a ternura com que segues o rasto das aves e das estrelas
e depois abraçar-te e dizer-te: meu querido Portugal,
serás, até ao fim, a luz que não se apaga nem se rende
quando sonhamos com tudo aquilo que ainda te falta ser.

                                     José Jorge Letria

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

CALA-TE



Cala-te, voz que duvida
e me adormece
a dizer-me que a vida
nunca vale o sonho que se esquece.

Cala-te, voz que assevera
e insinua
que a primavera
a pintar-se de lua
nos telhados,
só é bela
quando se inventa
de olhos fechados
nas noites de chuva e de tormenta.

Cala-te, sedução
desta voz que me diz
que as flores são imaginação
sem raiz.

Cala-te, voz maldita
que me grita
que o sol, a luz e o vento
são apenas o meu pensamento
enlouquecido….

(E sem a minha sombra
o chão tem lá sentido!)

Mas canta tu, voz desesperada
que me excede.
E ilumina o Nada
Com a minha sede. 

José Gomes Ferreira


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

UM POUCO MAIS DE NÓS



Podes dar uma centelha de lua,
um colar de pétalas breves
ou um farrapo de nuvem;
podes dar mais uma asa
a quem tem sede de voar
ou apenas o tesouro sem preço
do teu tempo em qualquer lugar;
podes dar o que és e o que sentes
sem que te perguntem
nome, sexo ou endereço;
podes dar em suma, com emoção,
tudo aquilo que, em silêncio,
te segreda o coração;
podes dar a rima sem rima
de uma música só tua
a quem sofre a miséria dos dias
na noite sem tecto de uma rua;
podes juntar o diamante da dádiva
ao húmus de uma crença forte e antiga,
sob a forma de poema ou de cantiga;
podes ser o livro, o sonho, o ponteiro
do relógio da vida sem atraso,
e sendo tudo isso serás ainda mais,
anónimo, pleno e livre,
nau sempre aparelhada para deixar o cais,
porque o que conta, vendo bem,
é dar sempre um pouco mais,
sem factura, sem fama, sem horário,
que a máxima recompensa de quem dá
é o júbilo de um gesto voluntário.

E, afinal, tudo isso quanto vale?
Vale o nada que é tudo
sempre que damos de nós
o que, sendo acto amor, ganha voz
e se torna eterno por ser único e total.

José Jorge Letria

domingo, 20 de janeiro de 2013

AINDA O NATAL

 Para o próximo ano terei de pensar noutra coisa. Já estou cansada de lacinhos. por acaso até já pensei... Não sei é se me apetecerá confecionar a nova decoração...






Antes de o André chegar, tirei todas as figuras do presépio, para que fosse ele a dispô-las como quisesse.

As ovelhas vão em fila ter com o pastor e atrás vai o carneiro para defender o rebanho. A avó nem havia reparado que havia um carneiro... ou se já reparara nem se lembrava...

Os Reis Magos já viram o Menino, podem voltar para o castelo que o cão está a guardar.

A camponesa leva um pato, mas não é a sério, é um pato para o Menino Jesus brincar.

-Ó avó, o anjinho o que é? Foi alguma pessoa que morreu? - E a avó sabia???





A Rita e a "tia" Chica

A Chica foi a irmã mais velha inventada pela Íris e pela Zara, para me fazer companhia quando não estavam em casa. Bem comportada, obediente e... amorfa. Era assim que a definiam. "É a tua filha preferida. Nunca refila."

Pois a Rita não gostou de partilhar o lugar com a tia Chica.

A quem sairá ela com este feitiozinho? 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

FLORES


A última vez que armada de máquina fotográfica passei junto daquele jardim, enamorei-me das orquídeas. A japoneira, como diziam em Quintiães ou cameleira, como dizem por aqui, ainda é um pequeno arbusto, uma linda promessa de árvore situada à direita, neste simpático jardim, como se adivinha pelas folhas que se veem na foto.

Dá flores brancas, para mim as mais bonitas camélias. Parecem feitas de organza, tal como aquela com que enfeito a lapela do casaco, em algumas ocasiões.

Hei-de passar lá, de propósito, para ver como vai a floração. Nas vivendas ao lado, há japoneiras com flores vermelhas, como a que havia no jardim da minha casa de Quintiães.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

SEM TÍTULO

Exposição: "Amália, coração independente"- Joana Vasconcelos - Janeiro de 2010

Hoje, apetecia-me sentar numa sala escura, encher os olhos de beleza e os ouvidos de sons suaves.
Que a beleza me esmagasse...


Ah! A Primavera não tarda e o "meu" jardim voltará a florir, na janela da cozinha...
(Como estará a japoneira daquele jardim?)

UPS!!!!!!!!!!!

Espreitei no jardim do António Nunes e "roubei-lhe" esta rosa. Estava mesmo a precisar de flores! Pode ser que ele nem dê pela falta. Parece que a rosa floriu num sítio recuado, recôndito, meio escondido do jardim... Há flores assim. Aparecem onde menos se espera. Ainda por cima parece que o anda a "baralhar"... Época imprópria! Acontece...

É amarela e eu gosto da luminosidade e da energia da cor. Aqui virou sol!

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

HÁ UM DIA ESPECIAL PARA TUDO


Ultimamente não tenho dormido bem. Entenda-se por dormir bem adormecer e dormir direitinho e profundamente, para acordar, fresquinha que nem uma alface, no outro dia de manhã, sem memória de sonhos. Há várias noites que acordava preocupada, quase de hora a hora pensando que era manhã. Pois esta noite dormira cinco horas seguidas e tendo acordado cedo, como é hábito, deixei-me ficar na cama à espera da Carma. Era quarta-feira. Logo que a ouvi enfiar a chave na fechadura, pouco passava das oito horas, levantei-me.

Os cumprimentos habituais, “como vai a mãe?”, conversa de circunstância e ala para o banho e vá de me cuidar. Tinha assuntos a tratar de manhã e antes tinha de fazer o almoço.

“Quero provar isso” –disse a Carma de nariz enfiado na frigideira em que salteava os marmelos com que tencionava acompanhar a carne que estufava. “Queria… se eu lhe desse”- brinquei. Os marmelos eram dos que me oferecera e não transformara em marmelada. Estufei a carne, fiz o arroz de cogumelos com brócolos porque, descuidada, acabara as ervilhas e não me lembrara de comprar mais e fiz-me ao caminho.

Entre outros assuntos a tratar, pretendia, por uma questão de boa educação, dar conta do estado de saúde de minha mãe e encaminhei-me para o escritório da senhora com quem pretendia falar. Não estava. E já tinha carregado no botão do elevador para a procurar noutro andar quando lhe ouvi o martelar dos saltos no pavimento. Vem lá, não preciso de descer – pensei sem me enganar. Conversámos, de uma forma que eu costumo classificar com uma expressão de gíria que não tenho coragem de escrever aqui, sem que a senhora, a dois passos do gabinete me mandasse entrar, ou entre um sorriso e outro revelasse grande interesse. Claro que o estado de saúde de minha mãe é importante para mim, não para ela, embora eu achasse que também deveria ser… Saí do edifício a remoer o que considerara uma falta de educação.

Almoço. Hospital. Ida à Câmara, agendada de antemão, para esclarecimento de uns assuntos da Sempraudaz – Associação Cultural e as duas secretárias do Sr. Vereador, avisadas por este da minha ida a receberem-me e à tesoureira da Associação, a quem, pedira para me acompanhar, de pé… Não sabiam responder às minhas dúvidas, menos ainda resolver o assunto e chamaram a funcionária que tratara dos ditos documentos. A menina entra linda, simpática e sorridente, aliás os sorrisos não faltavam por todo o lado, e começa a atender-nos, de pé… Aqui eu achei que já tinha a minha conta. Afivelei o meu sorriso de onze centímetros e disse: “Minha querida, eu já sou muito velha e relha para tratar consigo do que aqui me traz, de pé, com os papéis a voarem por todos os lados. Arranje sítio onde possamos falar calmamente e sentadas, de preferência em volta de uma mesa. Creia que o Sr. Vereador se aqui estivesse também nos receberia condignamente”. Encontrado o sítio no gabinete do Sr. Vereador, expliquei ao que ia, para tornar a adiar o assunto e saímos.

Reunião da Direção da Sempraudaz: pegava de novo nos malfadados papéis, quando um jovem abre a porta e pergunta para a Sra. Dona H.: “Você sabe… “ “A senhora, quer o jovem dizer” – Ah! Mas aquele “a senhora” deve ter saído num tal tom professoral que o rapaz olhou-me, deu as boas tardes e seguiu viagem.

Há um dia especial para tudo. Hoje foi o dia especial da má educação.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

A DIMENSÃO DAS COISAS


Eram cerca de vinte horas e trinta minutos quando, no sábado, saí do Hospital de Santo André. A noite escurecera a paisagem e o céu desfazia-se em pingos grossos e frios que caiam desapiedados sobre quem se aventurava pela rua.

Caminhava rapidamente na direção do parque de estacionamento número um, onde teria de pagar o estacionamento do parque número dois, onde tinha o carro, quando reparei numa mulher que, agarrada a duas canadianas, atravessava penosamente a estrada na mesma direção. Corri, aproximando-me.

- É melhor partilharmos o meu chapéu. É pequeno mas sempre dá para enganar a chuva. Olhou-me e sorriu.

- Deixe, não se incomode. Não está a chover muito - respondeu ela tentando alargar o passo.

- Não se apresse – foi a minha vez de sorrir – tenho todo o tempo do mundo e levo-a até ao carro. É para o parque que vai, não é?

Que sim, que era e não conseguia andar muito porque a coluna parara-a.

- Tenho hérnias, sabe? Já estou assim há quatro anos.

- Então e a operação? Ninguém aconselha?

- Não me garantem nada e assim ainda vou fazendo a minha vida. - Em condições dramáticas – pensei enquanto a ouvia enumerar as tarefas com que cumpria o quotidiano.
Curiosa, perguntei-lhe a idade. Pasmei, aquela mulher tinha menos dez anos que eu. E pensara-a tão mais velha!

- Então, tem cá alguém de família internado? - Que tinha o marido.

- Eu assim e o meu marido com a bacia partida! Mas sabe – e parou encarando-me – só que ele fique a andar, mesmo devagarinho e se possa sentar ao meu lado já fico muito feliz.

Eu estava estarrecida. Aquela mulher falava da desdita sem qualquer mágoa, com uma aceitação do infortúnio como se fora uma coisa natural. Não havia ressentimento, não havia o mais leve tom de lamuria na sua voz. Até conseguia sorrir.

Chegámos ao carro, abriu a porta, largou a carteira e procurava o cartão para ir à máquina pagar.

- Entre no carro e pare junto da máquina. Eu espero lá por si. Dá-me o cartão e pago-lhe o estacionamento, não precisa de ir até lá. Para que há de molhar-se mais do que já está?

- Mas tenho de dar a volta com o carro – disse ela apontando as setas pintadas no chão.

- Não lhe disse já que tenho todo o tempo do mundo?
Ela riu, entrando penosamente no carro.

- É uma sorte ainda conseguir conduzir. – E um perigo – pensei eu.
Encaminhei-me para a máquina e esperei que chegasse. Pelo vidro deu-me o cartão e uma série de moedas.

- Nem sei se chega.
Chegou e ainda sobrou dinheiro, não sei quanto seria porque nem contei. Devolvi-lhe o cartão e pretendeu que ficasse com o troco. Sorri:

- Nem pense – e despedimo-nos.

Fiquei na noite e na chuva vendo o carro afastar-se e tive vergonha. Tive vergonha de chorar por medo que minha mãe morresse. Tive vergonha do abandono que sinto com a sua doença. Tive vergonha da minha fragilidade.

Em tempos, li em qualquer livro, que quem é forte não é quem afronta o perigo, mas quem se mantém firme na adversidade. Aquela mulher acabara de dar-me a dimensão da minha pequenez. 

domingo, 13 de janeiro de 2013

AS TULIPAS

Eu fora ao hospital dar o almoço a minha mãe. Pouco passaria das catorze horas. “Agora vou eu almoçar”. Despedi-me de minha mãe e desci.

Percorri o longo corredor. Havia fila na Receção, seriam talvez pessoas a reclamar o respetivo Cartão de Acompanhante, mas eu não precisaria de esperar, bastava colocar no balcão o cartão que já levava na mão.

A jovem "segurança" de serviço, atendia com um sorriso divertido a primeira pessoa da fila. Um jovem, não teria trinta anos, carregava na mão esquerda um saco de plástico onde eram visíveis duas garrafas de água e, com a mão direita, religiosamente erguido e encostado ao peito, segurava um ramo de tulipas cor-de-rosa vivo. “Onde terá desencantado tão lindas tulipas?” – questionei-me, surpreendida pela beleza daquele ramo das minhas flores preferidas.

“Então não sabe onde está o seu filho?!” - pude ouvir à "segurança" na rapidez do meu gesto. “Não” – disse o jovem; “e que idade tem o seu filho?”, “nasceu ontem” e sorriu.

E foi um sorriso tão terno, tão doce, um sorriso tão luminoso, que as tulipas perderam a cor...

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

VIDA


“Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém não ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível? (…)

O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem.”

João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas

domingo, 6 de janeiro de 2013

AMIGO


Os amigos acolhem-nos no coração e surpreendem-nos de forma tão inesperada... e quase sempre nos momentos em que a vida teima em fragilizar-nos.

Gostaria de saber fazer uma ligação ao blogue do meu amigo Rui Pascoal. Não sei. Enquanto espero que alguém me ensine... Fica aqui a sugestão

http://tintacompinta.blogspot.pt/ - Caracol, Caracol, Põe os pauzinhos ao sol...

Festejemos a palavra AMIGO!





KILLING ME SOFTLY


E não tendo o poeta mais para dizer, pegou nas palavras e arremessou-as ao vento...
O eco brincou... cumpriu-se a música.




sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

OS CARACÓIS


Em pequeninos brincaram com caracóis? Eu brinquei. A minha memória recua até aos cinco anos. É normal. À época, eu residia com meus pais e irmão no primeiro andar esquerdo de um prédio de quatro fogos que tinha, em frente, pelo lado da entrada, depois de um espaço cimentado, um terreno de que o meu pai cuidava a meias com o vizinho do primeiro direito por desinteresse do que habitava o rés-do-chão direito. Por baixo de nós não morava ninguém.

Na metade da responsabilidade do meu pai, o Coquelimoque (tenho pena, mas não sei o verdadeiro nome do homem) cuidava de uma pequena horta e de um ainda mais pequeno jardim. Também havia árvores de fruto. Lembro-me bem do pessegueiro aonde, um dia, fiquei pendurada pelo cós do bibe novo que vestia. Na outra metade do terreno que não era da responsabilidade do meu pai, nem dependia do trabalho do Coquelimoque, eu estava proibida de pisar.

Havia também uma pequena casa de madeira, que o meu pai que, embora com pouca habilidade sempre adorou pregar pregos, construiu, penso que com ajuda de alguém entendido (estava bem feita de mais para ser só obra dele), para guardar as ferramentas e alfaias.

Nesse espaço, eu brincava livremente, sobretudo depois do almoço, período em que a minha mãe se dedicava à leitura e não gostava de ser interrompida.

Era então que eu dava um jeito nas couves. As acabadas de plantar estavam sempre tombadas, tristes e eu tentava endireitá-las, alegrá-las, mas, defeito do Coquelimoque que as plantara mal, ou excesso de zelo meu, aquelas em que mexia acabavam invariavelmente na minha mão. As que sobreviviam aos meus desvelos, ganhavam folhas aonde se deleitavam caracóis.

Eu gostava dos caracóis, daquele deslizar verde, lento e silencioso, pela couve rugosa com os pauzinhos ao sol. E queria ajudar. Achava que na borda do tanque de lavar roupa, superfície lisa de cimento, já tão polida pelo uso, deslizariam melhor. Levava-os para lá. Os caracóis, mal lhes tocava, encolhiam-se na concha e não havia jeito, nem modos de os fazer sair.

“Caracol, caracol, põe os pauzinhos ao sol…” e ele não punha, por muito que insistisse.

Há pessoas assim. Quando nós pensamos que deslizam calmamente na nossa direção, que nos desnudam a alma e permitem a nossa aproximação, enconcham-se. Ora, se se enconcham é porque não confiam, ou porque não querem que os conheçamos, ou porque sim (a melhor de todas as razões para tudo). Não há nada a fazer, a não ser respeitar os seus avanços e recuos, a sua forma de deslizar pela vida. 

Na verdade também sou assim (haverá alguém que não seja?). Desnudo a alma umas vezes e escondo-a muitas mais. Ainda há dias, há noites, para ser mais precisa, um amigo, um velho amigo, que me apanhou a espreitar, fora de horas, no Facebook, me enviava um poema noturno seguido de uma mensagem: "Também podias escrever uns poemas noturnos, quiçá marcados pela insónia." “Lá poder, podia... (respondi eu) É por pudor que não o faço. Gostaria que o melhor da minha alma fosse para um homem. Para o meu homem. Depois, também tenho uma certa caridade por quem me pudesse ler. Acho que nunca escrevo suficientemente bem para encantar os outros. Problemas de autoestima”.Fechei o PC e deitei-me. 

O caracol de todo esticado na folha de couve, recuara apressadamente para a concha. Depois fiquei com remorsos. “Por que razão fora tão intempestiva?” Bastaria dizer que não sofro de insónia. Que sofro de lonjura. Que às vezes a minha alma é um mar tempestuoso e que eu, barco de papel, em noite de breu, agarrada ao leme, vogo assustada nesse imenso oceano, sem carta de marear, nem bússola com que defina a rota.

Quisera possuir a força de que me julgam feita. Não passo de fraqueza reciclada. 



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

O SEGREDO


Em menina, viajava muito de comboio. Obviamente! O meu pai era ferroviário. E só gostava de viajar em primeira classe, confortavelmente sentado naqueles estofos aveludados de cor granate protegidos por panos brancos aonde poderíamos, confiadamente encostar a cabeça. A minha mãe, que sempre gostou de se ver rodeada de gente, detestava o isolamento das carruagens de primeira classe e sacrificava o conforto do assento ao contacto com as pessoas. Normalmente o meu pai cedia, mas quando a enchente era grande cedia a minha mãe.

Eu era uma garota tímida, pouco faladora, que olhava tudo muito atenta a pormenores. Quem me conhece agora, rir-se-á descrente, mas, na verdade, sou uma tímida que aprendeu a comunicar, sem nunca ter perdido a consciência das mãos. “Tímido é aquele que tem mãos” – alguém terá dito. Por experiência confirmo que é verdade. Acontece-me ter sempre consciência das minhas quer me dirija a uma plateia e sou capaz de o fazer sem texto previamente escrito, quer quando faço teatro.

Pois nessas viagens, de que as maiores foram entre Lisboa e Tamel, sentada junto da janela, e no inverno, tantas vezes com o dedo, desenhando no vidro (o que não estava autorizada a fazer em casa), com a boneca no regaço ou deitada na pequena mesa que havia nas automotoras, gostava de olhar as pessoas. Apreciava o jeito como se acomodavam, se encostavam a cabeça, se cruzavam as pernas, se as abriam, se simplesmente as juntavam, se cruzavam os braços, se dormiam, se conversavam. Reparo agora, com espanto, que nunca me detive na roupa. Não recordo uma única cor a não ser o azul dos olhos de um senhor meio careca, que achei que deveria parecer-se com o Menino Jesus. Hoje sei que me focava em sinais de comunicação não-verbal. Porquê? Não sei. Sei que ainda hoje esses sinais me fascinam.

E lembro-me que olhava… Tinha um olhar calmo que pousava no que observava, persistente, um olhar absorvente, um olhar de mata-borrão. Quantas vezes me disseram: “Não olhes assim!” E se ainda hoje me distraio a olhar, as filhas reclamam: "Mamã! Excesso de atenção…" E eu ainda a achar que só olho porque gosto de ver, sobretudo de perscrutar para além do que os olhos vislumbram.

“Qual será o segredo do senhor careca?", “Qual será o segredo da senhora do totó’” …

Porque acharia que todos tinham um segredo? Talvez porque em nossa casa, onde todos ou quase todos os assuntos eram falados à mesa, havia alguns que eram segredo, havia alguns de que não poderíamos falar senão os quatro. Eram o nosso segredo.

E as pessoas saiam e entravam ao sabor das estações e eu a olhar: “Qual será o segredo?”

Hoje desci a pé até à cidade. Foi uma forma diferente de saborear o sol matinal. Andei pela cidade e antes de iniciar o regresso, sentei-me na esplanada coberta de “Aldeia dos Sabores”, na Praça Rodrigues Lobo e, enquanto bebericava o café, lembrei-me desta mania de menina por conta do senhor Fialho.

O senhor Fialho é uma doçura de velho que vive no Lar Emanuel, tal como minha mãe e muitas outras pessoas.

Não sei como nos tornámos amigos. Nem sei se foi ele que meteu conversa comigo se fui eu que tomei a iniciativa. Aconteceu. Seria talvez por conta dos trabalhos de tecelagem em que se empenhava, coloridos e perfeitos, ricos de cor e entusiasmo. A seguir foram as fichas de matemática e português que realizava nas aulas de animação e que gostava que corrigisse, sabendo-as rigorosamente certas. Enfim, vamos conversando e brincando um com o outro com a benevolente aquiescência da dona Delmira, a esposa e com alguma ciumeira da minha mãe.

Nos finais de Dezembro, um qualquer dia depois do almoço, quando apressadamente saía do refeitório, depois de auxiliar a minha mãe a comer, o senhor Fialho chamou-me. Voltei atrás. “A senhora que é professora, deve saber história e geografia”. Eu brinquei “dizem que sim, mas não sei se será verdade…” “queria fazer-lhe uma pergunta” – continuou ele “então força! Se souber, respondo” – animei-o. “Nos Estados Unidos há um prédio com doze andares (e eu condescendente com a ingenuidade do que acabara de dizer-me pensei “quantas vezes doze?!!!”) – ele continuava “o primeiro chama-se Janeiro; o segundo, Fevereiro; o terceiro, Março e por aí fora até ao décimo segundo que se chama Dezembro. Há um elevador que liga os andares. Sabe dizer-me como se chama o elevador?” e eu “ano”. O senhor Fialho riu-se “não, é carregando no botão”. Ri-me com vontade “seu malandro! Apanhou-me!” Um pouco mais atrás a dona Delmira também se ria “deixe lá que todos se enganam”. “Senhor Fialho, quantos anos tem?”- curiosa, queria saber. “Quantos tenho não sei, só sei os que já não tenho”. Bom, naquele dia, estava visto que eu não levava a melhor fosse como fosse, mas lá consegui saber que brevemente somaria noventa e três. Saí a rir “ora toma! O velhote comeu-te as papas na cabeça”.

No dia um deste mês, voltou à carga. “Diga-me se sabe esta: onde é que os homens têm mais carne pendurada?” “No talho”- respondi, transformando-lhe o sorriso maroto em desapontamento. “Estou a ver que já sabia esta. Hoje é o dia do meu aniversário”. Felicitei-o com dois beijinhos e a conversa ficou por ali.

Ontem, levantou-se da mesa onde tomara a refeição e aproximou-se daquela onde eu auxiliava a minha mãe.Interpelou-me: “Quando é que dois e dois não são quatro?” “Ah! Mas nem faço ideia!” brinquei perante a questão tão estafada. “Não sabe mesmo?” – ele fazia suspense, saboreando a vitória e a dona Delmira rindo lá da mesa: “ontem estava a morrer, hoje já inventa histórias…” “é quando a conta está errada” ”pois apanhou-me de novo!” e ri da sua satisfação.

Esta manhã, o mergulho na chávena de café trouxe-me à lembrança a questão sem resposta da menina que fui e em mim algo apontou de dedo esticado o senhor Fialho.

Todos estamos na vida, o segredo é a forma como estamos.

O Segredo é Amar

O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.

Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.

O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.

Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.

Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!

Fernanda de Castro, in "Trinta e Nove Poemas"


terça-feira, 1 de janeiro de 2013

CHEGOU





Reservei a este ano de 2013, dois abraços:

O primeiro



É um abraço verde, um abraço de esperança. A esperança de viver mais trezentos  e sessenta e cinco dias, com saúde e o afeto dos que me rodeiam.

O segundo:



É um abraço preto. Porque preto significa ausência de cor, é um abraço sem cor, recetivo às "pinceladas" de que se vistam os dias. Traduz a minha disposição para enfrentar a vida, seja ela o que for, com determinação e coragem. Queira Deus que consiga!

Para todos vós, tenho muitos abraços brancos, que são os que contêm todas as cores do arco-íris.