Primeiro vieram as filhas. Duas bonecas ruivas, que fizeram de mim uma mãe ditosa.
Acontece o mesmo a todas as mães: sentem-se únicas. Acham que só elas têm filhos, as mais bonitas crianças do “mundo e arredores”. Do mundo dos afectos de cada uma de nós e sobretudo dos arredores de todos os mundos passados, presentes e futuros, versos únicos de um mesmo poema: tempo, a que vulgarmente chamamos vida. A nossa vida!
Nada mais é igual. A multiplicidade do Eu, que os filósofos apregoam, ganha uma dimensão inusitada. Começa a tecer-se uma teia de afectos, como intrincado ponto de tricote: aqui ponto de meia, ali ponto de liga, aumenta uma, passa outra, dá uma laça, torce duas e por aí fora fazendo crescer em humanidade e cidadania, corrigindo equívocos, voltando atrás para poder continuar seguramente em frente.
Ah! Mas depois, sim, depois de termos transformado a fragilidade que aconchegávamos nos braços embrulhadinha em mantas coloridas, num cidadão ou cidadã de plenos direitos, temos a melhor das recompensas: os netos.
Há cinco anos nasceu o André. Um sorriso lindo e quente que me enche a alma de ternura e pronuncia a palavra avó abrindo o “a”, num jeito especial que soa como música aos meus ouvidos.
“Quem é o doce da avó Belita?” “o Andé” foi a resposta que antecedeu o uso dos pronomes. “Mamã, ao pé desse rapaz, pareces tolinha” reclamou um dia a filha a quem não estava a ser dada a atenção devida. “Não pareço, sou. Apresenta a reclamação à tua mãe. Aqui só está a avó do André. O balcão das reclamações abre no horário da sesta do petiz.”
Um dia o André reclamou: “Não quero mais beijinhos, nem abracinhos. Ó tia!” E veio a tia qual D. Quixote afrontando os moinhos de vento: “Cansas a criança. Deixa-o.” E logo o André “Avó, brincas comigo às lutas?”. O afecto também passa por encarnarmos o papel do monstro mau com três vidas que é vencido pelo forte que tem cinco. A nossa cultura no âmbito da Banda Desenhada, cromos e afins é que às vezes nos deixaria ficar mal vistos, não fora a benevolência daqueles com quem brincamos…
Ao fim de cinco anos de “Doce”, veio finalmente a “Bolachinha”.
Contrariando a tradição familiar que faz com que os recém-nascidos se apresentem ao mundo com uma farta cabeleira (que nunca chega a cair, como acontece com a maioria dos bebés) e obriga a que entre os sete e os nove meses de idade se tenha de recorrer ao serviço de alguma especialista da tesoura para que corte decentemente tanto cabelo, “a Bolachinha da avó Belita”, cidadã do mundo, a que foi dado o nome de Rita, nasceu careca. O pai garante que vai ser loira, mas, aqui para nós, a tal avó Belita, mal a viu desfez-se perante os encantos de mais uma ruiva.
“E os dedos?” - perguntam todos – “A quem sairá ela com uns dedos tão compridos?” e a avó Belita quando levanta os olhos do PC, pousa-os na imagem do bisavô Joaquim “Quelimanas”, o tal “marinheiro dos sete mares andarilho” cujo retrato, enlaçando ao colo a neta Isabel, lhe sorri da parede do escritório e retribuindo ternamente o sorriso, mentalmente pergunta: “A quem será?”
“E cravam-se no Tempo como farpas
As mãos que vês nas coisa transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.”
O Canto e as Armas, Manuel Alegre, 1967