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sábado, 31 de julho de 2010

COMENTÁRIO

Um amigo, a propósito do texto “O Rio” enviou-me o belo poema de Olavo Bilac, “Ouvir Estrelas” lançando-me o repto, não só de as ouvir, mas também de falar com elas.

Em resposta, permito-me copiar um pequeno comentário que, no Sábado, dia 7 de Junho de 2008, escrevi num dos vários cadernos de notas em que arbitrariamente escrevo.

Então, cá vai…

Esta semana, depois de tolamente ter adormecido no sofá e dormido até às três da manhã, tapada com uma manta da “Novis” feiosa de velha, que a Zara me ofereceu há anos, quiçá quatro ou cinco e que até a minha mãe já mandou embora do Lar, decidi, tendo em conta que por vezes se torna irremediável dormir enroscada feita gata, no sofá, que o deveria fazer com estilo. Assim resolvi, num acesso de criatividade pueril, fazer uma manta de estrelas para que usando-a, tenha sonhos mágicos.

Iniciei os recortes, depois de ir à cidade comprar feltro, na quarta-feira, dia 4. Tudo ao sabor da tesoura e do momento, sem esquecer a Boa Nova (todos quando estamos para nascer somos "A Boa Nova") nem a Estrela Polar, porque mesmo nos sonhos não podemos perder o Norte.

A Carma, que andava por aí ultimando as limpezas ficou encantada quando começou a surgir perante o seu olhar espantado um pedaço de céu. “Quando morrer deixe-me a manta em testamento”, pediu ela.

Com os restos das estrelas fiz flores, sim porque as flores só podem mesmo ser restos ou melhor, réstias de luz que as estrelas deixam cair na terra para nos alegrar.

Então terei duas mantas. Uma de estrelas sob a qual todos os sonhos mágicos são possíveis e uma manta de flores para que a Primavera me aqueça no Inverno do tempo e da Vida.

Nessa quarta-feira cheguei atrasada ao ensaio do teatro. “Ralharam” comigo e lá tive de explicar que a culpa era das estrelas. Agora andam todas curiosas e até a Dra. H. C. pergunta como vai a via láctea.

Terão de esperar para ver!

A magia precisa de pozinhos de perlim… pim… pim… para acontecer.



Amigos, aqui fica a prova de que as estrelas e eu vivemos em intimidade. Quando eu não consigo subir, elas descem do céu para que as pegue com as mãos…

Eu não sonho a dormir, sonho acordada e, de preferência de dia quando a única estrela que se vislumbra no firmamento é o Sol. Calor, luz e cor declamam VIDA em todos os momentos.

Se oiço?!

É dessa voz que se alimenta a minha alma.


domingo, 18 de julho de 2010

O RIO

O rio corria perto e exercia sobre ela um fascínio igual ao dos comboios.

Ir, ir sem olhar para trás… Só que, após breve ausência, os comboios voltavam sempre, só mudavam as pessoas, como se a linha férrea se estendesse à volta de uma laranja. Sim, porque se fosse preciso que o comboio marchasse em sentido contrário, conduzia-se a máquina até ao troço de linha, por cima do fosso que ela via do quintal e um homem rodava um grande volante até a voltar para o outro lado, depois atrelava-a ao último vagão que passava assim a ser o primeiro e o comboio seguia percorrendo o sentido de onde tinha vindo. E os comboios não chocavam porque os agulheiros juntavam os carris antes de eles entrarem na estação, de acordo com a gare em que deveriam parar.

No rio, a água corria e estava sempre ali, ia e permanecia cantarolando sempre. E o rio não parecia correr à volta da laranja, nem voltava para trás. Disseram-lhe que corria porque tinha pressa de chegar ao mar. E ela não entendia porque é que aquela corrida não tinha fim, mas achava bonito porque também gostava de correr.

Nos poucos tempos livres, o pai levava-a a passear até ao rio. Seguiam pelo carreiro que bordeava a linha, apanhando pedrinhas brancas, mas só as redondinhas que aqui e além sobressaíam na terra negra. Outras vezes seguia saltando de chulipa em chulipa, como se do trajecto não se adivinhasse o fim, ou caminhava a passos pequeninos fazendo equilíbrio no carril do comboio. O pai ajudava, dava-lhe a mão para que não caísse.

Chegados à ponte de ferro, que continuava a linha ligando as duas margens do rio, desciam por um carreiro apertado e íngreme. E de seguida era preciso saltar o colector de rega, que corria paralelo ao rio. O colector era largo e ia tão cheio… O pai saltava primeiro “vá, não tenhas medo, eu agarro-te” e ela tinha medo, mas saltava. Do outro lado aqueles braços abertos garantiam o êxito da façanha.

“O que ouves?” Prestava atenção. Primeiro só o rio, depois o vento assobiava entre as folhas das árvores e falava em voz alta no canavial “o príncipe tem orelhas de burro” ouvia como na história e os pássaros cantavam empoleirados nos arbustos e alguns insectos e batráquios completavam o coro.

No canavial, colhiam as folhas e nas silvas os picos, com que faziam os barcos que punham a vogar no colector. O rio era muito abaixo, não podia ser lá, mas não era isso que impedia a imaginação de partir à desfilada naqueles barcos-folhas que vogavam de mansinho. “Oh! Virou-se!” Era como na vida, aprendeu mais tarde: há coisas que parecem seguir muito direitinhas e tombam antes de se adivinhar o fim que pretendem alcançar. E na vida, tal como ali, não vale desesperar, temos é que fazer de novo. E lá ia outro barco pela água de rega, oceano improvisado no sonho da menina.

Por baixo da ponte na parte cimentada descalçava os sapatos e descia em correria louca a encosta íngreme, o pai travava-a na parte plana, mesmo na bordinha da margem, não fosse ela cair ao rio e ela voltava a subir e voltava a descer, até se cansar. E, se acaso passasse algum comboio, quando estavam debaixo da ponte, era uma emoção vê-lo ao contrário, a correr mesmo por cima da cabeça. Que susto! Que emoção! Que barulheira! Ela fugia sempre com os dedos espetados nos ouvidos, rindo e gritando “o comboio caiu-me em cima”.

E cumprido o ritual de subir à varandinha da cabine de onde se controlava a água de rega, depois de se esgravatar um ou outro buraco onde, no Inverno, se suspeitavam cobras em hibernação, iniciava-se o regresso. E voltam as brincadeiras no quintal.

Voltou mais tarde ao rio, em piquenique com as amigas.

E mais tarde ainda para ensinar às filhas o seu amor ao rio.

E volta sempre, pelo prazer do movimento em que a alma feita barco deixa vogar o pensamento.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

FIM

Foram muitas as pessoas que se cruzaram comigo na infância tendo deixado na minha vida marcas indeléveis.

Poderia ainda falar da Joaquina dos Pinheiros, empregada lá em casa, que ia comigo colher o musgo do presépio, na Mata de Marrazes, com quem aprendi que os impulsos podem causar danos irreparáveis nos afectos; do ti Caseiro, dos Marrazes trabalhador da Moagem, que quando ia à Estação despachar os fardos que seguiriam no comboio de mercadorias, me ia buscar a casa para me levar numa “voltinha pelo cais”, na carroça que conduzia, com ele aprendi disponibilidade; do Dr. Francisco Dias, mais que nosso médico, um amigo, no colo de quem eu me acolhia mal entrava no consultório, fosse ou não eu a doente e que quando ia a nossa casa me sentava sempre em cima da mesa da cozinha para eu ficar grande “muito depressa”, com ele aprendi responsabilidade e segurança; da D. Maria Rosa e da D. Deolinda, minhas professoras do ensino primário, pois com uma aprendi entusiasmo e optimismo e com a outra sentido de justiça. E com todas aprendi amor.

Para além das pessoas que tenho vindo a referir muitas mais, ao longo dos anos, contribuíram para fazer de mim a pessoa que sou, se tenho algumas qualidades o mérito é delas, os defeitos adquiri-os todos por minha conta e risco. Encontrando-me longe de ser um projecto acabado espero, poder ainda contar por muitos anos, com a amizade dos que me cercam e que, para além destes amigos, venha a encontrar outros que me ajudem a crescer, porque em humanidade nunca se é suficientemente grande.

Sou uma mulher de esperança! Procuro afincadamente o lado positivo de tudo o que me acontece por isso, estou agradecida ao “Região de Leiria” e a quem na Assembleia de Freguesia me intitulou de “cidadã do mundo”. O facciosismo de um levou-me a criar este blogue para fazer ouvir a minha voz, a arrogância da outra fez-se olhar para a minha história de vida.

Depois do acordo de Schengen, que estabelece uma política de livre circulação de pessoas no espaço geográfico da Europa, subscrito por Portugal em 25 de Junho de 1992, urge, mais que nunca saber quem somos e de onde somos. Abolidas as fronteiras do espaço e do tempo, estas pela rapidez com circula a comunicação, firmo-me em dizer: Nasci na Guia, cresci entre Dois Portos e Carreira com amarras lançadas na Freguesia de Marrazes e possuo uma alma rústica de que muito me orgulho. Não sou uma marrazense de gema, pois as circunstâncias não permitiram que nascesse na Freguesia de Marrazes; sou uma marrazense de clara, porque foi numa clara opção de vida que os meus pais se fixaram nesta freguesia, quando eu tinha dois meses de idade.

Acabaram aqui os textos escritos na primeira pessoa.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A PAIXOA

Ainda tive outra “avó”. Morava no rés-do-chão direito do prédio onde nós ocupávamos o primeiro andar esquerdo.

Este prédio, que ainda hoje existe, situa-se muito perto da linha férrea, na estação dos caminhos-de-ferro de Leiria e era destinado ao uso e fruição de determinada classe de funcionários da CP. Como o meu pai era ferroviário em desempenho de funções na dita estação e o Sr. Paixão também, ambos incluídos nesse grupo, tinham direito à moradia. É claro que a Paixoa, era assim que eu, sem cerimónias, a tratava (para desespero da minha mãe), era a D. Arlete, esposa do Sr. Paixão.

Na traseira do prédio, virada à linha havia um pequeno jardim com uma fonte enfeitada com conchas, que tinha um repuxo, e arbustos de flores brancas na Primavera, daquelas em que mal tocando, as pétalas se desprendem como papelinhos de carnaval que se esqueceram de colorir. O espaço deslumbrava-me mas, nunca pude brincar aí. A linha estava a cerca de cinco metros e a minha mãe achava que não havia recomendação que acautelasse a minha curiosidade. Assim brincava à rédea solta pelo espaço murado, em frente do prédio, virado à estrada e pertença de todos os moradores, onde na parte que lhe coube, o meu pai mantinha uma pequena horta que o “Coquelimoque” cuidava. O “Coquelimoque” não falava bem, daí a alcunha, mas sabia cavar e fazer direitinhos os regos onde se plantavam as couves e isso é que importava. Este espaço tinha um portão de acesso à linha, feito de ripinhas cruzadas e sempre fechado à chave que me permitia ver o comboio aos quadradinhos.

Mas ver chegar e partir os comboios aos “quadradinhos” era coisa que não me entusiasmava. Eu gostava de os ver inteiros, com as carruagens a desfilar linha fora e fazia-o empoleirada no tronco do pessegueiro, onde cheguei a ficar pendurada pelo bibe, com a minha mãe na varanda a gritar em dó maior repetidamente “ai que ela mata-se”"ai que ela mata-se", achando que “segurar-me” com os olhos evitaria a queda. Nesse dia valeu-me a Paixoa que, quando o bibe se rasgou, estava em baixo de braços abertos para me acolher.

Recordo da casa da Paixoa apenas a fotografia de um jovem de caracóis e ar angélico, tocando violino, que ela tinha na mesa-de-cabeceira dizendo ser o filho e que eu achava que não correspondia de forma alguma ao pai do Tó, seu neto e meu amigo predilecto e a mesa da cozinha.

A Paixoa passava a ferro na cozinha, cuja porta dava para o quintal. Nas tardes em que se cumpria o ritual, abria uma pesada tábua de madeira que servia para o efeito e ia passando a roupa e contando histórias que eu ouvia deitada debaixo dessa mesa, num estrado de madeira que hoje as mesas já não têm mas que na altura era uso.

Eu adorava esta senhora a tal ponto que, quando o Sr. Paixão foi promovido a chefe e foram morar para a Estação de Monte Real, a minha mãe levou-me a visitá-la logo na primeira semana, com medo que eu adoecesse com saudades. E fiz uma bandeira! Um trapo de tafetá que a minha mãe, a pedido, me cedeu e que atava nas grades da varanda sempre que ela vinha a Leiria. A quem passava na estrada, eu gritava da varanda ”está cá a Paixoa”.

A D. Arlete morreu quando eu tinha nove anos. O Tó, mais novo que eu dois anos, andaria então na segunda classe e, penso que talvez por isso, todas as crianças da escola acompanharam por alguns metros o funeral. Recordo a dor feita raiva com que olhava o caixão e desejava gritar “não gosto de ti, não gosto de ti", mas a voz não saía e fiquei calada, olhando o cortejo e odiando aquela caixa que a levava.

A morte da D. Arlete foi a primeira partida que a vida me pregou.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

O GUIGUI

Cada pessoa que passa pela nossa vida deixa a sua marca. Umas marcam-nos mais profundamente do que outras mas, na vida de cada um, para além dos familiares mais próximos, há pessoas incontornáveis.

Para mim, uma dessas pessoas é o Guigui! Álvaro de seu nome, nem sei como terá ganho tal epíteto; morava perto de nós, com a mãe e a irmã (não lembro se ainda teria pai) num primeiro andar, por cima da D. Beatriz “dos gatos”. Sendo um pouco mais velho que o meu irmão, era contudo seu amigo.

O Guigui era ardina. Vendia, por conta de outrem jornais diários, que transportava pendurados ao ombro num grande saco azul, quase do seu tamanho, correndo pela gare da estação dos caminhos-de-ferro de Leiria, à hora dos comboios. “Olhó diário!” gritava ele para os passageiros, chegando mesmo a entrar nas carruagens, nos curtos períodos de paragem. Vendia, não vendia e o comboio continuava, e o Guigui permanecia, à espera do próximo horário, para repetir os mesmos gestos apressados.

O Álvaro, a minha mãe nunca deixou que lhe chamássemos Guigui, era e é, pois continua vivo (o meu irmão é que já faleceu), um homem pequenino, na época muito magro, ao nascimento de quem a fada que distribuía a beleza, tal como a que distribuía as prendas que tornam um homem interessante, mesmo sendo feio, não chegaram a tempo. Para compensar, a fada-madrinha brindou-o com um sonho de excelência. O Álvaro queria ser bailarino!

Juntou a custo a quantia necessária e comprou um pequeno gira-discos. O primeiro gira-discos portátil que vi. A caixa fechada tinha a forma de um paralelepípedo, lembro, sem grande certeza, que seria de uma cor azul acinzentada com uns vivos claros nas arestas das faces menores e abria separando a tampa, mostrando o prato onde desandavam os discos e o braço com a cabeça, onde uma agulha os fazia tocar, quando ligada à electricidade. Não sei se a tampa teria algum préstimo para além da utilidade que o próprio nome lhe confere: tapar. Que coisa longínqua e complicada perante os actuais leitores de CDs!

Como todas as divisões da casa onde morávamos, o quarto do meu irmão era enorme. E, o Álvaro, que “fazia” a automotora das catorze, a das dezassete e o comboio-correio das vinte horas, vinha logo ao início da tarde com o seu pic up.

A minha mãe sempre franqueou a porta da nossa casa, tanto aos amigos do meu irmão como aos meus, sem qualquer obstáculo por parte do meu pai que, dizendo possuir uma espingarda para matar o primeiro com juízo que por lá aparecesse, se limitava a comentar a cada novo amigo ”ainda não é este que será morto”. Por isso, estando a minha mãe, o Álvaro vinha, quando queria ou podia, quer o meu irmão estivesse ou não, para treinar os bailados que escolhia. Descalçava os sapatos e, em peúgas era vê-lo em bicos dos pés tentando dançar em pontas ou rodopiando tentando piruetas, naquele quarto-feito-palco, onde tantas vezes, frustradas as tentativas, acabava caído em cima da cama.

Sem qualquer tipo de aprendizagem, daquela deselegância e falta de jeito resultavam cenas caricatas de que todos riam abertamente, mas ele persistia ” vocês riem-se mas, hei-de conseguir”. E a minha mãe respeitava aquele sonho! “ A vida não basta” dizia ela citando Pessoa sem saber.

Claro que não conseguiu! Progrediu no negócio mas continua a vender jornais e revistas, talvez por conta própria, numa carripana que coloca ao Rego d’Água.

Apareceu-me, há dias, tentando vender “a sorte grande”, num restaurante em que, incluída num grupo de professoras, jantava em Marrazes; ”começas a ter rugas!” exclamou como se isso fosse uma coisa impensável, “é a velhice, acontece a todos”, retorqui sorrindo, “vê mas é se te cuidas” recomendou partindo para outra mesa, com o sonho nas mãos, agora o da fortuna. Eu fiquei a olhar para ele “sonhar-se-á ainda o príncipe das histórias dos bailados que dançava?”

Foi também o Álvaro que me ofereceu, num aniversário, uma malinha de cartão com uns livros de histórias: “O Capuchinho Vermelho”, “Os Sete Cabritinhos” e nem sei que mais, nem recordo se seriam quatro ou seis, pois gastaram-se de tanto manuseio. As histórias pertenciam ao universo das muitas que me eram contadas mas, por aqueles livrinhos, eu quis saber ler.

Foi o som roufenho daquele gira-discos que despertou os meus ouvidos para a música clássica. Foram aqueles livrinhos de histórias que despertaram em mim o gosto pela leitura. Foi a vida dura deste homem que me ensinou que a utopia engrandece a alma.

“Pelo sonho é que vamos” “Chegaremos, não chegaremos?”O Álvaro materializou o meu encontro com Sebastião da Gama.

A atitude da minha mãe ensinou-me que, em qualquer esquina da vida, nos deparamos sempre com a realidade. A vida acontece, não é preciso ter pressa.

E o meu cavalo verde?! Leva-me a trote pela vida!

“Partimos. Vamos. Somos.”

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A AVÓ JOAQUINA JOANA

A minha avó Joaquina Joana possuía uns lindos olhos claros, a que os anos foram tirando o brilho e a luz. Usava o cabelo grisalho, que dividia num risco ao meio, preso em duas tranças, artisticamente entrelaçadas na nuca. Era uma mulher bem-disposta a quem nem a cegueira nos últimos anos de velhice tirou a vontade de cantar ou de agir.

Falava pausada mas firmemente e nunca a ouvi dar ordens, só me lembro de a ouvir perguntar, de forma mais declarativa que interrogativa, se estava feito “Lucinda já trataste das vacas” “Lucinda já deste comer à criação” Lucinda para aqui, Lucinda para ali…. E a Lucinda, esposa do tio Zé Henriques e mãe de cinco filhos, lá ia cumprindo os dias, ao ritmo das perguntas da minha avó, que serviam mais para conferir a execução das tarefas do que para lembrar que precisavam de ser feitas.

De seis irmãos, a minha tia Lucinda fora a única que ficara a viver junto da mãe, depois da morte da irmã Maria, tia que nem cheguei a conhecer, mas que vim lembrar, pois nasci, anos mais tarde, no dia do seu aniversário.

É difícil falar da minha avó Joaquina Joana. Sinto que falar dela é quase desnudar a alma. Lembrá-la remete-me para o cheiro dos loureiros, para o murmúrio das águas de rega, para a sonoridade da corrente de água límpida do ribeiro, hoje completamente poluído, que serpenteava perto de sua casa.

Sem conhecer Kant ou ter lido Sartre foi ela, na sua rusticidade, que me ensinou que o tempo e o espaço são conceitos que ajudam a situar as circunstâncias da vida e que esta se faz de escolhas, ponderadas, por vezes com tanta angústia, e que as opções, depois de tomadas, geram responsabilidade e compromisso.

Herdei das suas características a forma como se ria do mundo, a maneira de enfrentar as dificuldades e a esperança sempre renovada de que a vida se cumprirá a contento, haja o que houver, aconteça o que acontecer. A sua memória transmite-me força, determinação, diria mesmo, sem qualquer tipo de pudores, uma certa dose de virilidade originada na rapidez de decisão e na forma de enfrentar a rudeza da vida.

A avó Joaquina Joana é a coluna firme, o cais seguro a que ainda hoje aporto nos momentos de aflição.

A PORTA

Bem à beirinha da estrada da Figueira da Foz, na Carreira, uma aldeia que se localiza a pouco mais de quinze quilómetros de Leiria, nos terrenos onde hoje se situa a empresa a que familiarmente chamamos “fábrica do tomate”, vivia a minha avó paterna. A sua casa e a de minha tia Lucinda eram contíguas, a correnteza começava com a cozinha da minha avó e terminava na cozinha da minha tia mas, para quem vinha de fora, a vida começava ao meio, na porta virada à estrada, sempre aberta, escancaradamente aberta…

Nem era preciso bater, ia-se entrando e chamando até aparecer gente e, se acontecia chegar-se ao largo pátio das traseiras sem encontrar quem quer que fosse, fazia-se o caminho inverso e voltava-se mais tarde “estariam para o campo”, ou ficava-se calmamente sentado à espera, nessa sala de entrada de que recordo a espécie de cómoda, encostada à parede em frente à porta, com um pano de linho branco, imaculadamente branco e as enormes arcas, incomportáveis hoje em qualquer sala, onde se guardava o milho, com ovos à mistura para que se não partissem e sacos de feijão. Só o portão do pátio permanecia fechado, não por qualquer desconfiança mas, para que as galinhas, a maior parte das horas à solta pelo pátio, não fugissem.

Eu ia muitas vezes à Carreira com os meus pais. Seguíamos de comboio até à estação de caminhos-de-ferro de Monte Real e daí continuávamos a pé, até casa da minha avó, ou pelo carreiro que bordeava a linha férrea, comigo a saltar de chulipa em chulipa, ou pelo pinhal, antecedido de uma área de loureiros onde o meu pai, a pedido, apanhava sempre um raminho, ora para mim, ora para os cozinhados da minha mãe. Destes percursos, ficou-me o hábito de colher folhas e flores nos sítios por onde passo e que, à mistura com as notas de viagem, fixo nas folhas dos cadernos que me acompanham, “texturas de…” cheiros de…”

O terreno, muito solto porque arenoso, fazia com que a areia me entrasse nos sapatos e magoava-me os pés mas, no pátio da minha avó havia sempre uma farta camada de caruma espalhada pelo chão que minimizava esse efeito. E havia mais coisas! Havia alfaias agrícolas a que tomei o peso e senti a forma e, no vão da janela, a faca com que a minha tia migava as couves que, condimentadas com farelos, eram o alimento das galinhas. Sempre me apeteceu provar a mistura e invariavelmente a minha tia respondia “não tens bico, não podes comer”. Volteando com as mãos as couves cortadas para misturar bem os farelos, nem sonhava que anos mais tarde alguém haveria de substituir os farelos por broa, saltear a mistura em azeite aromatizado com alho e chamar “migas” ao pitéu.

Aquela deve ter sido a primeira faca com que brinquei, à revelia dos cuidados da minha mãe. Com ela gravei desenhos nos troncos das figueiras e combati as piteiras que havia perto do portão.

Aqui havia crianças para brincar, os meus primos, donos e senhores de todo o espaço mas eu, por causa da estrada da Figueira quase nos passar dentro de casa, só podia brincar no pátio. A minha mãe nunca me deixou transpor sozinha aquela porta sempre aberta!

Aquela porta aberta, escancaradamente aberta, ensinou-me que o espaço tem duas dimensões. Mais tarde vieram-me com aquela conversa do comprimento, largura e altura e ensinaram-me a contar até três. Teorias de quem nunca transpôs aquela porta…

De um lado, a disponibilidade para acolher, num tempo sem horas, fosse quem fosse; a segurança da religiosidade acolhedora daquele crucifixo de marfim pendurado no alto da cantareira, encimando os cântaros de água fresca onde, em prateleiras enfeitadas com papel rendado se distribuíam tigelas e pratos com fartura, mesmo à mão de quem precisasse; o conforto, materializado no lar sempre aceso onde três panelas de ferro providenciavam a qualquer momento substanciais sopas de carne, café e água quente. Do outro lado, a insegurança do espaço aberto, a espera, o perigo inesperado, o fascínio pelo desconhecido, o sentido de oportunidade.

De qualquer dos lados, a minha avó Joaquina Joana: a força, a determinação e a coragem, sobretudo a coragem de olhar a vida de frente!