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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

FANTASMAS

 Hoje, à tarde fui à cabeleireira.  Disse a mim mesma que era para começar a confinar bonita, já que vou ficar fechada em casa, pelo menos, por mais um mês.

Se é verdade que decidi, de há muito, que o medo de morrer não poderia impedir-me de viver, o que tem servido de justificação às minhas deambulações, mais do que as recomendáveis, nos dias que correm, confesso, também é certo que a inteligência manda adaptar-me às circunstâncias e obviamente seguir as normas que me salvaguardam a pele. 

Farta, como toda a gente, deste vírus que nos mantém reféns do medo e com a família longe, resto-me eu como companhia de mim, o que de momento me parece pouco embora saiba que as vídeo chamadas da neta não deixarão de me colorir a circunstância dos dias e que, se algo me acontecer, a empregada me encontrará, na quarta-feira seguinte.

Não se pense que passeio muito, gosto é de ter a liberdade de não o fazer.

Considerandos à parte, em abono da verdade só posso dizer que a minha ida à cabeleireira não foi para me pôr bonita, o que redundaria num trabalho inglório para a dita, independentemente da boa vontade e do empenho com que tentasse, foi sim a tentativa frustrada de negação da clausura que se avizinha.

Saí da cabeleireira, meio rabugenta “a poesia salvar-me-á” e em vez de seguir na direção do carro, fui à Bertrand.  Pretendia um livro de poesia e acabei saindo de lá sem poesia nenhuma e mais rabugenta comigo do que antes, arrependida de não ter optado por visitar o meu livreiro preferido, que, quando não tem os livros que me apetecem, inventa forma de os conseguir. “Decididamente, não será a poesia a salvar-me da monotonia dos dias de confinamento…” – pensei.

Subi a ladeira, estacionei à porta do prédio e mal saíra do carro fui abordada por uma adolescente, cara de susto, voz trémula “por favor ajude-me!” Aquele medo acordou em mim a mãe, a professora, a pessoa… a pequena estava mesmo assustada. “Então o que se passa?” “Perdi o autocarro para Leiria” em Leiria estava ela, pretendia, isso sim, descer ao centro, ou deslocar-se ao outro extremo da cidade, “quero voltar a casa e não consigo entrar no prédio porque aquele cão não deixa. Tenho medo dele”. O pensamento é rápido “cão?! Cão?!” Pela direção do olhar, a jovenzinha morava no outro lado da praceta…  A imaginação desenhou, de imediato, uma fera nas minhas costas.

O cérebro continuava a martelar… “cão?!” “como um cão?! Logo a mim que dou distância de bicho de quatro patas?!” Corajosamente voltei-me…

 “Cão?!” Lá estava o cão…

Em toda a vida só me relacionei com dois cães: o Torry, o pastor alemão dos vizinhos, que batia à porta da casa de meus pais com a prótese de uma das patas com a intenção de velar-me o sono de menininha, enfiando o focinho entre as grades da minha cama e mais recentemente a Yuka cadela meio rafeira, meio qualquer coisa, que corre para mim e me pula aos ombros mal me vê, numa amizade que até há bem pouco tempo não pensara possível.

“É aquele o cão?” sim era aquele. “Então vamos. Vou levar-te a casa”. Atravessámos a praceta. “Tens chave?” “A minha mãe abre a porta” e, ao aproximarmo-nos, ouviu-se o ruído da porta do prédio abrindo-se. A mãe estava atenta. “Entra que o cão está longe” “Obrigada, por me ajudar”.

O cão, o dito cão que a adolescente temia era, comparado com os dois que referi, menos de metade de bicho, não era, tampouco, um qualquer rafeiro, era um cão de raça, também ele a pretender entrar em casa, suponho, de onde haveria fugido, nem me pareceu haver reparado na jovem ou em mim.

Embora a situação possa parecer hilariante, em momento algum me apeteceu rir. Aquela adolescente, pelo medo demonstrado, precisará de mais ajuda do que a que lhe poderei, alguma vez, prestar. Fiquei, isso sim, a dever-lhe um agradecimento por me ter mostrado o poder dos fantasmas que inventamos se não os exorcizarmos.

Não vos vou falar dos meus fantasmas. Já de há muito nos habituámos à mútua companhia. Exorto-vos, isso sim, a encarar com bonomia o fantasma de um novo confinamento, mais essa limitação que se adivinha, na certeza que graças a ela poderemos sobreviver.

Viva a vida!