No Ensino Primário é lei, ou pelo
menos era, que cada professor iniciasse o processo de ensino /aprendizagem de
uma turma de primeiro ano de escolaridade e o seguisse, sempre que possível, durante
os quatro anos que dura o primeiro ciclo.
Assim, de quatro em quatro anos,
os professores efetivos, recebiam um novo grupo de crianças. Essa sucessão de
gerações obrigava a uma atualização constante, das abordagens possíveis do
processo de ensino/aprendizagem e a uma renovação do estado de espírito de quem
o orientava, muito mais difícil de conseguir que a atualização em métodos e
processos. Perante as novas exigências, ao professor não restava senão a
hipótese de se adaptar às circunstâncias da turma, para que os alunos
encontrassem, gradualmente, as respostas necessárias ao seu crescimento
harmonioso em cidadania, humanidade e conhecimentos básicos.
A renovação de alunos engana a
noção de tempo e os professores nem se apercebem que envelhecem. Só o corpo,
advogado do diabo, esse “desmancha-prazeres”, quando reclama “dói-me aqui,
dói-me ali” lhes soma os dias…
Sou professora. Uso o tempo
verbal no presente, porque embora aposentada, a escola vive em mim, faz parte
da minha pele, das minhas vísceras, se quiserem, como dizia a Amélia Pais, até
debaixo de água, como eu usava acrescentar.
Casualmente, no ano letivo em que
completei trinta e cinco anos de idade, calhou-me ministrar uma turma de
primeiro ano e assim, quando perfiz trinta e sete esse mesmo grupo frequentava
o terceiro ano de escolaridade. Por essa altura, eu, acérrima defensora do
ensino da redação, como texto que obedece a um plano, ou não trabalhasse com o Professor Eduardo Fonseca… ensinava às crianças a estrutura do texto
começando pela descrição de objetos: o primeiro era uma maçã lavada e pronta a
ser comida. Recolhiam-se os dado que a observação sugeria; no caso da maçã, todos
os órgãos dos sentidos nos comunicavam saberes; ordenavam-se;
elaborava-se o plano do texto; redigia-se. Tudo mercê de um trabalho bem mais
moroso que a ligeireza das palavras faz parecer.
A progressão do grau de dificuldade obrigava a que os objetos se fossem diversificando, até, numa etapa intermédia, chegarmos ao retrato. Então, como as crianças, por vezes, são cruéis em relação uma às outras, eu pedia que fizessem o meu e não o dos companheiros.
Por essa altura do processo ensino/aprendizagem, da turma que refiro, uma aluna a Ana Cristina, dois olhos de gente atrevidos a encimar uma boca irreverente, num corpo de enguia, com cabelos de andorinha, escreveu no seu texto “a minha professora tem trinta e cinco anos. Eu sei que ela tem trinta e sete, mas não quer que se saiba” Achei delirante e decidi, no momento, que não mais teria outra idade.
De então para cá, todos os anos e
já lá vão muitos, no dia doze de Março, eu faço trinta e cinco anos.
Este ano, a minha filha mais velha, para quem a ordem é uma obsessão e a quem cabe providenciar o bolo, lamentava “com a brincadeira dos trinta e cinco anos, quando um dia olharmos as fotografias, nem saberemos quantos anos tinhas na altura” “quando olhares as fotos, não te preocupes com a cronologia; festeja o facto de eu estar viva no momento que recordas”.
Aqui para nós, aquele lamento era mesmo conversa de quem está mais velho do que eu… mas, não me pesa a consciência, eu avisei uma filha e outra e até o genro, que com a mania de somarem anos aos que tinham, chegaria o dia em que seriam mais velhos que eu. E, como atrás ficou provado, já aconteceu!
Na noite de sábado, dia vinte e oito de Julho, encontrei num jantar de beneficência, uma das minhas professoras primárias: a Sra. D. Deolinda Barbeiro, pessoa de quem gosto muito e que faz o favor de me atribuir algumas qualidades que não sei se terei o privilégio de possuir.
Ela chegou tarde, acompanhada do marido e de uma amiga, todos os presentes já jantavam. Logo que pude, levantei-me e fui cumprimentá-la “a senhora continua linda (e não exagerava), como gosto de a ver!” “linda?! Sabes quantos anos já tenho?” “trinta e cinco, é da minha idade” – ela riu e acariciou-me a bochecha – eu estava acocorada junto da cadeira em que se sentava, com receio de que ouvisse mal e sem querer que olhasse para cima. “Só tu!” E as tuas filhas?” “Já estão mais velhas do que eu. A Íris fez, há poucos dias, quarenta anos e a Zara fará trinta e sete em Novembro”. E, a conversa continuou com a leveza que a intimidade permite à ternura, para cessar com a retoma obrigatória dos acontecimentos em volta. Voltei ao meu lugar, de onde a fui mimando com sorrisos que me retribuía.
Na verdade, eu não menti à Sra. D. Deolinda. Tenho momentos em que sou mais nova que as minhas filhas, muitos mais em que não ultrapasso a idade do meu neto e outros, raros felizmente, em que sou mais velha que os noventa e quatro anos de minha mãe.
O meu bilhete de identidade jura, a pés juntos, que nasci em mil novecentos e cinquenta, contudo, a Germana, que exibe um número igual no seu, diz-se mais velha dez anos…
Vá lá saber-se quem fala verdade!