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segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

IRONIA

Um amigo recente enviou-me um mail “Nada é simples! Excepto o humor… E a simplicidade é o último grau da sofisticação."

E assim, sem mais, mergulhei no susto de uma antiga manhã. Há dezoito anos, bem cedo, toca o telefone, em minha casa. Era a minha mãe “O pai acordou, sentou-se na beira da cama, fala muito, mas nada diz que seja inteligível e tenta vestir-se atabalhoadamente por cima do pijama. Estou assustada.” “Não se preocupe. Vou chamar a ambulância e sigo já para aí.”

Nunca dois quilómetros me pareceram tão compridos! Arranjei o meu pai, sosseguei a minha mãe e chegada a ambulância seguimos para as urgências do velho hospital de Leiria. O meu pai tinha feito um pequeno AVC e os exames e tratamentos decorreram durante todo o dia.

Cerca das dezoito horas e trinta minutos, o meu pai teve alta. Saiu pelo seu pé das urgências, apareceu à porta da sala onde aguardávamos desde manhã por notícias suas e mal me viu, sorriu e exclamou “Será possível que só porque acordei de manhã a falar inglês, me tenhas enfiado um dia inteiro no hospital?”

Ri-me e abracei-o. Era o meu pai no seu melhor, após uma recuperação meteórica fosse lá do que fosse que lhe tinha acontecido.

A ironia, a forma mais sofisticada de humor, voltava de mãos dadas com o seu melhor sorriso.

domingo, 30 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO

Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.

Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.

Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.

Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre

Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o amor por fim tenha recreio.

Natália Correia, Passaporte (1958)

sábado, 29 de janeiro de 2011

SÁBADO

Não costumo ir ao Sábado ao cabeleireiro, mas hoje aconteceu. Entrei, disse ao que ia, vestiram-me o penteador, mandaram-me sentar e passaram-me para as mãos a revista “Nova Gente”, que comecei a ler, contrariando as boas intenções de ir estudando o meu papel no teatro, que “pelo andar da carruagem” não sei quando vou decorar.

Estava eu olhando embevecida a foto da família Carrilho “batida” no dia das eleições, questionando-me sobre quem terá deixado fazer a cruz a quem, face à panóplia dos presidenciáveis. “Terá a Bárbara deixado a Carlota fazer a cruz no seu boletim de voto e o Sr. Professor o Dinis Maria no que lhe caberia por direito, ou terá sido ao contrário?”, quando a manicure avança para me cuidar das mãos. Desanda-se a cadeira num ângulo de quarenta graus, largo a revista, vai-se a leitura e desperto para o que me cerca.

À direita um senhor, já de cabeça lavada, de penteador vestido, sentado tal como eu, fazia boquinhas para o espelho enquanto aguardava que lhe cortassem o cabelo, na calha lavava-se a cabeça a um jovem e outro aguardava sentado a sua vez. Volto a olhar para confirmar se tinha visto bem. O senhor das boquinhas, apanhado em flagrante deixou de fazer boquinhas, mas avisa que também deseja fazer as sobrancelhas e os outros dois continuam no salão. Vi bem, no salão só eles e eu. Está tudo correcto. Estará? “Depois das unhas vão fazer-me a barba?” pergunto à manicure que, com um sorriso tímido, me explica que vir à cabeleireira não é o mesmo que ir ao barbeiro. “As cabeleireiras fazem uns cortes de cabelo mais modernos”; “Ah, então a barba ainda é no barbeiro!” exclamei aliviada confiando nos cuidados da pequena.

- Isabel (só poderia ser uma Isabel), a tua presidência no projecto MULHERES DO SÉCULO XXI está a ser um êxito, os homens acabaram de alcançar a “igualdade de género”!

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

A AMOREIRA

No pátio da escola primária que frequentei, havia no canto esquerdo, quando se entrava no recreio, uma enorme amoreira onde todas as crianças da escola se abasteciam de folhas para alimentar os bichos-da-seda.

Pegavam com o pátio da escola terrenos de particulares e naquele canto da amoreira não havia muro, a fronteira era definida por uns pilares de cimento pintados de branco atravessados por três fiadas de arame farpado. Imaginam coisa mais imprópria para estar ao alcance de crianças? Mais tarde a legislação proibiu o arame farpado junto das escolas mas, pelos vistos, naquela altura seria permitido.

Eu nunca gostei de correr mas não desperdiçava uma oportunidade de me encavalitar em tudo o que desse para trepar. O treino ia dos pessegueiros do meu quintal às figueiras das minhas avós e, claro está, a amoreira da escola também não escapava. As folhas mais tenrinhas estavam lá no cimo e os bichos-da-seda mereciam o sacrifício. Sim, Só queria mesmo as folhas, uma boa desculpa para trepar, porque aquelas amoras eram muito desenxabidas, saborosas eram as dos silvados, bem temperadas pelo pó dos caminhos.

Convém lembrar que na altura as meninas não usavam calças como os rapazes, mas como também não brincavam juntos, não havia perigo de mostrar as pernas. Também devo esclarecer que gostava de me aventurar sozinha, já me chegava vencer os meus medos, não precisava dos medos das outras a puxar-me para trás.

Deveria ter chovido recentemente, porque eu tinha o meu chapéu-de-chuva. Um chapéu de seda lilás, que seco me brindava o olhar com uns reflexos rosados que eu achava uma maravilha. Coisa tão sem graça se comparado com os que agora existem no mercado para crianças!

Larguei a mala dos livros e trepei com o chapéu-de-chuva na mão. Avaliei qual seria o melhor sítio para o intento que levava em mente (desta vez não queria folhas) e, bem equilibrada, abri o chapéu. E assim, da braça mais próxima passei para o arame farpado. Eu tinha visto o número no circo, era tão fácil! Ensaiei uns passos de chapéu aberto, tentando percorrer o arame e… estatelei-me no chão, felizmente no terreno da escola, só que… com uma vareta do chapéu espetada na parte interna do joelho direito.

“O chapéu? Estragou-se o chapéu?” Arranquei a vareta da perna, que felizmente não tinha penetrado muito, endireitei-a, experimentei o chapéu. Abria e fechava na perfeição. O chapéu estava bem, na minha perna ficara um buraquinho redondinho, nos joelhos umas mazelas que com terra se disfarçaram e na minha alma a frustração da falta de aptidão para a profissão que escolhera.

Há cerca de dois anos espetei uma agulha de croché na perna direita, três centímetros e meio de aço, com uma farpa na ponta, que ainda estou para saber como consegui tirar. Na perna, só restou um buraquinho redondinho. Tal como em criança, também não rebentei um único vaso sanguíneo.

Vêem o que a ignorância faz à vida das pessoas? Se em pequena soubesse o que sei hoje, teria desistido de trabalhar no arame, mas poderia muito bem ter sido faquir.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

FRIO

Esta manhã saí a pé. O objectivo era o laboratório de análises clínicas onde iria controlar os Ts, não de tara – peso ou maluqueira, mas da tiróide. O vento gélido contrastava com o Sol que radioso brilhava nesta manhã de Inverno. “Ah, S. Pedro, estás-te a esticar!” foi o meu primeiro pensamento assim que cheguei à rua e comecei a descer em direcção ao centro da cidade.

No inicio do Outono, mal se adivinhava o frio, como a Junta de Freguesia de Marrazes se situa no Pólo Norte e eu e o aparelho de ar condicionado mantemos uma relação assaz conflituosa, sem qualquer hipótese de entendimento à vista, resolvi adquirir um parka de penas.

Não sei se para além do sabor, já atentaram no aspecto de determinados paios transmontanos, daqueles atados com guitas na altura e na largura que, depois do fumeiro, ficam mais ou menos aos quadradinhos rechonchudos. Pois eu com a dita parka vestida fico tal e qual um desses paios, gigante e com pernas, sim porque os outros, perninhas para andar não têm, coitadinhos!

Face a essa hipotética personificação de um enchido de tal qualidade S. Pedro, com receio que baixasse a venda do produto, tem-nos estado a proporcionar um dos Invernos mais quentes dos últimos tempos e eu ainda não precisei de vestir a dita parka, mas agora distraiu-se e vá de mandar este vento frio que nos gela os ossos. Como diriam as minhas filhas quando eram adolescentes “está a esticar-se mais que o elástico!”

“Amigo S. Pedro, se este frio continua, eu visto mesmo a parka de penas e quando as criancinhas se assustarem à vista de tal monstro e os comerciantes se queixarem que baixaram as vendas dos enchidos, não venhas com a desculpa que não sabes do que trata.”

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

QUEM TRAMOU ROGER RABBIT?

Hoje, sem vontade de escrever, andei a navegar por outros blogs e descobri este para o qual vos remeto.

Se soubesse, faria uma ligação directa ao texto que pretendo, como não sei, remeto-vos para o poema de sexta-feira, 14 de Janeiro: É PROIBIDO, de Pablo Neruda

http://Quemtramourogerrabbit.blogspot.com

Espero que a proprietária me perdoe o abuso de, sem mais, lhe abrir assim a porta e os convidar a entrar em casa alheia.

domingo, 23 de janeiro de 2011

COMENTÁRIO

Em jeito de resposta a O.A.A.P, que na ceia de S. Silvestre me serviu uma rosa vermelha de aperitivo e um poema à sobremesa…

Somos amigos recentes (acho que permitirá que o defina assim), pois cruzámo-nos duas ou três vezes mas, porque ambos somos de palavra fácil, a conversa fluiu e a troca amigável de ideias não se fez esperar. Nada de prosa para ser tomada a sério, tudo conversa inconsequente porque os jantares em que ambos participámos foram animados e o riso correu com abundância.

Pois o meu amigo O.A.A.P. escolheu um belíssimo PPS, não criado propositadamente para mim, como é óbvio, mas respondeu, por e-mail, ao meu Post de Vinicius com um igualmente belo texto de Vinicius, numa simbiose de gentileza e sensibilidade que não deixou de me comover e acalentar a alma.

No jantar de S. Silvestre, parte da conversa versou sobre astrologia tendo-me eu afirmado absolutamente descrente sobre a questão. Mereci por isso o elogio de pouco inteligente por parte de uma das senhoras presentes, conclusão que me apressei a confirmar, porque se eu fosse inteligente as minhas razões ofuscariam a "gentileza", e não só, manifestadas pela dita senhora, em mesa alheia perante quem se via pela primeira vez. “Ah, mas eu não sou inteligente!” exclamei duas vezes, engolindo o resto, que a senhora cheia de si não entendeu, consistindo nessa circunstância o meu gozo e a partir daí, desfiz-me em mesuras para que o contraste ficasse bem definido.

Acontece que a propósito desse mesmo Post de Vinicius, pesquisei na NET, num endereço que me recomendaram e descobri, deste autor, uma obra que desconhecia: “Um signo uma mulher”, publicada em 1971, primeiramente na revista Manchete. “Como é que esta me passou?” questionei-me - e lá vou eu pacientemente à procura do que teria dito a meu respeito.

Eis o que encontrei:

Mulher de peixe… peixe é

Em águas paradas não dá pé

Porque desliza como uma enguia

Sempre que entra numa fria.

Na superfície é sinhazinha

E festiva como a sardinha

Mas quando fisga um namorado

Ele está frito, escabechado,

É uma mulher tão envolvente

Que na questão do Paraíso

Há quem suspeite seriamente

Que ela era a mulher e a serpente

Seu Id: aparentar juízo

Seu ego: a omissão, o orgulho

Sua pedra astral: a ametista

Seu bem: nunca ser bagulho

Sua cor : o amarelo brilhante

Seu fim: dar sempre na vista.

Perante isto, mesmo reconhecendo que até os poetas têm estômago e precisam de ganhar uns trocos para ir ao supermercado, cortei relações com Vinicius e em acto de desespero, conhecedora das últimas pesquisas americanas sobres signos, dando-me a razão que me tiraram no citado jantar, sobre esta matéria elevadíssima que tanto "respeito" me merece e sabendo haver mais um signo do Zodíaco, tentei subornar quem de direito para me passar para outro, o tal Serpentário, sobre o qual ainda não existirão barbaridades escritas. Não tive sorte nenhuma. Nasci pisciana e assim morrerei.

Daqui proclamo o ultimato: Vinicius, ou nasces outra vez e vens cá à Terra apagar isto ou bem podes começar a fazer das nuvens um jardim, mas semeia túlipas amarelas, porque rosas vermelhas já há cá na Terra quem me ofereça.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

HOJE

Acordei, como normalmente, um pouco antes da oito da manhã e saltei da cama com a ideia de apagar imediatamente o texto que tinha publicado ontem no blog “que tolice! Aquilo (pensava eu referindo-me ao texto) é faltar à “promessa”.

Levantei a persiana e abri a janela do quarto. Gosto de ir à varanda logo que me levanto, ainda mal agasalhada, para sentir o tempo. Sentir o frio agradou-me. “Estou viva e a mexer! Que bom!”

Quando finalmente me sentei em frente ao PC, disposta a apagar o texto de tanta discórdia introspectiva acabei a rir. O tempo, para o bem e para o mal, tem o dom maravilhoso de passar de mansinho. Com pezinhos de lã, pousa aqui, pousa acolá e, em passadas largas, avança tão depressa que nós, quando olhamos a pensar que está aqui, já foi.

Aquele texto de ontem está publicado como se fosse de hoje, o próprio relógio se encarregou de lhe alterar o referente destruindo-lhe o sentido, aquilo não é, já era, nem vale a pena apagá-lo.

Da quinta-feira só quero recordar o entusiasmo da Dra. Isabel Jonet, Directora do Banco Alimentar Contra a Fome, que tive o prazer de conhecer nessa manhã. O entusiasmo dos que acreditam em causas nobres transmite-nos energia para a vida.

Hoje é Sexta-feira, dia de jantar com os amigos num repasto de risos e boa disposição. O Sol brilha, a esperança renova-se, da rua chega a música do quotidiano.

Como bem imediato a vida já me concedeu o dia de hoje. Que bom!

A PROMESSA

Sempre gostei de escrever. Na adolescência e na juventude trocava cartas com inúmeros amigos de que não só pedi o Norte como todos os outros pontos cardeais. Passei ainda pela fase do conto e da poesia, sem ofensa para os dois géneros literários.

Alinhavar a introdução era o mais difícil, mas a partir daquelas duas ou três linhas o texto fluía como se por algum motivo estivesse contido sob pressão na grafite do lápis. Gostava de escrever com lápis bem afiados que não fossem muito grandes. E tinha sempre vários na bolsa que levava para as aulas e alinhados no tampo da minha secretária.

O estudo da Filosofia, pela mão da Dra. H.C., que sabiamente utilizava a maiêutica, para nos ensinar a pensar, dilatou e coloriu as minhas ideias, já de si tão férteis.

Vertia para o papel a amizade, os sonhos e as brincadeiras próprias da idade. “Só escrevem parvoíces” concluíram um dia, a minha mãe e a D. Maria Rosa, que havia sido minha professora do Ensino Primário, depois de ambas terem lido as cartas que eu e o filho, a estudar nos Pupilos do Exército, íamos trocando e ainda se riram na minha cara citando algumas das frases lidas. Os tempos eram outros, tudo se controlava e nada havia a esconder. E a D. Maria Rosa e a minha mãe riam-se facilmente da vida.

Depois cresci, casei e o quotidiano vestiu roupagens novas, sem tempo para devaneios solitários, mas quando os afectos não corresponderam às expectativas, eu voltei ao papel e ao lápis escrevendo a mim própria, cartas intermináveis onde vertia toda a mágoa do momento. Depois, fechada a carta, escondia-a numa gaveta qualquer e esquecia-me dela, até mais tarde a encontrar e ler sentindo-me de novo tão infeliz como quando a tinha escrito.

“Isto é masoquismo” pensei um dia e prometi que nunca mais escreveria sobre coisas tristes. Escreveria, isso sim, sobre as coisas simples e agradáveis da vida pois só assim, ao fim de algum tempo, descobriria o que era a felicidade.

Hoje tive um dia menos bom e sozinha, debruçada sobre o meu umbigo, apetecia-me escrever sobre isso, mas não posso quebrar a promessa.

É preciso coragem para aceitar as circunstâncias da vida, sem abrir mão dos sonhos.

Amanhã é um novo dia.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

PROCURA-SE UM AMIGO


Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.

Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objectivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.

Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.

Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinicios de Moraes

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

É TÃO FÁCIL...

O electricista que compusera a tomada da cozinha em curto-circuito levara-me os últimos trocos. E que trocos! Precisava de levantar dinheiro.

Ainda pensei na caixa multibanco situada perto da Junta de Freguesia, mas não, se descesse até ao Estádio, poderia parar o carro e andar um pouco a pé até à Agência do Montepio, situada perto dos Jardins do Lis.

Foi o que fiz, depois de almoço. Na tarde ensolarada, caminhando sempre pela margem esquerda do rio Lis, atravessei a estrada. As velhotas estavam sentadas logo no primeiro banco, onde mal começa o empedrado em calçada portuguesa. Ao aproximar-me, uma levantou-se, “boa tarde, posso oferecer-lhe este livro?” e passa-me para a mão um exemplar de “A Sentinela” de 1 de Novembro de 2010, o anúncio do Reino de Jeová com alguns meses de atraso; “ensina como ser feliz, leia com atenção” – insistiu. Agradeci, dobrei a revista e guardei-a na mala. Contentores de lixo não faltavam, mas à vista de quem mo oferecera senti-me incapaz de me desfazer de imediato do presente.

Fui ao banco e à volta, as velhotas lá estavam juntando o útil ao agradável: o dever de apostolado, cumprido ao Sol, entre dois dedos de conversa. Ao aproximar-me a mesma velhota levantou-se e veio direito a mim com nova revista. Eu sorri e exibi a revista que guardara “já me ofereceu uma, quando aqui passei antes”. Na cara da velhota o brilho dos olhos rivalizou com o Sol, “obrigada”. Os lábios distenderam-se num sorriso encantador e voltou a sentar-se.

É preciso coragem, muita coragem para ser feliz, mas é tão fácil fazer os outros felizes que vou tentar mais vezes.

terça-feira, 18 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

SONATA DE OUTONO

Inverno não é 'inda mas Outono
Na sonata que bate no meu peito
Poeta distraído, cão sem dono
Até na própria cama em que me deito

Inverno não é 'inda mas Outono
Na sonata que bate no meu peito
Acordar é a forma de ter sono
No presente e no pretérito imperfeito

Mesmo eu de mim próprio me abandono
Se o rigor que me devo não respeito
Acordar é a forma de ter sono
No presente e no pretérito imperfeito

Morro de pé
Mas morro devagar
A vida é afinal o meu lugar
E só acaba quando eu quiser

Não me deixo ficar
Não pode ser
Peço meças ao Sol, ao céu, ao mar
Pois viver é também acontecer

A vida é afinal o meu lugar
E só acaba quando eu quiser

Hoje, lembro José Carlos Ary dos Santos. Os últimos vinte e sete anos testemunham que a A VIDA É AFINAL O SEU LUGAR.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

AMÉLIA

A Amélia é uma Mulher que não precisa de apresentações. Quem não conhece aquela beirã pequenina e contestatária, visceralmente professora e com uma vasta obra dada ao prelo?

Pois a Amélia, após a aposentação, sem exército, mas cheia de força, continua corajosamente a esgrimir as armas defendendo a cultura em quatro frentes. Assim, como quem aplica às letras a técnica militar de Aljubarrota, ela envia a uma lista enorme de pessoas e para constar dessa lista basta mandar-lhe o endereço, as suas pesquisas: “A companhia do poeta”; “A prosa da semana”;”efeméride” e ainda denúncia os textos e pps que surgem nas nossas caixas de correio como sendo de Pessoa e que, sendo de alguma pessoa, nada têm a ver com o nosso Fernando. Também mantém activo o blog http://barcosflores.blogspot.com.

Hoje, bem cedo subordinado ao tema “efeméride” mandou-me um pedaço da minha adolescência. Aqui fica!

Atalho para: http://www.youtube.com/watch?v=IOd_5ZRPmFs

Querem cantar com ela?

Françoise Hardy, francesa, nascida em 17 de Janeiro de 1944

tous les garçons et les filles de mon âge
se promènent dans la rue deux par deux
tous les garçons et les filles de mon âge
savent bien ce que c'est d'être heureux

et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s'en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l'âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m'aime

mes jours comme mes nuits
sont en tous points pareils
sans joies et pleins d'ennuis
personne ne murmure "je t'aime" à mon oreille

tous les garçons et les filles de mon âge
font ensemble des projets d'avenir
tous les garçons et les filles de mon âge
savent très bien ce qu'aimer veut dire

et les yeux dans les yeux et la main dans la main
ils s'en vont amoureux sans peur du lendemain
oui mais moi, je vais seule par les rues, l'âme en peine
oui mais moi, je vais seule, car personne ne m'aime

mes jours comme mes nuits
sont en tous points pareils
sans joies et pleins d'ennuis
oh! quand donc pour moi brillera le soleil?

comme les garçons et les filles de mon âge
connaîtrais-je bientôt ce qu'est l'amour?
comme les garçons et les filles de mon âge
je me demande quand viendra le jour

où les yeux dans ses yeux et la main dans sa main
j'aurai le coeur heureux sans peur du lendemain
le jour où je n'aurai plus du tout l'âme en peine
le jour où moi aussi j'aurai quelqu'un qui m'aime


Ah, Amélia, se tu não existisses, quem te poderia inventar?

domingo, 16 de janeiro de 2011

BOM DIA

Levantei-me, como habitualmente, cerca da oito da manhã. Pequeno-almoço, os cuidados habituais e, como a manhã era de Sol depois de consultado o e-mail, dispus-me a caminhar.

Fui de carro até ao Estádio e lá o deixei, mudo e quedo, enquanto me passeei por outra freguesia. O Sol era convidativo mas o vento arrepiava-me as bochechas e acariciava-me o cabelo. Nada de mais. Eu gosto de sentir o vento fresco na face. Ajuda-me a pensar. Daí a ideia peregrina “não vou cumprimentar ninguém”. Habitualmente, tomo a iniciativa de desejar “bom dia” a todas as pessoas com quem me cruzo, quer as conheça ou não, no trajecto que percorro, para trás e para a frente, desde a Ponte Europa até à Rotunda do Sinaleiro. Hoje, dispus-me a ver quantos “bons dias” ganharia se não tomasse a iniciativa. Não temos fama de ser simpáticos e hospitaleiros?

A experiência não tem qualquer rigor científico, não passou de uma brincadeira com que me apeteceu entreter a caminhada. Nem sequer contei as pessoas que se cruzaram comigo. Posso contudo garantir que se cruzaram muitas, de diferentes idades, no período que decorreu entre as dez horas e trinta da manhã e as doze, umas a correr, outras a andar, outras de bicicleta e somente dez me desejaram “bom dia”. Se descontar os “bons dias” de três pessoas das minhas relações, fico reduzida a sete. Houve “bons dias” frouxos, sorridentes e um particularmente vigoroso, o do senhor que manobrava a cadeira de rodas em que se deslocava e eu pensei que a força daquele “bom dia” significava a determinação com que aquele homem, ainda novo, enfrentava a vida.

Quando me passeio em S. Martinho do Porto, pela praia quase deserta e encontro estrangeiros, são eles os primeiros a cumprimentar-me com um sorriso aberto. Como é que nesta cidade onde quase nasci e onde toda a gente se conhece de vista, só consegui obter uma média de cinco “bons-dias” por hora?

Há muitos anos, no Liceu Nacional de Leiria, o Dr. Carlos Silva, um padre, já falecido, mas sobejamente conhecido pelos seus dotes vocais, deu-me aulas de Religião e Moral e entre outras coisas ensinou-me uma canção que diria mais ou menos “Alô, Bom dia, oh como vai você? Um olhar bem amigo, um claro sorriso, um aperto de mão. E a gente sem saber como e porquê se sente feliz e sai a cantar alegre canção… Bom-dia nada custa ao nosso coração. É bom fazer feliz o nosso irmão”.

Que pena tenho de não saber cantar!

PALAVRAS DE OUTROS

"... a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos"

José Saramago A Viagem do Elefante (pág 34)


Espero que a Vida encha de palavras os silêncios que não me apetecem...

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

SALVADOR

No prédio em que habito, no andar de baixo, mora um sorriso lindo de caracóis aloirados, com cerca de ano e meio, que se dá pelo nome de Salvador.

Todas as manhãs, muito cedo, o Salvador reclama. O instinto de mãe desperta-me meio neurónio para, de imediato, o outro meio me lembrar que aquele alerta não é para mim.

Não sei a que horas o oiço. Sinto-me incapaz de abrir os olhos na altura em que acontece e além disso, ver as horas obrigar-me-ia a destapar os algarismos do relógio digital que está na minha mesa-de-cabeceira. Tal como ao Super-homem a quem a criptonite reduz a força, também a luz emanada por aqueles algarismos verdes iria enfraquecer a escuridão do meu quarto e salvo as noites em que adormeço com a luz acesa e algum livro em cima do nariz, ou que durmo no sofá a “ver” os filmes do AXN, tenho sempre o cuidado de os cobrir, não vá ter “insónias” por causa da intensidade perturbadora da luz do relógio despertador…

Por pura especulação e analogia, suponho que é o Salvador do Mundo choramingando por volta das seis da manhã, por não conseguir saltar da manjedoura para os braços da Virgem Maria e volto a adormecer sorrindo.

Como é que os pobres mortais não hão-de gostar de mimo se até o Salvador precisa de ser embalado?!

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

É preciso dizer bom dia
quando o dia anoitece.
Ser exacto todo o dia
envelhece.

Luís Veiga Leitão (1912-1987)

PALAVRAS DE OUTROS

E dá-me
sonhos teus para
Eu brincar


Alberto Caeiro, Poema ao Menino Jesus (Poema VIII)

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

MALDITA SOLIDÃO

Ontem, tirei a tarde para visitar doentes. Num dos sítios onde me dirigi encontrei C., uma senhora que não via há larguíssimos meses, talvez há mais de um ano. Depois de cumprimentar a doente, que felizmente se encontrava bem e muito animada, aconteceu a conversa do costume.

“Há quanto tempo não a via?! Como vai M.? Tanto ela como o marido estavam bem, mas que agora saía muito pouco, entretinha-se muito por casa a tratar dos animais.

“Animais?”, admirei-me, “agora tem animais?” Não é que falte espaço na vivenda de C., situada numa aldeia próxima da cidade, para criar bicharada, mas eu não estava a imaginar C., sem filhos, depois de alguns anos a abdicar de viagens e outros passeios para tratar devotamente da mãe, que falecida esta e conhecendo-lhe os gostos, ficasse presa àquele espaço por causa dos ditos animais.

“O M. está afónico.” “Já percebi,” respondi eu inconsequente, “resolveu dedicar-se à criação de animais exóticos e mandou-o à noite apanhar gambozinos”. C. riu-se, “não, está afónico comigo, já dissemos um ao outro tudo o que havia para dizer. Logo de manhã quando me levanto, trato dos animais, acarinho-os, eles acarinham-me e fazem-me rir e assim entretenho-me lá por casa”.

O que mantém as pessoas tão perto e tão longe? Questionei-me e mudando imediatamente de assunto, a conversa fluiu facilmente por outros temas, tendo em conta que além da doente, éramos mais quatro mulheres naquele quarto hospitalar.

Quando abandonei aquela instituição, a caminho de outra onde pretendia visitar mais uma amiga doente, questionava-me: Será sempre assim? Terá de ser mesmo assim? Porque há-de ser assim?

Somos a Carminho de “O Dia dos Prodígios” esperando o homem que dirá as palavras certas, que depois a vida implacavelmente arrebata, para ficarmos à espera que regresse montado no cavalo verde do nosso encantamento, vivendo afónicas o resto da vida?

“Na vida somos sempre livres e estamos sempre sós.” A expressão persegue-me desde que li Raymond Jean, A Leitora, mas eu ainda acredito que pode ser diferente, eu ainda acredito que o amor pode ser eterno na sua limitação terrena, acredito na cumplicidade de um olhar, no calor das mãos que se tocam, na doçura do abraço, na força das palavras ditas com ternura e que o silêncio entre dois, pode ser um momento sublime porque “há palavras impossíveis de escrever/ Por não termos connosco cordas de violino/ nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo da ar”.

A vida mostrou-me que os homens enrouquecem e vão perdendo a voz ao longo dos anos, mas a alma das mulheres permanece adolescente enquanto, no rosto, as rugas se acentuam.

Meu caro senhor, se está afónico, pegue nas palavras gastas pelo uso, separe as letras uma a uma, lava-as da sujidade dos dias e faça sopa. Coma duas refeições por dia. De preferência ao pequeno almoço e ao jantar. Verá que ao fim de algum tempo das letras, em combinações impensáveis, voltam a fluir facilmente palavras novas. Use-as ao desbarato, não as poupe.

Este remédio funciona melhor que o chá de casca cebola e mesmo que se sinta ridículo, continue. Eu garanto-lhe que a sua esposa achá-lo-á a oitava maravilha do mundo.

domingo, 9 de janeiro de 2011

O PAI NATAL

“Nunca mais vem o Pai Natal” suspirou o André recostando-se na cadeira que ocupava à mesa, durante o jantar de Natal. “Acho que só vem quando acabarmos de comer” explicou a mãe para acalmar a impaciência e todos sorrimos comentando uns com os outros que os “crescidos” são muito lentos a mastigar.

E o André continuou a tecer o tempo com o piscar das luzes da árvore de Natal intercalado de breves paragens “avó, as luzes pararam outra vez”, “as luzes são mágicas, se disseres perlim pim pim voltam a piscar”.

Os “crescidos” mastigaram o que havia para mastigar e chegou a hora do Pai Natal entrar em cena; mas este, no momento exacto teve uma birra e disse que não faria o papel. Pudera, da última vez a representação tinha sido um fiasco!

No Natal de 2008, tinha o André três anos acabadinhos de fazer, pois celebra o aniversário em finais de Novembro, a avó (convém lembrar que em relação aos netos são sempre os avós que alegremente se disponibilizam a encarnar os papeis de “o cavaleiro da triste figura”), vestiu-se de Pai Natal: fato vermelho, umas almofadas a aumentar a barriga, cinto preto a segurar, umas barbichas bancas, barrete enfiado até aos olhos e batendo na persiana da varanda da sala entrou com a estridência que se atribui ao velhinho de ar bonacheirão que já todos adoptámos. O André, com três anos, permito-me frisar, olhou o Pai Natal e antes de se interessar pelos presentes, como seria previsto, comentou “é a avó Buita”.

A avó Buita, que com a destreza da fala já ganhou o estatuto de avó Belita, é uma senhora que eu conheço, mas que obviamente nem vou dizer quem é, porque não me acuso, até faz teatro, ou como ela costuma dizer “arma barraca” o que significa que costuma “vestir” com mais ou menos à-vontade diferentes personagens, não se atrapalhando nada em “assassinar” Molière ou Gil Vicente, dramaturgos que adora torturar mas, nesse instante… a avó Buita sentiu-se perante um público exigentíssimo, no papel mais ridículo que alguma vez desempenhara. “Foram os olhos”, sentenciou a tia, “o olhar traiu-te”.

Então este ano o Pai Natal estava apressadíssimo, mais velhote, coitado, cada vez com mais prendas para entregar. Soaram os guizos das renas, ouviu-se bater na persiana, terá descarregado as prendas e quando acabámos de abrir dispostos a convidá-lo para entrar, perscrutámos a noite, queríamos contar as renas, mas já nem o trenó divisámos no céu, do Pai Natal nem rasto. Do mal, o menos! Havia prendas para todos.

Abertos os presentes, o André quis saber se o Pai Natal já teria chegado a casa da avó Lai, que mora longe, em Portimão. “O melhor é telefonar” e o pai ligou. Estavam todos bem e o Pai Natal estava mesmo, mesmo a chegar, naquele preciso instante. Que sorte! O André aproveitou a ocasião e falou com ele “gostei muito das prendas, mas pedi-te o porco comilão e não me deste” o telemóvel estava em alta voz e ouvimos a resposta ”talvez esteja aqui, vou deixar à avó Lai umas prendas para ti”, “eu estou em casa da avó Belita”, “ eu sei, mas quando aí passei esqueci-me de deixar todos os embrulhos”, “não faz mal eu brinco com estes brinquedos. Adeus, Pai Natal, obrigado”; “adeus, porta-te bem”.

Que bom ter cinco anos!

Até eu acreditei que era o Pai Natal que falava e não o tio Filipe a disfarçar a voz.

sábado, 8 de janeiro de 2011

AINDA UMA HISTÓRIA DE NATAL

Ao Agrupamento 127, SÉ – LEIRIA

No dia oito de Dezembro, recebi a notícia que considerei ser a melhor prenda do meu Natal de 2010, mesmo desconhecendo todas as que viria a receber. E ri-me, ri-me da alegria que a notícia provocou e ri-me por a vida não parar de me surpreender até como desta vez, nas instalações sanitárias, numa cidade do interior do distrito, a alguns quilómetros de casa, onde o sinal do telemóvel me apanhou.

No Sábado, dia dezoito, levantei-me da cama disposta a cumprir um capricho da minha mãe, sabendo que isso exigiria não só algumas horas, mas também muita paciência.

A minha mãe queria uns sapatos novos mas, aos noventa e dois anos e sentada numa cadeira de rodas devido a uma fractura do fémur e com o pé direito deformado pelos joanetes, não pretendia modelos “à velha” ou mesmo ortopédicos porque não é aleijada.

Nessa manhã, enquanto me cuidava, lembro-me de ter pensado que seria melhor levar uma dose extra de boa disposição, porque pela ordem natural da vida, sendo ela tão idosa, partirá antes de mim e eu, quando lhe sentir a ausência vou chorar o facto de não poder andar ainda de sapataria em sapataria a pedir sapatos do pé direito emprestados para levar ao Lar em que se encontra, para que os vá experimentando até acertar na escolha do que calçar melhor e achar mais bonito.

Confesso que muitas vezes perco a paciência com as ideias que tem, mas acabo quase sempre por lhe satisfazer os caprichos, não só porque acho divertida a forma como se agarra à vida, como vejo nisso um modesto tributo ao amor e paciência com que me terá educado.

Pois no momento exacto em que tínhamos acertado na escolha dos sapatos, depois de peregrinar por algumas sapatarias e de algumas idas e vindas entre a cidade e o Lar Emanuel, recebo a notícia de que uma nuvem muito negra pairava sobre a boa notícia que comecei por referir. Fiquei triste, profundamente triste.

E vergada pelo peso dessa tristeza, quando atravessava a Avenida Heróis de Angola, dirigindo-me à sapataria para ultimar o negócio, caminha para mim uma escuteira. Levantei a mão de imediato indicando indisponibilidade, mas ela não desistiu “não quero nada, a não ser dar-lhe este postal ”.

Peguei no postal e nem sequer agradeci, olhei e ali, no meio da rua, quase me desfiz em pranto.

Era o Presépio, com votos de Feliz Natal.

Eu sou crente. Ainda ao almoço tinha dito a uma amiga “Deus providencia sempre!”

Aquela jovem, que o meu gesto não intimidou, acabava de me dar a resposta:

“Deus providenciará que a nuvem se desfaça em água e tudo leve, ou que haja uma brisa benfazeja que a afaste.”

Às vezes, até os anjos se vestem de escuteiras para nos lembrarem que é preciso ter fé e saber esperar.

Às jovens do 127 o meu muito obrigada e os votos de um Feliz Natal. Sim, porque "o Natal é quando o Homem quiser", até pode acontecer em Agosto...

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS



Sou o único homem a bordo do meu barco.
..........................................................

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

LA FOLLE DU LOJIE

Esta manhã no duche, que é a minha forma de começar os dias como quem anda à chuva, lembrei-me da D. Otília, não propriamente dela mas das minhas brincadeiras solitárias no sótão da sua casa.

A D. Otília, que era casada com o senhor Tonecas, cujo nome eu achava mais bonito para um gato do que para aquele homem gorducho e pouco simpático, que à falta de clientes dormitava no táxi que conduzia, era a modista da minha mãe e morava na Rua D. Carlos I, no número dez, em Sismaria da Gândara.

As visitas a sua casa eram sempre demoradas porque implicavam o desfolhar lento de figurinos, o apalpar de tecidos, mede aqui, mede acolá e uma conversa sem fim que a mim nada dizia. Se houvesse prova de algum vestido eu adorava ver, porque a D. Otília tinha um aparelho interessantíssimo com o qual acertava a altura das saias das senhoras. Funcionava com pó de talco. Ela marcava a altura que a saia deveria manter até ao chão numa espécie de régua, enchia um balão de borracha com pó de talco e depois ia-o pisando e através de um tubo que expelia o pó, ficava no tecido da saia marcada a tracejado a altura pretendida. A minha mãe parecia a Terra no movimento de rotação e a D. Otília um deus todo-poderoso a traçar o paralelo de uma longitude desconhecida. Mas se não houvesse prova… que enfado! Então a D. Otília deixava-me ir brincar para o sótão.

O sótão da D. Otília era um espaço amplo a todo o tamanho da casa onde o que mais me encantava era a caixa da máquina de tricotar. Sim, a D. Otília tinha uma máquina de tricotar e a caixa era um paralelepípedo quadrangular - cavalo indomável que eu cavalgava as horas que duravam as conversas do primeiro andar, arrastando-me sótão fora, como se fora o mais verdejante dos prados.

Anos mais tarde a minha professora de Filosofia ensinou-me, nem sei a que propósito, que alguém, a quem já nem lembro o nome, havia concluído: “L’a imagination est la folle du lojie” (A imaginação é a louca da casa). Saí do duche a interrogar-me “de onde é que tal pessoa me conheceria?”

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

LE TEMP VA

Este fim de tarde vestiu-se de chuva miudinha, mas eu precisava de comprar uma prenda para uma amiga aniversariante e adquirida esta, independentemente do estado do tempo, não me apeteceu voltar de imediato para casa. E lá andei passeando à chuva sem me preocupar com as horas. Vantagens de quem vive sozinha! Há horários e obrigações que foram completamente banidos do vocabulário e do quotidiano, no meio da maior das anarquias.

Não foi por isso que, num dos contra-sensos em que sou tão pródiga, deixei de comprar o relógio que há algum tempo “namorava” para a parede do meu escritório. “The right Time” afirma a rodela de vidro negro em letras prateadas, como se isso me preocupasse, mais um para “bater” a qualquer hora. Right foi o preço, que em saldo teve um desconto de cinquenta por cento! Mas a compra foi efectuada já com a maior parte das lojas encerradas, a caminho do parque de estacionamento onde me esperava o automóvel.

Antes vagueei pela cidade pensando no Carlos do Carmo que, no momento em que estacionei, me sussurrava ao ouvido “quand le temp va tous en va”. “Mentira!” Contrapus de imediato. “olha para mim e diz, vá, diz o que fizeram ao meu tempo. Ainda ontem jogava ao berlinde com o Aniceto, na Rua D. Carlos I e à pedrada com o Carlitos na esquina onde ficava a loja da D. Alda e agora? Achas que se pedir uma moeda à minha mãe e for ao “Região de Leiria” fazer um furo, na esperança de que me saia um chocolate venho de lá com um pente de plástico amarelo? E as três barrocas para jogar ao berlinde, faço-as no alcatrão com o calcanhar de que sapato? E a Maria? Achas que ainda vai à Fonte Quente lavar o bordado inglês dos folhos das minhas combinações? Ou será que pensas que os vestidinhos franzidos cheios de florinhas ainda me servem? E o Carlitos? Em que nuvem estará para podermos brincar?

O meu tempo, independentemente de cada relógio de minha casa marcar a sua hora, caminha inexoravelmente para o fim, mas fresquinho, novinho em folha, imaculado, ainda por estrear eu tenho guardado um sonho, que acordada, passo muitas vezes no ecrã do pensamento, mas com os olhos fechados para que as pálpebras protejam as imagens da poeira dos anos.

Sou uma mulher de esperança, o meu sonho é intemporal.

O Carlos do Carmo tem uma voz que me encanta o Bernardo Sasseti é muito bom, mas este CD não é para mim.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

O BURRO

Quando era adolescente, o meu pai dizia muitas vezes ”és mais teimosa que o meu burro! Sem ofensa para o animal, tendo em conta que nem tenho nenhum”. E eu, ouvia aquilo e remoía com os meus botões a resposta que o respeito e, confesso em abono da verdade, o medo do peso que aquela mão branca de unhas muito rosadas poderia exercer sobre as minhas bochechas faziam calar “um burro nunca teima sozinho”.

Esta circunstância fez-me criar uma simpatia especial por estes animais ao ponto de, anos mais tarde, já professora primária, se algum aluno dizia “professora, fulano chamou-me burro” responder invariavelmente “não ligues, se há aqui alguém burro sou eu, que entrei na escola com seis anos e ainda não consegui sair”. Riamo-nos todos e eu, lembrando o meu pai, explicava que os burros eram burros por serem teimosos e não por serem pouco inteligentes.



Entrámos na Herdade e percorremos de carro o longo caminho até à moradia. Eu achava que almoçar ali seria abusar da hospitalidade, mas para cúmulo tinha esquecido um saco de pertences com que enfeitara passas e bacalhau na noite anterior e quando não nos deslocamos pelos nossos próprios meios temos de nos submeter à vontade de quem nos transporta. Desenvolvi um truque para não me impacientar nestas situações: como sou crente digo-me ”estás onde Deus quer” e só não arrisco a Saudação do Sol porque, para além de não saber as doze posturas do yoga, não seria capaz de as coordenar com a respiração.

Quando cheguei, saí do carro e dirigi-me à porta principal. Ele estava em frente, pisando mansamente a erva que a chuva vicejara. Olhei-o sem o ver e não terá gostado.

- Ham ohm, ham ohm – disse-me ele, e continuou por aí fora, proferindo num dos mais simpáticos sorrisos asininos que alguma vez vi, a mensagem de Feliz Ano Novo mais original que alguma vez poderão dirigir-me.

- Bom Ano, para ti também, amigo. Apressei-me a responder.

E só nesse momento percebi que o burro figura no presépio, não por ter o bafo quente, mas porque a simpatia conforta o coração e dilata a alma.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

PASSAGEM DE ANO

Mais uma vez aconteceu passar do Ano Velho para o Ano Novo entre pessoas que, não sendo propriamente minhas amigas, me acolheram como se fosse uma velha conhecida.

A paisagem era de uma lonjura fabulosa, o calor humano ultrapassava o limite do imaginável e os assuntos sobre que se dissertou, para além de interessantes foram muito diversificados.

O.A.A.P. um dos cavalheiros presentes, começou por obsequiar todas as senhoras com um botão de rosa, oferecendo depois, a todos os presentes, o poema que a seguir transcrevo:

O Juramento do Árabe

Baçús, mulher de Ali, pastora de camelas,
Viu de noite, ao fulgor das rútilas estrelas,
....
Wail, chefe minaz de bárbara pujança,..............[minaz = ameaçador]
Matar-lhe um animal. Baçús jurou vingança;
Corre, célere vós, entra na tenda e conta
A um hóspede de Ali a grave e inulta afronta.
...[inulta = impune]

“Baçús, disse tranquilo o hóspede gentil,
Vingar-te-ei com meu braço, eu matarei Wail.”

Disse e cumpriu.

Foi esta a causa verdadeira
Da guerra pertinaz, horrível, carniceira
Que as tribos dividiu. Na luta fraticida
Omar, filho de Amrú, perdera o alento e a vida.

Amrú que lanças mil aos rudes prélios leva,
..........[prélios = combates]
E que em sangue inimigo, irado, os ódios ceva,..[ceva = alimenta, faz crescer]
Incansável procura, e é sempre embalde, o vil...[embalde = em vão]
Matador do seu filho, o tredo Muhalhil................[tredo = falso]

Uma noite, na tenda, a um moço prisioneiro,
Recém colhido em campo, o indómito guerreiro
Falou severo assim:
“Escravo, atende e escuta:
Aponta-me a região, o monte, o plaino, a gruta,
Em que vive o traidor Muhalhil, diz a verdade;
Dá-me que o alcance vivo, e é a tua liberdade!”

E o moço perguntou:
“É por Alá que o juras?”
- Juro, o chefe tornou –
“Sou o homem que procuras!
Muhalhil é o meu nome, eu fui que espedacei
A lança de teu filho, e aos pés o subjuguei!”

E intrépido fitava o atónito inimigo.

Amrú volveu: - “És livre, Alá seja contigo!”
Significados extraídos do antigo Diccionário enciclopédico luso-brasileiro Lello Universal coordenado por João Grave e Coelho Netto

(copiado, para maior comodidade minha, que assim não tive de o bater tecla a tecla, do blog Crónicas Portuguesas – tal e qual como Ricardo Esteves o publicou em 9-4-2008)



A mim, apreciadora incondicional de solos de violino, ofereceu ainda, autorizando-me a partilhá-lo, o poema de sua autoria, que tomo a liberdade de divulgar:


Só quando tiver sido dita a última mentira,

Só quando tiver sido representada a última hipocrisia,

Só quando tiver sido terminada a última falsidade,


Só quando tiver sido alcançada a última nobreza,


Só então,

Será possível viver

A última nota,

Da última corda,

Do último violino…

Da última melodia.



Que aconteça o milagre da multiplicação, não dos pães, mas dos homens como O. A.A.P., porque as senhoras agradecem a gentileza.

A todos os presentes o meu agradecimento pela simpatia que me dispensaram.

domingo, 2 de janeiro de 2011

PALAVRAS DE OUTROS

POESIA-DIA-A-DIA


É difícil viver em poesia

que a poesia ausenta-se. Desaparece. Foge.

E quer ser ontem ou amanhã. Recusa-se a ser hoje

a poesia dia-a-dia


É preciso deitar-lhe a mão

dizer-lhe que não fuja

e não seja evasão

Que venha mesmo assim: mesmo suada mesmo suja

mesmo dor de cabeça náusea transpiração

e se não quer ser cantar que deixa de ser ave e ruja

cá dentro - no coração.

O que é preciso é que ela não se ausente.

Que seja dissonância ou melodia

mas que esteja presente

dia-a-dia


Mesmo que não tenha rima ou seja errada a métrica

mesmo que não fale das coisas da poesia

mesmo que não seja poética

o que é preciso é poesia dia-a-dia


Sobretudo nas horas em que tudo

de repente se esvazia

e pesa mais que tudo esse vazio

sobretudo

quando o fogo se torna fogo frio

e pesa (de vazio) o dia-a-dia

é precisa (mais que tudo) a poesia


Manuel Alegre, O Canto e as Armas

ACONTECEU

Acordei esta manhã numa aflição de alma. Apeteciam-me cheiros e tactos quentes que não me chegavam aos sentidos.

Ainda peguei na “Sábado” para ler na cama. Um prazer que já não me permito há imenso tempo e o atraso da leitura semanal justificava-o, mas a articulação sacro ilíaca esquerda não esteve para contemplações e ordenou que me levantasse.

Tomei o pequeno-almoço e cuidei-me com os ritos habituais, arranjei-me o melhor que pude. Só os sapatos destoavam, optei por uns ortopédicos, confortáveis para longas caminhadas, mas feios, tão feios que até a minha mãe aos noventa e dois anos recusa calçar coisa igual, pois não é velha nem aleijada. E, vestida em tons de castanho, com laivos de um dourado outonal saí disposta a sentir os cheiros de Leiria.

Parei o carro junto ao Estádio e caminhei ao longo do rio, na margem dos afectos que me apeteciam.

Torga angustiava-me cada vez mais “de nenhum fruto queiras só metade” e eu adulterando Ana Goês rezava baixinho “Convida-me só para almoçar e não queiras depois fazer amor. Convida-me só para almoçar num restaurante sossegado/ numa mesa de canto/ e fala devagar/ e fala devagar…”

E fui andando, os passos tantas vezes caminhados na margem do sonho tão longe e tão perto do que quero.

As cores da cidade refulgiam ao sol da manhã, o som dos carros misturava-se com alguns chilreios, a água do rio corria mais apressada do que habitualmente, havia mais gente do que supunha encontrar, um ou outro amigo, votos de Bom Ano e eu continuava, andando, andando, procurando a tranquilidade que só poderia encontrar no tacto e nos cheiros que guardo na memória.

Leiria nem dera pela alteração do calendário.