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sábado, 28 de abril de 2012

MEDITANDO

... cada palavra uma nuvem reparando os céus.


Mas o silêncio é um ovo às avessas: a casca é dos outros, mas quem se quebra somos nós.

Quem nunca aprendeu a querer como pode preferir?


Só há um modo de escaparmos de um lugar: é sairmos de nós. Só há um modo de sairmos de nós: é amarmos alguém.

Mia Couto, in a confissão da leoa

quarta-feira, 25 de abril de 2012

ABRIL


Esta é a madrugada que eu esperava
0 dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo

Revolução

Como casa limpa
Como chão varrido
Como porta aberta

como puro inícío
Como tempo novo
Sem mancha nem vício

Como a voz do mar
Interior de um povo

Como página em branco
Onde o poema emerge

Como arquitectura
Do homem que ergue
Sua habitação

Sophia de Mello Breyner


Não, eu não desisto!
O "sonho só morre quando morre o sonhador".

25 de ABRIL SEMPRE!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

AINDA NÃO FOI DESTA

Eu teria cinco, seis anos, não mais. Uma curva apertada feita em louca correria ocasionou o acidente… Bati com a face na vedação compacta de toros de eucalipto, mais ou menos da minha altura, espetados no chão lado a lado, com que meu pai ordenara ao Coquelimoque que salvaguardasse a pequena horta, das minhas pisadelas às couves e do assalto aos nabos bola de neve. Ainda hoje gosto de nabos crus, nomeadamente daquela qualidade.

Já não recordo a dor, mas lembro-me bem da enorme choradeira, coisa em mim desusada. A dor deveria ter sido tão intensa!

A minha mãe desceu as escadas desde o primeiro andar, num ápice e levou-me para cima. O médico, o Dr. Francisco Dias, que se encontrava presente em visita domiciliária por meu irmão estar doente, pegou-me ao colo, atravessou toda a casa e sentou-me em cima da mesa da cozinha, a mais alta de todas. Desta vez não foi para eu ficar crescida “num instantinho” mas para me examinar mais facilmente. Eu ainda não parara de chorar.

“Não há sangue” disse a minha mãe, “mas dói-lhe muito” retorquiu o médico. Eu acabara de ganhar um desvio no septo nasal e da mazela da face, ficaria para a vida com uma covinha quando sorrisse, pois rompera a bochecha sem rasgar a epiderme.

“Não vai ser atleta” sentenciou o Dr. Dias acerca do meu futuro “o desvio do septo não é grave e quanto à covinha até lhe dará graça ao sorriso” e para aliviar receitou de imediato pachos de água fria e logo que possível gelo, coisa de que não dispúnhamos, à época, com a facilidade que dispomos hoje.

Muitos anos passaram e com eles muitas mais covinhas foi ganhando o meu sorriso…

De facto não fui atleta, mas o que não nasceu torto e por qualquer motivo se entorta, algum dia terá de endireitar-se. Chegou no sábado, dia vinte e um, a vez de o meu nariz ser submetido a uma septoplastia, sentenciada desde o tempo em que o meu otorrino era um jovem de farta e saudosa cabeleira negra…

“Tenho medo de acordar morta” chalaçava eu, adiando a operação com medo da anestesia. “Garanto-lhe que morta não acorda, de certeza” respondeu o clínico invariavelmente, anos a fio.

Ainda não foi desta que acordei morta, mas para já tenho um nariz igualzinho ao da Miss Piggy.

Agora, em vez de sonhar com o Cavalo Verde, passo as horas a suspirar pelo Sapo Cocas…

segunda-feira, 16 de abril de 2012

ALEGRIA

Aos amigos que se preocupam comigo, pensando-me triste, dedico este lindo poema de Fernanda de Castro, que diz maravilhosamente, como gosto da vida.

De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura

duma nova amargura...
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raiz.

Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
um vício.

Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Fernanda de Castro, in "D'Aquém e D'Além Alma"

domingo, 15 de abril de 2012

PALAVRAS

Acordei muito cedo, levantei-me, abri as persianas e tomei o pequeno-almoço. Pouco passava das seis da manhã. “Que faria a pé, que não pudesse fazer deitada?” E voltei para a cama.

O Sol ainda esfregava os olhos e eu fiquei a vê-lo acordar. Gosto das madrugadas.

Sentia frio. Em minha casa nunca faz frio, o aquecimento central não permite, mas eu sentia um certo desconforto. Era mal de alma. Tinha “frio por dentro” como diria a minha mãe. E como nós riamos, eu e o meu irmão, com o meu pai encolhido e a tremer fazendo por imitá-la “Ai, tenho frio por dentro…” Agora já não rio. Já não tenho o meu pai para fazer pantomina, nem o meu irmão para fazer coro e sei que “ter frio por dentro” é sentir saudade...

Mas eu bani a palavra do meu vocabulário… deve estar frio lá fora…


Quando a luz exterior permitiu, peguei numa revista e vagueei por aquelas páginas, sem muita atenção. Uma crónica que falava de ulmeiros fez-me olhar para a parede do fundo do quarto. Apeteceu-me Monet,” As Amapolas” ali coladas em toda a extensão da parede, ao fundo do meu quarto a ondularem ao vento que soprava lá fora, fazendo esvoaçar loucuras na minha imaginação…

Com as cores veio a vontade de encher o espaço de palavras mansas, bonitas, musicais, limpas e luzidias como as cores da manhã e frescas, acabadinhas de inventar.

E, numa amálgama louca, ali estava Eugénio de Andrade…

Que fizeste das palavras?
Que contas darás tu dessas vogais
de um azul tão apaziguado?
E das consoantes, que lhes dirás,
ardendo entre o fulgor
das laranjas e o sol dos cavalos?
Que lhes dirás, quando
te perguntarem pelas minúsculas
sementes que te confiaram?

* In Matéria Solar, Porto, Limiar, 1980

sexta-feira, 13 de abril de 2012

BEIJO

Hoje, DIA INTERNACIONAL DO BEIJO, amem-se.


Beijo na face
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá!

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá!

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
Vá!

Guardo segredo,
Não tenha medo...
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê!

*

Como ele é doce!
Como ele trouxe,
Flor,
Paz a meu seio!
Saciar-me veio,
Amor!

Saciar-me? louco...
Um é tão pouco,
Flor!
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
Amor!

Talvez te leve
O vento em breve,
Flor!
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor!

Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois!
Um mais na face,
E a mais não passe!
Dois...

*

Oh! dois? piedade!
Coisas tão boas...
Vês?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três!

Três é a conta
Certinho, e justa...
Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta!
Três!

Três, sim: não cuides
Que te desgraça:
Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
Três!

João de Deus, in 'Campo de Flores'

quinta-feira, 12 de abril de 2012

DÃO-SE ALVÍSSARAS

Ontem, por circunstâncias da minha vida familiar, vi-me na contingência de ter de falar com uma senhora, que evito ao máximo abordar.

A senhora em causa é uma jovem bonita, com um sorriso fácil, mas quando conversamos, para além do socialmente aconselhável, há qualquer coisa que não funciona. Há sempre ruído na comunicação… Não sei se é o meu ar de “bicho-do-mato”, se acontece que ao fim de tantos anos de aposentação, ainda não terei conseguido despir o papel de supervisora pedagógica, ou se haverá qualquer outro motivo, cuja responsabilidade não enjeito, a verdade é que acho que a senhora se sente sempre posta em causa, quando a minha finalidade não é essa, acabando por dizer algo que me deixa os cabelos em pé, mais do que habitualmente andam, sem que eu tenha hipótese de os recolocar no devido lugar, pois seria impensável retorquir como me apeteceria.

As nossas conversas, raras, felizmente, fazem sempre lembrar-me a Dra. Elisabete, minha professora de Francês, no antigo quarto ano do Liceu, que adorava divagar por outras matérias, que não propriamente aquelas para que era paga. Contou uma vez a Sra. D. Elisabete, nem sei há quantos anos… ou talvez saiba e nem valha a pena enumerar… que os diplomatas tinham aulas, não sei se de dialética se de retórica, com uma chávena de chá na mão, para aprenderem autocontrolo.

Depois das conversas inicialmente referidas, eu penso sempre que me teriam sido muito úteis as aulas deste tipo, para não acabar azeda e com necessidade de digerir a má disposição por algum tempo.

Ontem, mais uma vez, aconteceu. Saí rabugenta, mal disposta e achei por bem, em vez de voltar para casa, ir ver as montras da cidade até remoer a bílis que me tinha subido à boca e que eu, educadamente contive (que orgulho para a minha mãe, se estivesse em condições de assistir a esta exibição da filha…)

Passeei-me pela cidade, apaixonei-me por um colar na montra de uma ourivesaria, que nessas circunstâncias sou de amores fáceis, mas admitindo-me sem troikos, para satisfazer a paixão, fui andando ao sabor do acaso a remoer a conversa de minha conveniência…

Na hora do regresso lembrei-me que precisava de fruta e entrei no “Pingo Doce” da Avenida Heróis de Angola. Dois pequenos passos e à minha frente, vermelhos, lindos, embalados e expostos como eu gosto, estavam os morangos. “Começo por aqui” – pensei deitando a mão a uma das embalagens. Foi então que reparei, mesmo ao lado, empilhadas na horizontal e no mesmo caixote, estendiam-se convidativas caixinhas de chocolate belga, próprio para fondue.

A minha imaginação voou louca, mais rápida que a luz fixou a cena que me curaria o azedume da manhã…

Um almoço a dois, apenas um almoço. E plagiava o poema “convida-me só para jantar/ num restaurante sossegado/ numa mesa de canto/ e fala devagar/ e fala devagar” e à sobremesa... fondue de morangos em chocolate quente…

Eu tenho a tacinha para fazer o fondue, foi um presente da minha amiga P. Comprei morangos. Havia chocolate…

Dão-se alvíssaras a quem encontrar o CAVALO VERDE…

terça-feira, 10 de abril de 2012

HIATO

“Então a ilha continua deserta?” – Perguntou Maria Helena à laia de cumprimento quando, numa qualquer quarta-feira nos encontrámos, casualmente, no café. “Todos os dias espreito e não há nada de novo na linha do horizonte.”

Desnecessariamente, confirmei a evidência: “Pois não” e limitei-me a sorrir.

Depois, voltou aqui e de novo, brincando, pretendeu saber se algum tsunami tinha submergido esta ilha.

Esta ilha… Pedaço isolado, não de terra, mas de gente, permanece no oceano da vida, sujeita a ventos e marés, deslumbrando-se com cada alvorecer, morrendo mais um pouco a cada ocaso.

Gostaria de dizer que o hiato findou, que volto renovada, mas, na verdade, por ironia das circunstâncias, neste lapso de tempo até consegui ficar mais velha um ano…

Ah! Mas conceito inventado pelo Homem agigantando-se como dono e senhor do Universo, ilha deserta não existe. Mesmo sem presença humana a vida está latente: um grão de terra, uma semente, uma gota de água, uma réstia de sol e a esperança é primavera em qualquer estação do ano.

Sou uma mulher vestida de sonho. Teci as vestes com um novelo de nuvem, numa manhã de bruma. No coração, tenho cordas de violino onde o sol nascente toca com o arco-íris a luz de cada madrugada. Uns dias a melodia é mais alegre, outros mais sombria, mas a música é sempre celestial.

E… na linha do horizonte, onde o azul e o verde, sem horas se entrelaçam, o ocaso escreve a ouro a palavra AMANHÃ…

Aos que se preocuparam com o meu silêncio, deixo toda a ternura do meu abraço.

Bem-haja.