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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

A CHÁVENA DE CAFÉ


A tarde estava amena. Uma linda tarde de outono, sem Sol a brilhar, mas clara, em que a tonalidade da luz dava um certo romantismo ao casario que emoldura a praça. Sentei-me na esplanada de “A Aldeia dos Sabores” o mobiliário é mais confortável, que em “O Chico Lobo” e nada obstrui a visão.

O senhor Marques trouxe o descafeinado e bebido este fiquei mergulhada na chávena, com os olhos de fora, a saborear a quietude do dia. A senhora sentada que chamou o marido “Ei! Onde vais?” ; a outra que se sentou e, enganando a dieta, pediu, um croissant partido ao meio para não comer muito de uma vez; as pombas, que me irritam pela proximidade, mas que gosto de ver esvoaçar; a advogada que se aproximou das amigas e que, de pé, contou a experiência desastrosa da marmelada que tentara fazer pela primeira vez. “Vale-me a minha irmã, que faz na Bimby e me abastece”; os caminhantes que atravessavam despudoramente a praça, os que timidamente seguiam pelo passeio…

Ele chegou sem que o visse. “Não quis deixar de a cumprimentar”. Era o amigo de uma amiga. “Porque não se senta?” Convidei, considerando que era o mínimo que poderia fazer por quem depois de me cumprimentar, continuava de pé junto de mim. Ele sentou-se.

Nem sei como, a conversa tomou logo o rumo da política, por conta da afirmação recente do ministro. “Desculpe interromper, mercê da militância, gozo do privilégio de falar de política nos sítios próprios, não vamos deteriorar este encontro informal, com o estado caótico do País.”

O senhor insistia que era “formiga”, desenhou um ângulo de fraca amplitude na conversação e ei lo a falar de dinheiro, do seu dinheiro, da sua poupança, do seu discernimento nos investimentos, da inteligência com que fechava negócios e, por aí fora, num mar de fartura de ondas altas. Eu estava saturada com o despropósito da conversa e ainda arrisquei desinteressada “que bom para si…” O senhor não entendeu e continuou desfiando o inventário.

Quando qualquer das filhas me massacra costumo perguntar “e se fosse chatear a mãezinha?!” Era mesmo a pergunta que me apetecia porque aquele não responderia o que qualquer delas me responde “é precisamente o que estou a fazer…” , mas sorri, num esforço derradeiro… “esse tilintar de euros ensurdeceu-me. A conversa terá de ficar por aqui. Conversaremos mais noutra ocasião.” E fui embora, o mais depressa que pude.

Porque falarão os homens de dinheiro, quando não se vislumbra nada que possam comprar?


E na manhã seguinte, num mergulho rápido na mesma chávena de café, a minha amiga E. …
Um abraço apertado e ela tão animada. Quis saber como estava. Não sabia, tinha acabado a última série de tratamentos, mas sentia-se bem. De facto parecia feliz. Estava feliz.

“Foi no meu neto, Isabel. Foi nele que encontrei força para não sucumbir. Então eu sempre quis ser avó e era agora que tinha um neto que ia desistir e deixar-me morrer?” “Continuas linda”- exclamei. “Só tu!” Mas eu não mentia. A E. possui uma beleza serena que sobrevive à doença. E que força, que verticalidade perante a desdita, que vontade de afastar o infortúnio. “Só não suportava a dúvida. Tiveram de explicar-me bem tudo o que tinha”

E no fim, para meu espanto “se alguma vez precisares de apoio, numa situação semelhante, não hesites em pedir o meu auxílio. Eu já sei como agir” Comoveu-me a generosidade, o sentido do outro, a disponibilidade para amar mas, mais que tudo fiquei esmagada pelo vigor, pela sua certeza de vencer.

Que vergonha tive das minhas fragilidades...

Como dois mergulhos, numa mesma chávena de café podem ser tão diferentes!


quarta-feira, 26 de setembro de 2012

CONFESSO


Ontem, mercê do convite da amiga GM, participei num workshop de pão, no Moinho de Papel, que começou cerca das quinze horas e se prolongou até perto das dezoito.

Havia deixado o carro junto à Rotunda dos Industriais, vulgo rotunda dos Pokémons, como dizem os garotos e eu como eles e deslocara-me a pé para o outro extremo da cidade.

Chovia e molhei-me toda, mas o calor rapidamente secou a roupa, no meu corpo. Vicissitudes de quem não quer pagar o parque de estacionamento.

Quando apressadamente me dirigia ao Moinho de Papel, não reparei, mas quando regressava ao carro, pelas dezoito horas, pretendendo cumprir a visita diária a minha mãe que adiara, mal me aproximei da Ponte Hintze Ribeiro, a expressão escrita em letras garrafais de cor preta, na parede branca agrediu-me. “Meu Deus – pensei – depois da luxúria de pão que comunguei com as amigas, na alegria daquele grupo de jovens, não estou disponível para pensamentos dolorosos.”

Parei. Chovia, mas não foi isso que me impediu de fazer a foto, sem outra finalidade que registar aquele chamamento às tristes realidades deste país que se afunda, pela mão da cretinice, num momento em que o meu espírito vogava a milhas de distância das cruezas atuais da vida coletiva.




Hoje levantei-me com uma terrível preguiça mental. Espreitei o mail, onde me aguardava a cumplicidade de uma amiga, para alegria de outra e dispus-me a uma ronda breve pelos blogs dos amigos. Comecei pelo “Dispersamente…” e não passei dali. Nem de propósito, aquela oração a Santo António… Abusivamente, entrei e apossei-me do texto que ilustra a minha foto. Confesso, despudoradamente, sabendo que só a preguiça mental, esfarrapadamente,  justifica o delito.

António, não mereço perdão, acho justo que se queixe à polícia e me mande prender (só para a semana, agora ando muito ocupada), mas ainda albergo a esperança de que me perdoe… Nem sequer "roubei" o texto todo, ainda deixei um pedaço para si. Há quem roube muito mais e continue por aí, pavoneando-se impunemente.



Os mercadores-banqueiros de Pádua e Florença
Estão hoje em Wall Street, na City e noutras praças.
Possuem palácios, iates, aviões e limusinas,
E evitam as ruas onde vivem os que não têm tecto.
Os seus olhos não sabem abrir-se para o nascimento de uma rosa.
Escuta, Santo: continua a ser difícil dialogar com a usura.
Mais fácil é falar com o trovão, como fizeste.

Maria Amélia Neto
Colóquio Letras
Mesmo o Passado
É sempre incerto
Número 142 Outubro-Dezembro 1996
p. 159


terça-feira, 25 de setembro de 2012

FAÇAM CÓCEGAS À VIDA


Normalmente são as manicures dos cabeleireiros que arranjam as unhas às senhoras, enquanto estas permitem que se lhes cuide dos cabelos. Comigo não é assim. Quando arranjo as unhas vou a uma clínica de estética onde usufruo de quinze por cento de desconto sobre os preços de mercado, porque, mesmo sem ter herdado qualquer costela do Tio Patinhas, não desperdiço a oportunidade de ficar com um euro no bolso, por mais algum tempo.

É a A. que me cuida das unhas. Ontem aconteceu…

A A. é uma jovem simpática, com cachos de caracóis alourados a descerem pelos ombros e sorriso angelical. Tem vinte e oito anos, é casada e mãe de uma menina de seis.

A A. pensa. E a forma como pensa aliada à serenidade que transmite, tornam aquele lapso de tempo em que convivemos, por força das circunstâncias, repousante.

Pois, ontem, a A. estava triste. Trocara o sorriso por um ar marcadamente angustiado e eu, que sei o que é a tristeza e como é difícil carregá-la, senti-me tentada a alegrar aquele rosto, onde a adivinhava.

“Conte-me da sua filhota. Gosta da escola?” Perguntei eu entre unhas e dois goles do chá que me servira. A menina frequenta o primeiro ano de escolaridade o que por desabafos anteriores e pedidos de aconselhamento sabia ser fonte de inquietação. Até já brincara com o assunto “mentalize-se de que ela agora começa a crescer sem a sua autorização. Nunca mais a agarra. Os passos com que a acompanhar à escola no primeiro dia, serão os primeiros que cumprirá com o estatuto de “cota”. Daí para a frente, não há retorno…” “ Não estou preparada para que cresça” – respondeu-me. Eu sorri… “que mãe está?”

Tudo ia bem com a filha. Tudo corria bem na vida, exceto as relações no local de trabalho. A colega que detinha a autoridade e reiniciava ontem a atividade após o período de férias, estava azeda. Os sinais eram notórios. Até eu percebera...

“Então, A.? Tente ser boazinha…” “Eu só fui boazinha duas vezes na vida” – brinquei falando de coisas sérias, em que penso algumas vezes, sobretudo quando estou cheia de vontade de ser mazinha… – e tenho sido tão compensada que gostaria de voltar atrás para ser boazinha mais vezes” Ela riu-se e eu senti que era um convite à narrativa… Contei: Estava a dar aulas. Uma das auxiliares da escola bateu à porta da sala e entrou. Estava no átrio uma mulher que pretendia vender facas, já nem sei quantas eram, por duzentos escudos. “ A senhora se for ali aos Trezentos se calhar compra-as por cento e cinquenta, mas aquilo parece-me uma miséria tão grande… a senhora bem podia ajudar”. Dei-lhe o dinheiro “e suma-se” sugeri… 

Até hoje, em minha casa, são as facas de cozinha que melhor cortam e as que melhor se adaptam ao tamanho da minha mão. De outra vez – continuei, animada pelo interesse que o desanuviar do seu rosto traduzia - foi a contratação da Carma, a minha empregada. Aconteceu quase do mesmo modo. Porque mudara de casa, ficara sem empregada doméstica e ainda não tinha contratado ninguém por apego à anterior. A mesma auxiliar da minha escola perguntou um dia “A senhora não está farta de limpar a casa de banho?” Eu andava tão entretida que ainda nem tinha sentido isso, mas ela insistiu e indicou-me uma mulher que precisava muito de trabalhar “é boa pessoa” garantiu-me. Eu contratei a minha Carma, uma pérola de gente cujo único defeito é mandar em mim, mas eu deixo … e o “casamento” dura há dezanove anos.

Ela já ria graças à cor que imprimi à narrativa destes episódios verídicos da minha vida, a que poupo quem me possa ler e ia acrescentando alguns comentários. Aventurei-me: “Vá lá A. faça cócegas à vida.” “Ora, acho que já cocei tudo onde tinha que coçar.” Ri com vontade, não da A., mas do ar infantil de birra com que proferiu o comentário “menina, ainda tem muita geografia por cumprir, muita fazenda por puir, muitas L.s para aturar. O melhor é coçar diferente onde já coçou antes.”

O riso é contagiante. A A. gargalhou com vontade, pelo sentido dúbio do que fora dito e até eu, que em cada lado da noite não vislumbro a manhã das palavras que me apetecem, saí mais confortada.

POR FAVOR, FAÇAM CÓCEGAS À VIDA.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

SORRISO AUDÍVEL DAS FOLHAS



Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?

                                     Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

domingo, 23 de setembro de 2012

QUE DIZER DOS AMIGOS?


Eu tinha uma amiga… Digo tinha, porque já morreu, não porque deixássemos de ser amigas… Chamava-se Amélia Pais.

Em Janeiro de dois mil e onze, a propósito da publicação do conteúdo de um email que me enviara, escrevi neste blog:

“A Amélia é uma Mulher que não precisa de apresentações. Quem não conhece aquela beirã pequenina e contestatária, visceralmente professora e com uma vasta obra dada ao prelo?
Pois a Amélia, após a aposentação, sem exército, mas cheia de força, continua corajosamente a esgrimir as armas defendendo a cultura em quatro frentes. Assim, como quem aplica às letras a técnica militar de Aljubarrota, ela envia a uma lista enorme de pessoas e para constar dessa lista basta mandar-lhe o endereço, as suas pesquisas: “A companhia do poeta”; “A prosa da semana”; ”efeméride” e ainda denuncia os textos e pps que surgem nas nossas caixas de correio como sendo de Pessoa e que, sendo de alguma pessoa, nada têm a ver com o nosso Fernando.”

Religiosamente, chegavam-me por dia, dois email da Amélia: um poema que escolhera e a notícia de quem morrera ou faria anos, com algum testemunho da sua obra; todas as semanas aparecia um pedaço de prosa e, sempre que a propósito, a defesa do património literário de Fernando Pessoa. Ela foi mesmo a única pessoana que conheci. Quantas vezes, sem recorrer ao Google interpelei a Amélia?! “Amélia, em que poema de Pessoa se situa este verso … ? Em que livro?” E mesmo que eu tivesse errado a citação, a Amélia respondia sempre. Nunca me deixou na dúvida.

E eu e possivelmente todos os outros, achávamo-nos com direito aqueles mimos da Amélia em forma de poemas de autor. Esta afirmação, por muito temerária que pareça, deve-se ao facto de, tantas vezes aparecer um email da Amélia “ Não tenho feedback de ninguém. Se quiserem continuar a receber os meus email, digam ou apago-vos da lista”. Eu apressava-me a responder que não, que não me apagagasses, que gostava muito do que me mandava…

Confesso, para quem me lê, que acho que fui de uma cretinice sem desculpa. Envergonho-me de nunca ter  ouvido o grito da Amélia. A professora atuava num palco para um “público” que não sentia que estava lá. Gostaria de poder voltar atrás, para aplaudir, para trocar diariamente aqueles poemas por uma simples palavra: obrigada. Teria sido tão fácil tornar a Amélia feliz, teria sido tão fácil fazê-la sentir o pulsar do meu interesse por aquele trabalho que tanto saciava a minha sensibilidade… Não o fiz e fiquei, em troca, com um sentimento de menoridade afetiva e mental que me amargura e atrasa o luto.

Pois há quatro ou cinco dias comecei, de novo a receber poemas. Não enviados pela Amélia, mas talvez por sua inspiração. Orlando Cardoso, de quem sou amiga desde menina, sim, nós também já fomos crianças, retomou, timidamente aquele trabalho iniciado pela Amélia. E a Amélia, onde está sorri…

Colhe a rosa
esquecida
no caminho

beija-a
depois

Suave
a luz te é
reservada.
                Amélia Pais


Ah, Orlando! Contigo não vou cometer o erro que cometi com a Amélia. A ti vou agradecer um a um, cada poema. Mando-te um beijo, reparte-o com a F., não vá zangar-se comigo porque o mando, nem contigo porque o recebes.

Que dizer dos amigos? Nada, que não se diga nada! Afaguemo-los, simplesmente.

sábado, 22 de setembro de 2012

ISABEL "A FINGIDORA"


Estava a bela infanta
No seu jardim assentada,
Com o pente de oiro fino
Seus cabelos penteava
Deitou os olhos ao mar
…………………………………………

E eu via-a, eu era a Bela Infanta, assentada naquele jardim que eu sonhava ensolarado e cheio de flores, de muros brancos debruçados na falésia, onde chegava a música do longe e os violinos choravam no eco da distância, não penteando os cabelos, mas “deitando os olhos ao mar”. E o meu mar era S. Martinho, porque nunca me tinham deixado diluir noutro…

Tinha talvez oito anos. Decorei o poema. “Mãe, vou dizer para ver se sei de cor”…  “sabes de cor, mas dizes mal. Não deves acentuar a rima.” Trepei para o banco da cozinha: “tu cais daí”, mas não caí. E fui repetindo o poema até dizê-lo bem. Aquele banco foi o meu primeiro palco e a minha mãe o primeiro público.

Quantos poemas mais? Muitos, só os que ao meu pequeno coração apeteciam…

Passavam aves aos pares
E a água em ondas seguia
E o homem triste sofria
Preso aos mesmos lugares

Eis que passa, um tronco
sobre a corrente – como és feliz!
Onde vais?
Eis os instantes primeiros
que fizeram marinheiros
os nossos primeiros pais.
………………………………………..

Não lembro o autor e cito de cor, sujeitando a poesia aos meus lapsos de memória. Sempre, desde então, a fluição, a sensação de movimento que o mar imprime, sem fugir dali.

Nunca me submeti a mais ensaios, que os da solidão do meu quarto, que aconteciam pelo amor à sonoridade das palavras e aos sentimentos que elas me despertavam. Se precisavam que recitasse, bastava pedirem-me na hora. Havia sempre um poema que se soltava ao vento. Como palco, o estrado da sala de aula e o banco da cozinha, como público os colegas, a professora, a família.

Em mil novecentos e sessenta e dois, com doze anos, fiz a comunhão solene. Houve festa depois do almoço, servido no Salão Paroquial de Marrazes e pediram-me que recitasse. O meu irmão estava em Moçambique e eu sofrida de ausência...

No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece
De balas trespassado
Duas de lado a lado
………………………………………

E não houve quem se negasse a chorar comigo… “Esta menina entra dentro de nós” ouviu-se alguém.

Cresci declamando os poemas das coletâneas de leitura.

Em mil novecentos e sessenta e oito, já no primeiro ano do Magistério Primário, aconteceu a visita do professor José Hermano Saraiva, Ministro da Educação e eu temerária e irreverente, aproveitando as ocultas tendências do professor de Psicologia, que facilmente adivinhara, declamei no Convento de Alcobaça, o poema de Manuel Alegre: “O que é preciso é poesia dia a dia…” Depois de vinte e cinco de Abril, de setenta e quatro, muitos me perguntaram “tens ficha na PIDE?” “sei lá” e nunca quis saber. Chegara-me aprender que a palavra era uma arma.

Pretendiam fazer-me professora e um dia, testando-me, disseram: “esta semana, vais ensinar a orientação pelo Sol”- “Como sair desta? Como ? Como?” – desesperava-se o meu íntimo  e eu impassível, calada e atenta anotava o tema no caderno, não fosse esquecer-me de alguma coisa… como se a ansiedade deixasse…  mas dando tempo ao medo para se recompor…

“Trago uma coisa para vos mostrar” “sabes o que é isto?” Aquele menino sabia. Todos os meninos sabiam. Era uma carta, que me contava a história de alguém (quem ? queriam saber) que se perdera e graças ao Sol voltara a encontrar-se. Como? Vamos aprender como o meu amigo fez…

“Que boa motivação!” disse o professor Mil-Homens, no fim. “Quase me apetece perguntar-te se a história aconteceu mesmo…” Não, não tinha acontecido. E foi assim que descobri que os professores eram artistas, num palco em que eu já representara muitas vezes: o estrado da sala de aula.

Profissionalmente fui uma professora primária que representou para alunos do primeiro ciclo, do segundo, do ensino médio, do superior e para os colegas, monitorando vastas horas de formação contínua.

Nas horas de lazer, colaborava com o grupo de teatro Trolaró, um punhado de colegas que pela mão de Mimi Fernandes fazia espetáculos onde lhe pediam. Pelo país, pisei diversos palcos, apresentando espetáculos, fazendo teatro, declamando e improvisando na apresentação dos loucos modelos de chapéus, que nunca eram iguais e que eu, já no palco, via no momento em que apareciam ao público. Falava sempre de Leiria e terminava declamando “O pinhal do Rei” “aonde, ecoando a cantar/ se alonga e se prolonga a longa voz do mar”

Aposentei-me e fui para a Academia de Cooperação e Cultura fazer teatro com a professora Isabel Aragão. Com ela continuo, agora na Associação Cultural “Sempraudaz”. Fazemos dois a três espetáculos diferentes por ano. Coisas simples, de acordo com as possibilidades de um grupo, em que ninguém é jovem.

Esta fui e esta sou eu, “a fingidora”. Há quem me chame Belita, mas o meu nome é Isabel. Sempre tive o privilégio de fingir nos sítios próprios, sítios onde representar é arte, ou pretende ser arte. Não torpedeio a vida, não me engano a mim, não engano os outros, porque fora destes espaços sou eu, de corpo inteiro, falando a minha verdade, calando-me quando não quero que me saibam ou questionando porque quero aprender.

A vida não é um teatro, não acontece num palco, não vive dos truques das luzes da ribalta, com ponto a soprar as deixas. Independentemente do papel social de cada um de nós, a vida é um milagre que acontece em cada amanhecer, refulgindo como a luz do Sol. Como bem imediato, concedeu-me o dia de HOJE.



Caldas da Rainha - Chegada ao anfiteatro do pólo da Escola Superior de Educação (1991), com a minha professora primária, Sra. D. Maria Rosa L. Pires; Misericórdia(2005) e Teatro José Lúcio da Silva(1998) - apresentando espetáculos.


Diálogo entre Elisa e Cleanto, filhos de Harpagão - O Avarento - Molière (2005)
Teatro Miguel Franco


Januário- Médico à Força - Molière (2010)
Teatro Miguel Franco

E para além destas, vesti muitas outras personagens de Molière, Gil Vicente, José Régio e de mais autores. Já fui médico alcoolizado, escudeiro, Cara-de-pau, rainha, estrela (falhada) de teatro, Galileu, contabilista , Rei Mago e sei lá que mais...

Que autor gostei mais de representar? José Régio.
Onde me diverti mais? No teatro Trolaró, que vivia do improviso e cada uma era o que calhasse, na altura de representar. Uma vez, no teatro Luísa Todi, em Setúbal, a Mimi, que fazia de D. Dinis, na adaptação da Lenda de Segodim, esqueceu as barbas. Quando passou por mim em cena lembrei-a: "as barbas" ela saiu de cena- D. Dinis perdido de amores demorava a chegar- mas, rapidamente, a Mimi volta a entrar pela esquerda cénica  e diz: "demorei-me tanto que me cresceram as barbas" - não houve quem não risse à gargalhada.  


Um espelho não guarda as coisas refletidas! O destino é seguir...Mário Quintana



Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

                                                                                            Ricardo Reis

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

MAR SONORO


 Em honra a S.Martinho e porque ao responder a um comentário me lembrei deste poema...

Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim.
A tua beleza aumenta quando estamos sós
E tão fundo intimamente a tua voz
Segue o mais secreto bailar do meu sonho.
Que momentos há em que eu suponho
Seres um milagre criado só para mim.

Sophia de Mello Breyner Andresen


Embora... prefira este...


Há mulheres que trazem o mar nos olhos
Não pela cor
Mas pela vastidão da alma
E trazem a poesia nos dedos e nos sorrisos
Ficam para além do tempo
Como se a maré nunca as levasse
Da praia onde foram felizes
Há mulheres que trazem o mar nos olhos
pela grandeza da imensidão da alma
pelo infinito modo como abarcam as coisas e os Homens...
Há mulheres que são maré em noites de tardes
e calma

Sophia de Mello Breyner Andresen, in Obra Poética, (Ed. Caminho, 2010)

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

S. MARTINHO DESPIU-SE DE VOZES


Há dois dias que bebia um iogurte líquido ao pequeno almoço. O leite, até o leite acabara. O leite, que gosto de sentir, manhã cedo, a escorregar pela garganta disputando a vez com a torrada.

Peguei na lista das compras e saí, disposta a demandar o Continente, onde pensava abastecer-me do que faltava em casa.

Enfiei-me no carro e já na IC2 levantei os olhos para o céu: “em S. Martinho há neblina” – “Ah, Agustina! Com que precisão nos aparentas a alma com a água, a neblina e a brisa…” Dias antes consultara o horário das marés, pensando que hoje seria a melhor manhã para um passeio pela praia, dado que a baixa mar se verificaria às doze horas e trinta. Ainda nem eram onze… “E se fosse a S. Martinho?” “porque não vais?” pareceu-me ouvir a voz da filha mais nova que comunga estes gostos de evasão.

Pavarotti cantava, com aquela voz limpa, de prodigiosos “dó de peito” como mais ninguém é capaz de extrair e eu, em vez de rumar para a faixa da direita, segui em frente mais uns metros. Só depois virei…

Parei na área de serviço da Nazaré. Tirei da carteira o telemóvel, uma nota de cinco euros, que guardei no bolso das calças e fechei a carteira no porta bagagens do carro. Estava pronta a desfrutar o meu passeio à beira mar.

Em Alfeizerão, havia uma promessa de sol forte, que me acompanhou, estrada fora, até à entrada de S. Martinho. “Ter-me-ei enganado a ler os sinais dos céus?” Ri. “Só o Cavaco nunca se engana e raramente tem dúvidas…” Mas, não. Não me enganara. Em S. Martinho havia uma breve neblina, à medida do que me apetecia e que se encaminhava barra fora, para o mar largo.

O Verão fora-se antes de tempo, não havia barracas na praia, nem bares de tábuas. Havia algas, muitas, muitas algas que agudizavam o cheiro a mar e quase anulavam o cheio quente da duna em que o vento sul ondulava. E neste misto de odores, com os olhos cheios de mar, avancei praia fora, indevidamente tão próximo da água, que mesmo calçada acabei molhando os pés.

O senhor abriu o sorriso muito antes de passar por mim: “Bom dia. Bela manhã!” Sorri, retribui o cumprimento, mas não alimentei a conversa “desculpe amigo, só sou simpática uma vez por dia e estou a guardar-me para o compromisso desta noite” pensei continuando o caminho.

Alonguei-me pelo areal, deliciada com o marulhar das ondas miudinhas. De humano só o movimento de um ou outro veraneante, tal como eu dono do tempo, do seu tempo, ou melhor, do que resta dele e quatro tratores labutando na apanha das algas.

A O.C. telefonou: “adivinha onde estou…” “Lisboa!” “frio” “S. Martinho. Sozinha?” “comigo”

Em Salir, meti pelo passadiço das dunas. Como poucos metros de cota dão uma perspetiva tão diferente! À beira-mar comunga-se, é-se paisagem, dali contempla-se, admira-se. O cheiro da duna era mais forte amaciando o cheiro das algas que, em baixo, continuavam por recolher. E eu saciava os olhos de vida, da vida que flui ao sabor das marés e que indiferente à minha finitude continuará, para além de mim, a regozijar os amantes do belo.

As Paula Urban que calçava reclamavam cheias de areia. “Temos pena. Não seria este verão que desceriam à praia, mas malhar-vos, gastar-vos é sinónimo de que usufruímos juntas a paisagem. Foi o vosso destino que se antecipou” e descalçando-me, sacudi pés e sandálias e continuei.

Pouco faltava para as treze horas. Hora de almoço. “O Ocean Place estará aberto?” Estava. Quinta feira, dia de cozido à portuguesa: meia dose, meio litro de água do Fastio (só degusto vinho acompanhada) e dos cinco euros que levava ainda tive direito a um e trinta cêntimos de troco… “A água está mais cara que a carne…” ironizei com os meus botões e sentei-me à mesa, olhos postos no mar, saboreando a refeição.

Só faltava o café na BOEHMIA (será assim que escrevem?). Passei pelo carro e peguei na carteira, mais uns passos e sentei-me à mesa, na esplanada, olhos postos, lá longe, na duna, que teimosamente sobressaia,  como um espelho, na paisagem difusa, através da leve neblina da manhã, graça à luz do sol. “Os espelhos não guardam as coisas refletidas! O destino é seguir… seguir para o mar, perdendo as imagens no caminho”… Mário Quintana chegara sem ser convidado…

O descafeinado apareceu de mãos dadas com o açúcar que dispenso por adulterador daquele sabor forte que me apraz, mas leio a frase impressa: “Uma noite vou percorrer todos os oceanos contigo” Terá escrito um tal António Navarro. “Pois é, António. Há mar e mar… e também há ir e voltar… Não é O’Neil?”

S. Martinho despiu-se de vozes… Chegou o Outono do nosso apaziguamento.

SENSACIONISMO


(...) Não há critério da verdade senão não concordar consigo próprio. O universo não concorda consigo próprio, porque passa. A vida não concorda consigo própria, porque morre. O paradoxo é a fórmula típica da Natureza. Por isso toda a verdade tem uma forma [?] paradoxal. 

Fernando Pessoa, in 'Sobre «Orpheu», Sensacionismo e Paùlismo'

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

ASPIRAÇÃO

Ainda o meu canto dolente
e a minha tristeza
no Congo, na Geórgia, no Amazonas

Ainda
o meu sonho de batuque em noites de luar

ainda os meus braços
ainda os meus olhos
ainda os meus gritos

Ainda o dorso vergastado
o coração abandonado
a alma entregue à fé
ainda a dúvida

E sobre os meus cantos
os meus sonhos
os meus olhos
os meus gritos
sobre o meu mundo isolado
o tempo parado

Ainda o meu espírito
ainda o quissange
a marimba
a viola
o saxofone
ainda os meus ritmos de ritual orgíaco

Ainda a minha vida
oferecida à Vida
ainda o meu desejo

Ainda o meu sonho
o meu grito
o meu braço
a sustentar o meu Querer

E nas sanzalas
nas casas
no subúrbios das cidades
para lá das linhas
nos recantos escuros das casas ricas
onde os negros murmuram: ainda

O meu desejo
transformado em força
inspirando as consciências desesperadas.

Agostinho Neto (Angola)


Este blog é para os amigos.
Aqui fica este inspirador poema de força, que um amigo me enviou há umas horas.

MY WAY

E agora que o fim está próximo
...............................................
Eu fiz o que devia ter feito
E fiz tudo do meu jeito
...............................................
Enfrentei tudo e de pé continuei firme
E fiz tudo do meu jeito
................................................
Sim era o meu caminho

terça-feira, 18 de setembro de 2012

LILASES


Quando por fim a cifra infinita
que dois mundos combinam
esplender inteiramente seus motivos
a cada um caberá olhar
na lâmina de ouro
um nome inefável
o que buscámos sem um gesto
o que dissemos sem uma palavra

José Tolentino de Mendonça, A Estrada Branca


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

domingo, 16 de setembro de 2012

O SORRISO


Creio que foi o sorriso,
sorriso foi quem abriu a porta.
Era um sorriso com muita luz
lá dentro, apetecia
entrar nele, tirar a roupa, ficar
nu dentro daquele sorriso.
Correr, navegar, morrer naquele sorriso.

                                       Eugénio de Andrade

sábado, 15 de setembro de 2012

TENHO DIREITO


Os últimos tempos, para mim, não têm sido nada fácil, sejam quais forem as perspetivas por que os analisemos. Talvez por isso, embora assumindo-me como uma mulher de esperança, que acredita em cada amanhecer, hoje acordei com vontade de desistir.

Encostar-me aí e ficar escondidinha à espera que a vida passe sem ruído, sem reparar que existo, sem me abanar mais, esconder-me no quarto escuro daquela casa enorme onde morei em criança e ficar brincando aos caranguejos, olhos abertos sem me mexer perscrutando o espaço que não visse. Felizmente a minha mãe ainda me chama e eu agora respondo prontamente, para sua segurança, não porque os caranguejos tivessem aprendido a falar.

Nesta dor de alma em que acordei, coisa desusada em mim, possível fruto de tanta curva do pensamento e intempéries da vida, cansada de reinventar-me em esperança, sem vontade de acreditar seja no que for, ainda assim e mesmo assim, a teimosia acende em mim uma nesga de luz, lembrando um pequeno malmequer que sem sabermos como e contrariando toda a lógica, floresce entre duas pedras da calçada, indiferente à velocidade dos carros.

Os problemas de saúde de uma das filhas e a consequente necessidade de ajudar a cuidar dos netos levaram-me para Lisboa a vinte e sete de Agosto e obrigaram-me ao corrupio dos fins de semana para atender a minha mãe, que embora bem cuidada, se sente que tardo adoece da alma.

Para que não faltasse nenhum ingrediente para eu poder ter hoje mais pena de mim, no Lar ainda deixaram cair a minha mãe e eu, retida em Lisboa, num sufoco, não pude correr para a acompanhar nas urgências do hospital, coisa que o lar, não sei porquê, não faz perante a impossibilidade de acompanhamento por parte da família.

Ainda se avariou, sem conserto, no sábado passado, a máquina de lavar roupa e eu sem amigas por cá que me “emprestassem” o marido, para me ajudar a escolher outra que comprasse, adiei o problema para este fim de semana, o que me possibilitou umas consultas técnicas por telefone.

Deambulando pela casa enquanto espero a entrega da máquina que o meu amigo VL, que me adotou e passa a vida a ralhar comigo, como nunca ralhou com a filha e ainda menos com a mulher, diz que comprei por ser a mais bonita e não a melhor, dou comigo a esgravatar na memória dos dias à procura de consolo.

Irra! Isto não é persistência, é teimosia! Porque não hei de deitar-me para aí cheia de pena de mim? Depois de tudo, também tenho direito.

CONCEITOS DE PERFEIÇÃO (último critério)


Pelo último dos mesmos critérios teremos a vida por imperfeita por a julgarmos consubstanciada com a imperfeição, isto é, não existente, porque a não existência, sendo a negação suprema, é a absoluta imperfeição. Teremos a vida por ilusória; não já imperfeita, como para os gregos, por não ser perfeita; não já imperfeita, como para os cristãos, por ser vil e material; senão imperfeita por não existir, por ser mera aparência, absolutamente aparência, vil portanto, se vil, não tanto com a vileza do que é vil, quanto com a vileza do que é falso. É deste conceito de imperfeição que nasce aquela forma de ideal que nos é mais familiarmente conhecida no budismo, embora as suas manifestações houvessem surgido na Índia muito antes daquele sistema místico, filhos ambos, ele como elas, do mesmo substrato metafísico. É certo que este ideal aparece, com formas e aplicações diversas, nos espiritualistas simbólicos, ou ocultistas, de quase todas as confissões. Como, porém, foi na Índia que as manifestações formais dele distintivamente apareceram, podemos ser imprecisos, porém não seremos inexactos, se dermos a este ideal, por conveniência, o nome de ideal índio.

Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção

CONCEITOS DE PERFEIÇÃO (2.º critério)


Pelo segundo destes critérios teremos a vida por imperfeita por uma deficiência quantitativa da sua essência, ou, em outras palavras, por a considerarmos inferior - inferior a qualquer coisa, ou a qualquer princípio, em o qual, em relação a ela, resida a superioridade. É esta inferioridade essencial que, neste critério, dá às coisas a imperfeição que elas mostram. Porque é vil e terreno, o corpo morre; não dura o prazer, porque é do corpo, e por isso vil, e a essência do que é vil é não poder durar; desaparece a juventude porque é um episódio desta vida passageira; murcha a beleza que vemos porque cresce na haste emporal. Só Deus, e a alma, que ele criou e se lhe assemelha, são a perfeição e a verdadeira vida. Este é o ideal que poderemos chamar cristão, não só porque é o cristianismo a religião que mais perfeitamente o definiu, mas também porque é aquela que mais perfeitamente o definiu para nós. 

Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

CONCEITOS DE PERFEIÇÃO (1.º critério)


Pelo primeiro destes critérios, aplicando-o ao conjunto da vida, tê-la-emos por imperfeita por nos parecer que falece naquilo mesmo por que se define, naquilo mesmo que parece que deveria ser. Assim, todo o corpo é imperfeito porque não é um corpo perfeito; toda a vida é imperfeita porque, durando, não dura sempre; todo o prazer imperfeito porque o envelhece o cansaço; toda a compreensão imperfeita porque, quanto mais se expande, em maiores fronteiras confina com o incompreensível que a cerca. Quem sente desta maneira a imperfeição da vida, quem assim a compara com ela própria, tendo-a por infiel à sua própria natureza, força é que sinta como ideal um conceito de perfeição que se apoie na mesma vida. Este ideal de perfeição é o ideal helénico, ou o que pode assim designar-se, por terem sido os gregos antigos quem mais distintivamente o teve, quem, em verdade, o formou, de quem, por certo, ele foi herdado pelas civilizações posteriores.  

Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

CONCEITOS DE PERFEIÇÃO


Nasce o ideal da nossa consciência da imperfeição da vida. Tantos, portanto, serão os ideais possíveis, quantos forem os modos por que é possível ter a vida por imperfeita. A cada modo de a ter por imperfeita corresponderá, por contraste e semelhança, um conceito de perfeição. É a esse conceito de perfeição que se dá o nome de ideal.
Por muitas que pareça que devem ser as maneiras por que se pode ter a vida por imperfeita, elas são, fundamentalmente, apenas três. Com efeito, há só três conceitos possíveis de imperfeição, e, portanto, da perfeição que se lhe opõe. 

Podemos ter qualquer coisa por imperfeita simplesmente por ela ser imperfeita; é a imperfeição que imputamos a um artefacto mal fabricado. Podemos, por contra, tê-la por imperfeita porque a imperfeição resida, não na realização, senão na essência. Será quantitativa ou qualitativa a diferença entre a essência dessa coisa imperfeita e a essência do que consideramos perfeição; quantitativa como se disséssemos da noite, comparando-a ao dia, que é imperfeita porque é menos clara; qualitativa como se, no mesmo caso, disséssemos que a noite é imperfeita porque é o contrário do dia.

Fernando Pessoa, in Textos de Crítica e de Intervenção

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

TARDE

Procura
lenta
demorada...

Avó,
tenho um pau
e uma pena

Que belo tesouro!

Vou fazer uma bandeira

A vida
deitando penas
ao vento...

MANHÃ

Bom dia, menina.

Dá o pé
para a avó fazer cócegas...

agora o outro, vá lá...

A vida
cumprimentando a manhã
de sorriso aberto.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

NOITE

Num dos lados da noite...

- Avó, quero estar ao pé de ti.
- Deita-te e dá-me a mão, para não nos perdermos nos sonhos.


E, de mãos dadas, voltámos a dormir...

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

ALEGRIA


De passadas tristezas, desenganos
amarguras colhidas em trinta anos,
de velhas ilusões,
de pequenas traições
que achei no meu caminho...,
de cada injusto mal, de cada espinho
que me deixou no peito a nódoa escura

duma nova amargura...
De cada crueldade
que pôs de luto a minha mocidade...
De cada injusta pena
que um dia envenenou e ainda envenena
a minha alma que foi tranquila e forte...
De cada morte
que anda a viver comigo, a minha vida,
de cada cicatriz,
eu fiz
nem tristeza, nem dor, nem nostalgia
mas heróica alegria.

Alegria sem causa, alegria animal
que nenhum mal
pode vencer.
Doido prazer
de respirar!
Volúpia de encontrar
a terra honesta sob os pés descalços.

Prazer de abandonar os gestos falsos,
prazer de regressar,
de respirar
honestamente e sem caprichos,
como as ervas e os bichos.
Alegria voluptuosa de trincar
frutos e de cheirar rosas.

Alegria brutal e primitiva
de estar viva,
feliz ou infeliz
mas bem presa à raíz.

Volúpia de sentir na minha mão,
a côdea do meu pão.
Volúpia de sentir-me ágil e forte
e de saber enfim que só a morte
é triste e sem remédio.
Prazer de renegar e de destruir
                                             o tédio,

Esse estranho cilício,
e de entregar-me à vida como a
                                             um vício.

Alegria!
Alegria!
Volúpia de sentir-me em cada dia
mais cansada, mais triste, mais dorida
mas cada vez mais agarrada à Vida!

Fernanda de Castro, in "D'Aquém e D'Além Alma"

domingo, 9 de setembro de 2012

PERHAPS LOVE




Talvez o amor seja como um local de descanso, um abrigo da tempestade
Ele existe para te oferecer conforto, Ele está lá para te manter aquecido
E naqueles tempos de dificuldade quando você está sozinho,
A lembrança do amor vai te trazer para casa

Talvez o amor seja como uma janela ,Talvez uma porta aberta,
Ele te convida para chegar mais perto, Ele quer te mostrar mais
E mesmo se você perder a si mesmo e não souber o que fazer,
A lembrança do amor vai te acompanhar

O amor para alguns é como uma nuvem, Para alguns tão forte como o aço
Para alguns um modo de vida, para alguns um modo de sentir.
E alguns dizem que o amor está persistindo E alguns dizem que está desistindo
E alguns dizem que o amor é tudo E alguns dizem que não sabem...

Talvez o amor seja como o oceano, Repleto de conflito, repleto de dor
Como uma chama quando está frio lá fora, Um trovão quando chove.
Se eu viver eternamente E todos os meus sonhos tornarem-se realidade,
Minhas lembranças do amor serão sobre você...

E alguns dizem que o amor está persistindo E alguns dizem que está desistindo
E alguns dizem que o amor é tudo E alguns dizem que não sabem

Talvez o amor seja como o oceano, Repleto de conflito, repleto de dor
Como uma chama quando está frio lá fora, Um trovão quando chove.
Se eu viver eternamente E todos os meus sonhos tornarem-se realidade,
Minhas lembranças do amor serão sobre você...

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

GUARDADOR DE REBANHOS


«Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa ?»
«Que é, vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz ?»
«Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.»
«Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.»

Fernando Pessoa, "Guardador de Rebanhos", 1911-1912

A OVELHINHA E O LOBO DE PELO LUZIDIO


Era uma vez uma ovelhinha que vivia num prado verdejante salpicado de malmequeres amarelos.

A ovelhinha comia as ervinhas verdes e maravilhava-se com as flores. Sim, a ovelhinha gostava muito de flores amarelas e os malmequeres, com aquelas pétalas fininhas pareciam mesmo pequenos sóis, prontos para lhe aquecerem o almoço.

Ela brincava com as outras ovelhinhas e com os cordeirinhos que viviam no prado. Eram todos seus amigos e a ovelhinha gostava de os cuidar: “põe o chapéu, que está muito Sol”, ”não vás por aí que podes cair”, “come mais ervinhas para seres grande e forte”. A ovelhinha gastava o dia num sem fim de recomendações, à volta daqueles amigos e ficava feliz sempre que outro amigo se juntava ao grupo.

Muitos dias, quando os amigos não estavam por perto, a ovelhinha ficava muito quieta, encostada à sombra de uma grande pedra e estendia o olhar pelo prado até à linha do horizonte. A ovelhinha gostava muito de olhar, ver e admirar a distância e se alguém lhe perguntava o que estava a fazer, respondia que estava a lavar os olhos e a alma.

Um dia, quando olhava meio distraída, viu ao longe um lobo, um lindo lobo de pelo luzidio. “Que lindo lobo!”- disse a ovelhinha para os seus botões. Bem, na verdade a ovelhinha não tinha botões, nem sabia o que isso era… isto é uma forma de dizer que a ovelhinha falou alto e para ela própria, pois não estava ali mais ninguém que a ouvisse. Se estivesse, eu tenho a certeza que a ovelhinha nem teria coragem de dizer tal coisa. E sabem porquê? Porque as ovelhinhas não devem olhar para os lobos, devem é fugir deles.

Agora não fiquem a pensar que os lobos são maus ou antipáticos. São diferentes. As ovelhinhas comem erva e os lobos comem… ovelhinhas! Se apanham uma a jeito, ferram o dente e… chamam-lhe um figo, como nós costumamos dizer.

Como já perceberam, a ovelhinha sabia muito bem como deveria comportar-se com o lobo, mas ele era tão bonito, que se esqueceu… O lobo nem reparara naquela ovelhinha tão insignificante, havia coisas muito mais interessantes que lhe prendiam a atenção… mas, um dia e há sempre um dia para as coisas acontecerem, o lobo reparou na ovelhinha e  perguntou-lhe se queria brincar. Saltaram pelo prado e até brincaram às escondidas… Foi uma alegria.

A ovelhinha estava fascinada. Aquele amigo era diferente de todos os outros. Aquele pelo luzidio… era mesmo um regalo para os olhos. A ovelhinha não se cansava de olhar.

Quando já se entendiam muito bem nas brincadeiras… querem saber o que aconteceu? A ovelhinha lembrou-se “ai, ai, os lobos e as ovelhinha, não podem ser amigo” e vai daí zangou-se com o lobo de pelo luzidio, só porque tinha medo que o lobo a comesse. Ora, digam-me lá: "se o lobo quisesse comer a ovelhinha, já não o teria feito?" Que tonteira! Não foi? Afinal, aquela ovelha que passava o tempo a cuidar da vida dos outros, não sabia tratar da dela.

O lobo ficou muito triste, por não poder brincar mais com a ovelhinha de quem já era muito amigo. E a ovelhinha também. Sabem porquê? Porque magoara o amigo, que vergonha... e depois da zanga, descobriu que o lobo era vegetariano. 

Afinal, o lobo de pelo luzidio só comia ervinhas verdes, não comia ovelhinhas… “será que também gosta de malmequeres amarelos?” perguntou ela cheia de saudades do amigo…

Não sei se a ovelhinha e o lobo voltaram a ser amigos. Que vos parece? 

Deixo para vós o final da história. Eu tenho de ir fazer doce, porque a Carma deu-me tomates e se eu os deixo estragar, ela zanga-se comigo. Eu não quero. Seriam zangas a mais nesta história…





terça-feira, 4 de setembro de 2012

DÁ-ME A TUA MÃO


Dá-me a tua mão.

Deixa que a minha solidão
prolongue mais a tua
— para aqui os dois de mãos dadas
nas noites estreladas,
a ver os fantasmas a dançar na lua.

Dá-me a tua mão, companheira,
até o Abismo da Ternura Derradeira.

José Gomes Ferreira, in “Poeta Militante I” 

domingo, 2 de setembro de 2012

S. MARTINHO DE S. MARTINHO DO PORTO



S. Martinho de Tour, nome por que ficou conhecido através da biografia de Suplício Severo, Vita Martini, escrita entre 394 e 397, terá nascido em Sabaria, na antiga Panónia, hoje Hungria, entre 315 e 317. Filho de um soldado do exército romano, estudou em Pavia e tendo abraçado a vida militar aos quinze anos, chegou a cavaleiro da guarda imperial.
Conta a lenda que, por volta do ano 338, às portas de Amiens, em França, numa noite fria e chuvosa de Inverno, seguia a cavalo quando um pobre com ar miserável e quase nu lhe pediu esmola. Martinho, que nada tinha para dar, num gesto de generosidade cortou ao meio a capa dando metade ao mendigo, para que se agasalhasse. De seguida, conta a lenda, a chuva parou e os raios de sol irromperam por entre as nuvens. Este sinal do céu, considerado como milagre, celebra-se no dia onze de Novembro, o que faz de S. Martinho o único santo festejado de inverno.

A dita capa de cor púrpura, simbolizava o estatuto social, o poder da classe militar, daí o ato de partilhá-la ser um rasgado gesto de solidariedade, numa época em que, passados três séculos de cristianismo, os homens ainda não se consideravam todos como irmãos.



No altar-mor da igreja de S. Martinho do Porto existe esta fabulosa pintura.

 


Sento-me num dos bancos e fico a olhar. Um imberbe cavaleiro vestido à moda do século XVI, monta um garboso cavalo branco. À sua direita um homem, musculado e seminu, cobre-se com parte do seu manto e mostra-nos a mão direita numa posição que sugere o ato de pedir esmola.
Salta à vista o manto – verde! Desenha-se-me o primeiro sorriso. Deverá ser o único oficial da guarda romana com um manto verde, penso. Teria de ser único, este S. Martinho, de S. Martinho do Porto!
Que pincel impressionista terá dado à luz aquele pobre? E volto a sorrir, desta vez à desproporção. Que quereria dizer o pintor com esta imagem? O modelo era um homem muito alto? Haveria muitos pobres? Era muita a miséria? Ou não nos quis dizer nada de especial? Falta de habilidade do artista?

E o cavaleiro? Quem é aquele imberbe D. Sebastião? Porque simbolizará S. Martinho a uma distância de doze séculos? Que traços inventou o pincel para exprimir humanidade, humildade, solidariedade, gentileza? 

Não sei responder a tanta questão, mas também nunca procurei respostas.

Gosto de ir à igreja e sentar-me a questionar calmamente esta imagem única.

Uma tarde, levei lá as amigas...

(bibliografia: NET)

A IGREJA DE S. MARTINHO DO PORTO


O Largo junto à porta de entrada. Aqui costuma arder o madeiro do Natal.
(Sim. Tempos houve em que nem só as férias de Verão passava em S. Martinho do Porto)
Gosto deste quadradinhos em preto e branco.





Pormenor do teto


A P.S. queria, à viva força, esta pia de água benta, para levar para a casa do Reguengo do Fetal.
Fiz-lhe a vontade e trouxe-a. Aqui está, para lhe entregar...


A O.C. preferiu a expressão do cartaz: "Porque murmuramos, fazendo criticas fáceis, em lugar de mudar radicalmente o presente?"
Nessa tarde eu prometera fazer-lhes as vontades. Trouxe também a questão...


 Mas, olhando para a porta da direita (nós entrámos pela da esquerda) fui categórica: Faz-te ao largo. Foi o que fez cada uma de nós...
Atravessámos o largo e dirigimo-nos para a...

Onde se vendem as melhoras bolas de Berlim, com ou sem creme; as famosas areias de S. Martinho - "Sabem mesmo a manteiga." - exclamou a O.C. quando provou; as melhores empadas de galinha do mundo, com massa folhada tão estaladiça como a dos pasteis de nata.

Mas, porquê a admiração? Tudo o que nasceu ou foi inventado na década referida é de primeira qualidade :))



Depois da merenda, continuámos o passeio...


Para olharmos o mar... lá do alto.



sábado, 1 de setembro de 2012

LUA AZUL


Hoje, dia trinta e um de Agosto, tal como já acontecera no dia dois, pode observar-se, no céu, lua cheia. Por acontecer pela segunda vez no mesmo mês, o fenómeno, que só se repete de três em três anos, intitula-se de Lua Azul.






Imagem da Lua Azul, colhida da minha varanda


Sob a lua azul, o meu CAVALO VERDE

Aqui deixo Elvis Presley




e Ella Fitzgerard