Bastam-me as cinco pontas de uma estrela
E a cor dum navio em movimento
E como ave, ficar parada a vê-la
E como flor, qualquer odor no vento.
Basta-me a lua ter aqui deixado
Um luminoso fio de cabelo
Para levar o céu todo enrolado
Na discreta ambição do meu novelo.
Só há espigas a crescer comigo
Numa seara para passear a pé
Esta distância achada pelo trigo
Que me dá só o pão daquilo que é.
Deixem ao dia a cama de um domingo
Para deitar um lírio que lhe sobre.
E a tarde cor-de-rosa de um flamingo
Seja o tecto da casa que me cobre
Baste o que o tempo traz na sua anilha
Como uma rosa traz Abril no seio.
E que o mar dê o fruto duma ilha
Onde o amor por fim tenha recreio.
POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO - Natália Correia
Passaporte (1958)
segunda-feira, 30 de janeiro de 2012
POEMA DESTINADO A HAVER DOMINGO
sábado, 28 de janeiro de 2012
ESTA MADRUGADA
A madrugada
consente-me
a sensação do sonho.
O dia
sujeita-me
à vida não consentida.
fernanda s.m. -2006
"Furtado" (de mansinho) de estrela-da-madrugada.blogspot.com
sexta-feira, 27 de janeiro de 2012
O SEGREDO É AMAR
O segredo é amar. Amar a Vida
com tudo o que há de bom e mau em nós.
Amar a hora breve e apetecida,
ouvir todos os sons em cada voz
e ver todos os céus em cada olhar.
Amar por mil razões e sem razão.
Amar, só por amar,
com os nervos, o sangue, o coração.
Viver em cada instante a eternidade
e ver, na própria sombra, claridade.
O segredo é amar, mas amar com prazer,
sem limites, fronteiras, horizonte.
Beber em cada fonte,
florir em cada flor,
nascer em cada ninho,
sorver a terra inteira como o vinho.
Amar o ramo em flor que há-de nascer,
de cada obscura, tímida raiz.
Amar em cada pedra, em cada ser,
S. Francisco de Assis.
Amar o tronco, a folha verde,
amar cada alegria, cada mágoa,
pois um beijo de amor jamais se perde
e cedo refloresce em pão, em água!
Fernanda de Castro
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
O TAMANHO DO ESPAÇO
Baterias de cozinha e jazz-band,
Estrelas, pássaros, satélites perdidos,
Aquele cabide no recinto do meu quarto,
Com toda a minha preguiça dependurada nele...
O espaço, que seria dele sem nós?
Mas o que enche, mesmo, toda a sua infinitude
É o poema!
- por mais leve, mais breve, por mínimo que seja...
[Mario Quintana; Velório sem defunto, 1990]
terça-feira, 24 de janeiro de 2012
MESA DOS SONHOS
Ao lado do homem vou crescendo
Defendo-me da morte quando dou
Meu corpo ao seu desejo violento
E lhe devoro o corpo lentamente
Mesa dos sonhos no meu corpo vivem
Todas as formas e começam
Todas as vidas
Ao lado do homem vou crescendo
E defendo-me da morte povoando
De novos sonhos a vida
Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'
domingo, 22 de janeiro de 2012
A UM AUSENTE
À memória dos amigos, cujo falecimento, me deixou mais pobre de afectos.
Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.
Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu, enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?
Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.
Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste
Carlos Drummond de Andrade
quinta-feira, 19 de janeiro de 2012
quarta-feira, 18 de janeiro de 2012
DESDE A AURORA
Como um sol de polpa escura
para levar à boca,
eis as mãos:
procuram-te desde o chão,
entre os veios do sono
e da memória procuram-te:
à vertigem do ar
abrem as portas:
vai entrar o vento ou o violento
aroma de uma candeia,
e subitamente a ferida
recomeça a sangrar:
é tempo de colher: a noite
iluminou-se bago a bago: vais surgir
para beber de um trago
como um grito contra o muro.
Sou eu, desde a aurora,
eu — a terra — que te procuro.
Eugénio de Andrade, in "Obscuro Domínio"
domingo, 15 de janeiro de 2012
ARCO-ÍRIS
Estendo os braços
Só eu
em cada lado da noite.
Fascinadas pelo silêncio
as palavras
marulham na alma
ternura... ternura... ternura
A forma do teu corpo
E uma mão
Simplesmente uma mão
pegando a minha
O sonho acontecia…
E acontecia
amor em cada gesto
Um afago simples
Só ternura
E na noite
Foste
O arco-íris…
sexta-feira, 13 de janeiro de 2012
PEQUENAS COISAS
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.
Albano Martins
quarta-feira, 11 de janeiro de 2012
LEITURAS
Abandonado “Teatro de Sabbath”, de Philip Roth, ou pelo menos em largo repouso, para além de mais de meio lido, não por ser demasiado escabroso, mas sim catastroficamente libidinoso e muito próximo do limiar da loucura e da extinção, aventurei-me por outras leituras.
Carlos Ruiz Zafon foi-me apresentado por “A Sombra do Vento” onde, embora me parecendo faltar ritmo ao suspense, desabrochou a minha curiosidade. Por isso não hesitei perante a reedição (Setembro de 2011) de “O Príncipe da Neblina” (prémio Edebé 1993).
Li todo o livro à espera de me deparar com o romance, para chegar ao fim e concluir que teria gostado muito da obra quando tinha doze anos. Talvez então me tivesse identificado com Alicia e lastimasse a perda de Roland, mas, de momento, o meu espírito sentiu a trama tão pouco elaborada e ficou tão sedento de qualidade, que só a poesia, forma privilegiada da expressão, me poderia lavar a alma.
A Demora
demoras
mesmo quando chegas antes.
Porque não é no tempo que eu te espero.
Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias.
Quando chegas
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços
para dar cor ao chão em que te ergues.
Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio
para aplacar a tua sede.
Envelhecida a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz
se vai despindo em ti.
O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.
Mia Couto, in " idades cidades divindades"