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sexta-feira, 3 de abril de 2020

QUEM SOU?


Nada sei, só de mim falo
Tela obscura, curto espaço
Antes de mim outros pensaram
O que penso
E com todos aprendi como me faço

Quem sou?
Amálgama de tanto eu que desconheço
Tentando unir o que sei disperso
Serei NADA, perante o Universo!



sábado, 21 de março de 2020

APETECE-ME UM POEMA


Apetece-me um poema
cheio de palavras lavadas,
carinhosas, perfumadas

Apetece-me um poema
de palavras luminosas
ao ouvido murmuradas

Apetece-me um poema
cheio de sol e madrugada
feito de mar e de flores
de que me traga os odores

Apetece-me um poema…

Poema feito de brisa
Em manhã ensolarada
Poema feito de música
Do chilreio da passarada

Poema de tudo e nada
de vida já tão vivida
ora alegre
ora sofrida

Apetece-me um poema…

Poema por engomar
do tempo que ainda resta
poema que saiba amar
feito de mimo e de festa

Apetece-me um poema...

domingo, 15 de março de 2020

FOI EM NOVEMBRO


Naquela manhã chovia. Chovia muito.

Ela tem uma relação estranha com a chuva. Independentemente do ânimo, a chuva purifica-a, lava-lha a alma, solta-lhe as amarras, liberta-lhe o peito. É o céu que se solta em bênçãos lavando agruras, purificando o verde, filtrando o ar e fertilizando a terra. Água benfazeja!

Ela gosta de água. Equilibra-se no vai-e-vem das ondas pequeninas da baixa-mar desfazendo-se em poesia na areia da praia e ao longo do curso do rio, correndo mansamente para a foz, onde se miram vaidosas as copas das árvores, com o vento a assobiar movimento entre as folhas que o sol ilumina. Os peixes aplaudem. Mesmo que não haja peixes, ela sonha-os. Os peixes vivenciando o infinito, na distância da nascente à foz. A vida vogando ao sabor da corrente, ou contrariando-a, como ela gostaria de ser capaz de fazer, na verdade, como ela às vezes faz às circunstâncias.

Desde cedo sonhou soltar amarras e sentir a liberdade de se enfiar mar adentro. Ela nunca tentou. Acha mesmo que nunca seria capaz. Na Vieira, era o apito do banheiro que a fazia voltar. “Deixe-a ir”, dizia o irmão. E o banheiro consentia que desse mais duas ou três braçadas antes do apito soar mais estridente ainda, do alto das pedras junto à foz do Lis. Dissipava-se a sensação de liberdade e, sem vontade, regressava à praia. Mesmo sabendo que nadava melhor que o banheiro, fora ensinada a obedecer.

Em S. Martinho ninguém a impedia de arriscar, de adentrar-se no mar, “sempre em frente até chegar à América” - pensava, mas, a América não lhe interessava e por mais que nadasse, sempre se sentia mergulhada num útero protetor. No útero protetor da Mãe-Natureza! Foi assim até que num longínquo quinze de agosto de triste memória, o Marito desapareceu nesse mar de encanto. Percebeu-se depois que um barco a motor lhe batera na cabeça, quando mergulhava à beira mar. Só muitos anos mais tarde, as bóias definiram um espaço de proteção  para os banhos dos veraneantes. Ela não estava na praia. Fora passear com outros amigos, já não lembra onde, nem tampouco o ano… lembra, contudo que vestia um vestido de seda estampado em tons de amarelo e branco (as insignificâncias que a memória retém!). E ainda se vê a questionar o mar, “como foi possível?”

Na Foz do Arelho, já de mão dada com as duas filhas, banhavam-se na rebentação usufruindo, naquele perigosíssimo mar, o momento de elevação da onda. “Pulem que esta é grande!” E elas sem pé, as três feitas uma, sentiam na pele o arrepio da dúvida gerindo por segundos a incerteza de conseguirem manter-se à tona da água, à espera da onda seguinte. Vezes houve em que o mar as cuspiu. “Que temeridade! – pensa hoje… Estes banhos loucos, tornaram as filhas tão destemidas que, um dia, a mais nova, sem autorização e fora do alcance do seu olhar, entrou na “aberta” e um anjo protetor devolveu-lha de perfeita saúde. Nunca mais voltaram à Foz. Agora, S. Martinho do Porto é a praia ideal para as “aventuras” em que a neta se lança.

Num impulso irreprimível, exclamou “vou andar a pé!” O bom senso segredava-lhe que era melhor ter juízo. Era uma ideia tola caminhar num dia assim. Desceu a escada e enfiou-se no carro com a firme determinação de chegar à margem do rio.

Ao virar para a rua de Nossa Sra. do Amparo, apercebeu-se que uma jovem mulher caminhava à chuva com notória dificuldade. A velocidade a que seguia, embora não exagerada, e o fluxo descendente do trânsito não lhe permitiram parar em segurança, mas voltou atrás pela rua paralela.

Parou, então. “Parece-me que a senhora caminha cor dificuldade. Aceita que a leve a algum lado?” “Eu vinha a rezar, pedindo a Deus ajuda para subir a ladeira.” –  respondeu a senhora à laia de “bom dia”.

Então ela percebeu. O apelo da chuva fora o pequeno milagre na vida de alguém.