Páginas

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

S. MARTINHO DO PORTO

Aconteceu-me S. Martinho num longínquo Setembro, tinha então seis meses de idade e vai-me acontecendo em cada Verão, por períodos mais ou menos longos de acordo com as circunstâncias da vida.

S. Martinho do Porto é um sítio onde o mar me cabe todo no olhar com a promessa de que o Mundo fica do outro lado das dunas.

A areia fina, dura quando molhada, permite-me óptimos passeios pela praia, na baixa-mar, que gosto de fazer de manhã bem cedo, quer debaixo de um sol a adivinhar-se quente, quer na luz difusa das manhãs encobertas.

Caminho até Salir, pela areia ou pelo passadiço das dunas. Quando há sol, a sombra apressada caminha à minha frente. Talvez por em Salir estar sempre mais quente, tem pressa de chegar e, quando retomo o caminho de regresso, teima em ficar para trás para, só passado o farol, já percorrido grande parte do percurso, caminhar ao meu lado até ao cais.

Tantos são já os passos caminhados de um mesmo percurso que as palavras são escassas para as nuances dos estados de alma com que aconteceram.

Naquele dia de Junho, a tarde adivinhava-se chuvosa e foi prevenida com os habituais apetrechos para a chuva que cheguei a S. Martinho. Surpresa! A tarde estava linda!

Ultimado o assunto que ali me levara retomei ao carro disposta a regressar. A vontade era pouca! Porque não usufruir do espaço se era dona do tempo?

Em vez de virar à esquerda continuei em frente, na direcção de Salir. E, inopinadamente, ele, as tias, o tio, o primo e eu… quarenta e cinco anos atrás, num pequeno pinhal que a humanização da paisagem tornou ainda menor. Lembrar-se-á desse piquenique? O que mais vivamente tenho gravado na memória é a simpatia de uma das tias, o discurso da outra, a magreza do tio e a minha atrofiante timidez... o meu sentimento de menoridade perante a facilidade com que ele expunha, decidia, agia. Recordo ainda o banho que os três tomámos no rio, naquela manhã de maré cheia. E foi com o sorriso de beatitude, que a lembrança me colocou nos lábios que continuei o passeio até perto da água. Não estávamos lá, a maré estava a descer...

No regresso, não resisti à tentação de parar o carro na rotunda à saída de Salir, e passear a pé pelo passadiço que serpenteia sobre as pequenas dunas. A paisagem fervilhava de vida, graças à chuva da manhã. Das dunas, numa mistura de verdes com flores amarelas e cor-de-rosa, emanava um cheiro a quente fecundo. Ouvia-se o canto de um ou outro pássaro e um cão ladrou lá para o lado de Salir. As ondas pequeninas, pequeninas, desfaziam-se na areia bem devagarinho, quase em silêncio, não fossem quebrar o encanto e a baía era um imenso espelho emoldurado pelos cambiantes de castanho e verde a que algumas nuvens, aqui e ali, davam um tom mais escuro. O casario branco, que a distância apequenava, resultava ainda mais branco naquela luz de meia tarde.

A fina brisa que acariciava os meus braços nus trouxe-me à memória um poema que escrevera na adolescência: "Quero amar! / Quero possuir! / Quero dar! / Quero perscrutar ao pôr-do-sol o teu olhar/ e ver-me nele como o reflexo do sol sobre o mar/..."

Na beatitude da paisagem, com o pensamento mergulhado no tempo, o sol presenteou-me com o reflexo e estivemos lá. Mesmo sabendo que nunca houve aquele olhar vim para casa com a alma lavada.

Como duas horas de lembranças me deixaram feliz!

6 comentários:

  1. "... a minha atrofiante timidez..." - não estou a ver-te assim descrita...
    Mas é sempre bom reviver os bons momentos de outrora, não é?

    ResponderEliminar
  2. É verdade, era mesmo uma garota tímida e sobretudo muito sensível. Magoava-me pensar que ficava aquém daquilo que os outros esperavam de mim. O meu irmão era extrovertido e senhor de uma simpatia que conquistava todos e eu uma criança com um enorme mundo interior à espera que gostassem de mim. Passou-me quando descobri que até gostavam, tal e qual como eu era...

    ResponderEliminar
  3. Gostei do texto, da forma como somos transportados no tempo e nas recordações...

    E recordei, num flash: talvez fosse Domingo.
    Sou jovem, 20 anos, estou à espera de ir para a tropa. Anos 60, 1967 mais precisamente.
    Subo a escarpa da enseada virada para poente. Sinto-me alpinista. Em dado momento já não consigo subir nem descer...Pus-me a olhar o mar. A pensar...nem sei eu em quê! Talvez na enrascada em que me estava a meter.

    Não me lembro como me consegui desenvencilhar daquela situação.
    A verdade é que ainda cá ando!...

    António Nunes

    ResponderEliminar
  4. Olá, António,
    Muito obrigada pela gentileza das suas palavras.
    Ainda bem que ainda cá anda. Desejo que continue a andar, feliz, por muitos mais anos. E, já agora, vá lendo o meu blog.

    Até breve.

    ResponderEliminar
  5. De Salir também tenho boas recordações.Mas depois de a ler Isabel gosto ainda mais de Salir.Também eu me lembro daquele pequeno pinhal onde era possível piquenicar. Mas não tive a Felicidade, de ouvir da sua boca aquele lindo Poema. Foram três a tomar banho... O segundo calculo quem tenha sido. Quem foi o terceiro?
    Gosto muito do que escreve e é bom lê-la quando ás vezes estamos cansados do dia a dia.

    ResponderEliminar
  6. Olá, Euchavi,
    Gosto do seu nickname. Em terra de cegos quem afirma "euchavi" só pode ser mesmo um privilegiado que possui, no mínimo, um olho, (lol). Muito obrigada por ler o que escrevo e pela gentileza de dizer que gosta.
    S. Martinho do Porto mais do que um lugar é um estado de espírito. Falar de S. Martinho do Porto seria falar dos encontros comigo, dos silêncios que desejo e dos que não entendi nas esperas a que a vida me tem obrigado. Ali vive-se o contraste da imensidão da paisagem no aconchego da proximidade. Esquece-se carro, relógio e enchemo-nos de mar e de brisa S. Martinho é o meu sossego de alma e o meu sonho improvável. "Quando for grande" terei lá uma casa, com uma janela debruçada sobre o mar...
    Tenho pena de não ser capaz de publicar aqui algumas fotos de S. Martinho para abrir o "apetite" dos que não conhecem e para fazer lembrar a magnífica paisagem aos que possam estar esquecidos.
    Desafio-o a passar uns dias de férias em S. Martinho do Porto. Se coincidirmos no tempo ainda o convido para saborear os pasteis de nata quentinhos no "Cantinho" ou as bolas de Berlim da Cecília que são as melhores do mundo e dos arredores. Verá com depois sobe as dunas de Salir de um folgo só.

    ResponderEliminar