Numa passada terça-feira, deu-me para as arrumações.
Não há ninguém, a não ser o Pacheco Pereira que junte tanta papelada como eu. Não que ele me tenha convidado para ir tomar uma copo lá a casa e eu visse alguma coisa fora do lugar. Nada disso! Acontece que, numa qualquer revista, vi publicada uma foto do dito senhor na biblioteca e reparei que aquilo era um susto muito maior que o quarto azul, que foi como a minha filha mais nova apelidou a divisão onde divago, martelando no teclado do computador, local a que em tempos idos se chamaria escritório. Bom, o senhor citado é um intelectual ao pé de quem eu mal sei ler e escrever, o que justifica o amontoado de papéis; eu não tenho desculpa e vai daí e de vez em quando, lá trato de rasgar alguns.
Acresce confessar que gosto de ler de lápis na mão e que vou fazendo anotações das passagens mais interessantes dos livros que vou lendo, por vezes sabe-se lá onde!
Hoje, ao abrir um caderninho de capa dourada e lombada preta salta-me à vista Manuel Alegre
“Meu amor é marinheiro
quando as suas mãos me despem
é como se o vento abrisse
as janelas do meu corpo”
Esta é a quadra de que mais gosto do poema: Trova de Amor Lusitano e a sua leitura deu-me uma vontade quase irreprimível de ouvir Adriano Correia de Oliveira. E o disco? Bom, à falta de gira-discos, que há muito já não possuo, está com todos os outros arrumado numa estante que possuo na garagem. Ainda pensei, vou à Net e delicio-me, mas fiquei num vou, não vou, que nem sequer chegou a merecer honras de talvez, por me lembrar que Adriano não cantava esta quadra.
Abril de setenta e quatro deu som à palavra liberdade, que antes não passava de um suave murmúrio, mais adivinhado que ouvido por cada um de nós e a partir de então vá de gritá-la ou cantá-la pelos anos em que a desejámos em silêncio.
Por isso, se bem me lembro, esta magnífica quadra, que tanta sensualidade transmite, não é cantada no disco. Ele canta, se a memória não me atraiçoa,
Meu amor disse que eu tinha
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade
E sabem o que vejo sempre que lembro esta quadra? Aquele magnífico trabalho de Augusto Mota que estava no café Colipo, colocado na parede em frente à porta, “A Lenda do Lis e do Lena”. Não me perguntem porquê, pois não saberei responder; o quadro não terá nada a ver com a quadra, ou talvez tenha, mas não me vou pôr à procura de razões. O que posso garantir é que quem alguma vez o contemplou ficou bem mais rico de sensações pois é nuns cabelos assim que “nascem os ventos e a liberdade”.
E neste contraste de rasgar papéis e compor divagações, com a imaginação a levantar voo sem plano ou vento a favor, deu-me uma fome terrível. Eram dezasseis horas e ainda não tinha almoçado.
Largo papéis e poemas, avanço para a cozinha, atiro-me aos tachos e afins e dou comigo a almoçar pataniscas de bacalhau.
O que Freud não diria disto?!
Não basta ter apenas os ingredientes para confeccionar certos pratos. Estas pataniscas de bacalhau, de que não temos imagens, revelam-nos a Arte culinária desta Chefe e os temperos usados q.b. música, poesia, pintura… Sem espinhas. De comer e chorar por mais.
ResponderEliminarP.S. Sobre a Lenda do Lis e Lena http://tintacompinta.blogspot.com/2009/12/lenda-do-lis-e-do-lena.html