Quarta-feira, como noutro dia
qualquer, desloquei-me ao Lar Emanuel, à hora do almoço, para ajudar a minha
mãe na refeição. Porque era quarta-feira e o lar é uma associação também é esse
o dia da semana escolhido por um grupo de amigos para aí almoçarem. O grupo é
aberto e todos os que aparecem são, no mínimo, meus conhecidos, de alguns sou
amiga, e com muitos partilho até ideais de vida. Coincidiu, por isso que eu e o
RPP, cujo destino era o referido almoço de amigos, chegássemos quase em
simultâneo, com uma ligeira vantagem de décimas de segundo para mim. Saí do
carro e esperei que arrumasse, para o cumprimentar.
“Vens almoçar connosco?” –
perguntou-me. Não, não ia. Na verdade nunca confraternizei naqueles almoços. Vá
lá saber-se porquê. Porque não! “Vou dar almoço à minha mãe”.
“Ah! Precisas disso? - perguntou
RPP – “e quando não estás?” “Quando não estou, não venho. Há cá imensa gente
que a cuida bem” – respondi e o meu cérebro fervilhava com a questão “preciso
disto?” “Preciso disto?” Sem atinar com a resposta à questão que nunca se me
pusera.
O RPP continuava “a minha irmã era assim com a minha mãe” “Acho que
precisamos as duas” ouvi-me a responder. Uma resposta de consenso que achei
equivaler a responder coisa nenhuma. Tínhamos acabado de entrar na portaria.
Cumprimentei o sr. H. brincando com a camisola vermelha que vestia e
adiantei-me ao RPP que ficou na conversa com este. “Vou andando. Vemo-nos lá em
baixo” - e desci até ao refeitório.
A pergunta não me largou nessa
tarde “preciso disto?”, Que me perguntava o RPP? Afinal a que chamaria ele “isto”?
“Isto” era a visita diária a minha mãe, a ser entendida como quê? Catarse?
Rotina? Penitência? Ali havia qualquer coisa que não me soava bem…
Sem querer vi-me sentada naquela
mesa do refeitório, meia de esguelha, entre as duas Amélias, minha mãe e aquela
outra, de quem fora vizinha em pequenina e a quem, para desespero de minha mãe, tratara sempre por tu, coisa que nem acontece com ela e que acabara por ser
minha madrinha de casamento. Vivíamos em pequenas vivendas geminadas e contam,
eu era pequena de mais para me lembrar, que saía do meu jardim e batia-lhe à
porta. “O que queres?” “Não gosto do comer da minha mãe. Quero o comer do
Quinzinho”. O Quinzinho era o marido, que também nunca teve direito a tratamento
cerimonioso. E a minha mãe passava-lhe o meu almoço pelo muro do quintal que ficava
nas traseiras da casa e eu comia regaladamente “o comer do Quinzinho”. E era
uma festa quando ele chegava, mas assim que este despia o casaco e ficava em mangas de camisa... eu saía imediatamente.
Vá lá saber-se porquê.
No outro lado do quadrado está a Dona Felicidade, desdentada e bem-disposta. Mingaram os maxilares e não teve direito a novas próteses dentárias, come tudo passado. Está mal da mão esquerda. Está
a fechar-se e por isso tem de segurar sempre um rolo de ligaduras para evitar
que piore. Ajudo-a quando precisa, parto-lhe o pão aos bocadinhos para a sopa.
Em troca ela encomenda-me a alma: “merece o céu” “é muito boa senhora” e diz
aquilo com um ar tão convicto que eu quase me sinto tentada a acreditar…. E
rio-me “eu trato bem a Felicidade para a felicidade não se esquecer de me
tratar bem a mim”. E ela percebe a brincadeira e também ri “Deus a proteja e
aos seus” “Muito obrigada. Há de proteger e a si também”. No outro lado da mesa
está a dona Adelaide. Uma senhora triste, só sorri e o sorriso ilumina-se
quando reparto com ela algum mimo que levo para minha mãe.
Afinal o que acontece é que é
muito fácil criar laços... É uma questão de disponibilidade afetiva. Algo que acontece
porque sim.
“Isto” como dizia o meu amigo, não
é uma questão de necessidade, nem minha, nem de minha mãe. É uma questão de
afeto. Entre mim e a minha mãe há laços absolutamente inquebráveis de amor que
se criaram ao longo de muitos anos. A minha mãe é o último "amor-perfeito" que me
resta. Quero mimá-lo bem enquanto dura. Porque sim!
E fazes muito bem! A minha mãe (e eu...) talvez não fosse capaz que "isso" acontecesse porque era (aparentemente, talvez, não sei) dura de mais. Se calhar por isso partiu, nova, aos 62 anos...
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