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sábado, 29 de março de 2014

AS PALAVRAS TRAEM-NOS


Há tempos, há atrasado, como diz a minha amiga IA, num lindo e calmo linguarejar nortenho, meti um amigo em trabalhos. Aliás, ele é que se deixou meter. Convenci-o, facilmente, diga-se em abono da verdade, a participar num concurso de poesia que decorreu ao longo de dez semanas. Só que o meu amigo, independentemente da sua atividade no âmbito da escrita, já estava mergulhado de corpo e alma num outro trabalho de grande responsabilidade, a concluir até final de dezembro. O tempo de que dispunha era pouco.

O meu amigo é um purista da língua, na linha de Vasco Graça Moura com um leve toque do surrealismo de O’Neil, embora garanta que tendo começado por ser neorrealista, hoje escreve livre de tendências e escolas. É também um contemplativo. A sua poesia tem um refinado sabor a serenidade. Usa preferencialmente os verbos no passado. E eu leio-o e sinto a confortável sensação de me debruçar na janela, numa tarde amena, admirar os dias que já foram, saboreando minuto a minuto aquilo que vivi; ou que me sentei à beira do regato a vê-lo, não fluir para a foz, mas alongando o olhar no sentido da nascente. O tempo parou e eu rebobino a vida, com a doce sensação de quem come un petit gâteau  e quando este  chega ao fim, tem hipótese de voltar ao princípio para voltar a saborear o mesmo petit gateau e usufruir o mesmo paladar, vezes sem conta, até se saciar da ternura da vida.

Durante o concurso, os temas sobre que se deveria escrever, eram sugeridos semana a semana e o poema urdido deveria ser enviado, obrigatoriamente, até às zero horas de domingo. Numa qualquer semana, o poema, sempre até às vinte e cinco linhas, teria de conter cinco vezes a palavra “toque”. O meu amigo escreveu um desencadear lindo de versos, que me pediu que lesse em primeira mão. Falava de tempo e da espera da amada, certo de que ela vinha e ia sonhando, acariciando a textura dos lençóis onde se deitara, os passos que quebrariam o silêncio da tarde, pisando o saibro do caminho. E no suave encantamento das palavras quase se conseguia ouvir o pensamento do poeta, até ao último verso que, devendo conter toda a intensidade poética do poema, resultara frouxo.

“Não precisas de esperar. Adivinha-se que tens a amada junto a ti.” Escrevera eu no email de resposta, onde dei a sugestão de alteração. E de facto o meu amigo vive uma relação calma e harmoniosa há alguns anos. Isso estava ali, claramente expresso no último verso daquele poema.

Por essa altura, eu andava muito triste, tinha morrido a minha madrinha de casamento, que mais do que isso fora um dos fortes pilares do templo onde me acoitei enquanto crescia e nem sei se na cabeça, se no coração, ou mesmo nos dois lados, era Saúl Dias que me lembrava:

Havia
na minha rua
uma árvore triste.

Quebrou-a o vento.

Ficou tombada,
dias e dias,
sem um lamento.

(Assim fiquei quando partiste...)

E o último verso, contendo tão elevada carga poética, que sem ele nem haveria poema, trouxe-se me à lembrança o trabalho do amigo. “Até a minha sugestão é mole” – pensei.

Ia a caminho de Lisboa, a Rita estava doente e eu acelerava na autoestrada como já não fazia desde o acidente da Z.. Diminui o andamento e envie-lhe um sms com nova sugestão.

Ele ligou. “Quase não tiveste tempo de ler o sms… “ – comentei. Que não, que não tinha recebido nada. Fora por acaso que se verificara a sequência. Já em Lisboa percebi porquê. A mensagem não lhe fora endereçada. Como utilizo sms antigos para enviar mensagens mais rapidamente, escolhera um, carreguei em “responder”, só que não fora num dele e lá seguiu a recado para quem estava a seguir… A conduzir, nem reparara na troca.

Debatemos o assunto e o final terá (ou não) sido alterado… Nunca me preocupo em saber.

Posteriormente, de outra pessoa, recebi um sms: “Sim, eu sei como é difícil não pensar que sou uma sonsa dissimulada…”  Seguindo o mesmo tipo de raciocínio, pergunto: a quem lembraria escrever tal coisa?

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