Naquela manhã chovia. Chovia muito.
Ela tem uma relação estranha com a chuva. Independentemente
do ânimo, a chuva purifica-a, lava-lha a alma, solta-lhe as amarras,
liberta-lhe o peito. É o céu que se solta em bênçãos lavando agruras,
purificando o verde, filtrando o ar e fertilizando a terra. Água benfazeja!
Ela gosta de água. Equilibra-se no vai-e-vem das ondas
pequeninas da baixa-mar desfazendo-se em poesia na areia da praia e ao longo do
curso do rio, correndo mansamente para a foz, onde se miram vaidosas as copas
das árvores, com o vento a assobiar movimento entre as folhas que o sol
ilumina. Os peixes aplaudem. Mesmo que não haja peixes, ela sonha-os. Os peixes
vivenciando o infinito, na distância da nascente à foz. A vida vogando ao sabor
da corrente, ou contrariando-a, como ela gostaria de ser capaz de fazer, na
verdade, como ela às vezes faz às circunstâncias.
Desde cedo sonhou soltar amarras e sentir a liberdade de se
enfiar mar adentro. Ela nunca tentou. Acha mesmo que nunca seria capaz. Na
Vieira, era o apito do banheiro que a fazia voltar. “Deixe-a ir”, dizia o
irmão. E o banheiro consentia que desse mais duas ou três braçadas antes do
apito soar mais estridente ainda, do alto das pedras junto à foz do Lis.
Dissipava-se a sensação de liberdade e, sem vontade, regressava à praia. Mesmo
sabendo que nadava melhor que o banheiro, fora ensinada a obedecer.
Em S. Martinho ninguém a impedia de arriscar, de adentrar-se no
mar, “sempre em frente até chegar à América” - pensava, mas, a América não lhe
interessava e por mais que nadasse, sempre se sentia mergulhada num útero
protetor. No útero protetor da Mãe-Natureza! Foi assim até que num longínquo quinze de agosto de triste memória, o Marito desapareceu nesse mar de encanto. Percebeu-se
depois que um barco a motor lhe batera na cabeça, quando mergulhava à beira
mar. Só muitos anos mais tarde, as bóias definiram um espaço de proteção para os banhos dos veraneantes. Ela não estava na praia. Fora
passear com outros amigos, já não lembra onde, nem tampouco o ano… lembra,
contudo que vestia um vestido de seda estampado em tons de amarelo e branco (as
insignificâncias que a memória retém!). E ainda se vê a questionar o mar, “como
foi possível?”
Na Foz do Arelho, já de mão dada com as duas filhas,
banhavam-se na rebentação usufruindo, naquele perigosíssimo mar, o momento de
elevação da onda. “Pulem que esta é grande!” E elas sem pé, as três feitas uma,
sentiam na pele o arrepio da dúvida gerindo por segundos a incerteza de
conseguirem manter-se à tona da água, à espera da onda seguinte. Vezes houve em
que o mar as cuspiu. “Que temeridade! – pensa hoje… Estes banhos loucos,
tornaram as filhas tão destemidas que, um dia, a mais nova, sem autorização e
fora do alcance do seu olhar, entrou na “aberta” e um anjo protetor
devolveu-lha de perfeita saúde. Nunca mais voltaram à Foz. Agora, S. Martinho
do Porto é a praia ideal para as “aventuras” em que a neta se lança.
Num impulso irreprimível, exclamou “vou andar a pé!” O bom
senso segredava-lhe que era melhor ter juízo. Era uma ideia tola caminhar num
dia assim. Desceu a escada e enfiou-se no carro com a firme determinação
de chegar à margem do rio.
Ao virar para a rua de Nossa Sra. do Amparo, apercebeu-se que
uma jovem mulher caminhava à chuva com notória dificuldade. A velocidade a que
seguia, embora não exagerada, e o fluxo descendente do trânsito não lhe
permitiram parar em segurança, mas voltou atrás pela rua paralela.
Parou, então. “Parece-me que a senhora caminha cor
dificuldade. Aceita que a leve a algum lado?” “Eu vinha a rezar, pedindo a Deus
ajuda para subir a ladeira.” – respondeu a senhora à
laia de “bom dia”.
Então ela percebeu. O apelo da chuva fora o pequeno milagre
na vida de alguém.
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