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segunda-feira, 18 de junho de 2012

VERTIGEM

As minhas filhas vivem em Lisboa. Quando a saudade me aperta o peito, o que acontece com frequência, vou visitá-las e amiúde queixo-me da solidão que me ensombra os dias.

“Mas, estás só quando?” Perguntam elas. “Se telefono para o número fixo, não estás em casa” diz uma, “se telefono para o telemóvel, vais a caminho de algum encontro, estás num jantar ou em qualquer outro evento”, acrescenta a outra. E eu calo-me. Como explicar a duas jovens aquilo que só senti com o suicídio de duas amigas? Como explicar às minhas filhas, quando eu própria só há poucos anos descobri, que não tinha qualquer tipo de hipótese de alterar a “rotação da terra”, mesmo possuindo uma alavanca de tamanho adequado e ponto de apoio onde fixá-la?

E vou vivendo, o melhor que posso. Umas vezes, entretenho o tempo, outras é o tempo que me entretém. Nada nos ocupa mais, que não termos nada para fazer.

Esta semana aconteceu-me uma daquelas sensações de vertigem como há muito não sentia. Segunda e quarta-feira foram dias calmos, vividos com os rituais do costume: a visita à mãe, o chá com as amigas, os programas de TV…  uma ida à dentista, já marcada; tudo previsto, tudo programado com tempo e precisão.


Terça-feira, começou o sufoco. Aceitei o convite de um amigo, de um velho amigo, para tomar um café. Pensava eu que pretenderia agradecer-me o facto de lhe ter corrigido o romance que escrevera, dado que só comunicáramos por email. Engano. Pediu-me que escrevesse o prefácio do livro. “Mas eu nunca estudei literatura, como queres que te escreva o prefácio?!” e lá vim com a incumbência, da qual ainda não sei como vou desembaraçar-me.

Quinta-feira:

Bofá, Senhor, mal pecado,
Sempre é morto quem do arado
Há de viver.

Nós somos vida das gentes,
E morte das nossas vidas;
A tyranos -  pacientes,
Que a unhas e a dentes
Nos tem as almas roídas.
Para que é parouvelar?
Que queira ser pecador
 o lavrador;
não tem tempo nem logar
nem somente d’ alimpar
as gotas do seu suor …


Gil Vicente aos pulos no Hiperurânio! Mas… o lavrador era “um rapaz” bem garboso! Andou de arado às costas ali pelo Teatro Miguel Franco, que isto de lavrar, já nem dá para os tremoços… Maquilhadora, ponto até entrar em cena. Nada com rentabilizar os recursos!

Sexta-feira: Tarde da música na Academia de Cooperação e Cultura. Saída, em passo de corrida para a “obrigatória” participação no ato eleitoral que decorria na sede do partido e, saída ainda em passo mais rápido para a apresentação do livro “O olhar na construção de O Crime do Padre Amaro”. Orlando Cardoso, que apresentou o livro, cativou-nos, mas Ana Margarida Dinis Vieira, a leiriense a quem se deve a pesquisa, seduziu-nos com o entusiasmo com que nos falou e nos fez imaginar os olhares de Eça.

Uma palavrinha às amigas “hoje, não janto convosco. Não há estomago que aguente” e seguiu-se a caminhada até ao Convento da Portela, depois da recusa de permanecer a vê-las “mastigar” e de as acompanhar ao Te-Ato onde se estreava “O crime do Padre Amaro”.

Optei pelo Requiem em ré menor, de Mozart, que nunca ouvira ao vivo, interpretado pelo Coro de Câmara da Escola Superior de Música de Lisboa, por One Chambrer Choir - Singapura e a Orquestra Filarmonia das Beiras sob a batuta de Paulo Lourenço, com a participação de Xiang Ting Teng – Barítono; Joana Nascimento – Contralto; João Rodrigues – Tenor; Manuel Rebelo – Barítono. O Festival de Música de Leiria só acontece uma vez por ano e não se podem desperdiçar as oportunidades…

Sábado – Lisboa: O concerto de José Carreras, inserido na comemoração dos setenta e cinco anos da Rádio Renascença.


Fomos cedo. O “José” esperava-me… Jantar no Hotel Olissipo e, de seguida, o espetáculo.

José Carreras começou um pouco inseguro. Como é possível que isso aconteça a um cantor de tal grandeza?! Mas, quem já pisou um palco, mesmo só a brincar, entende. O Pavilhão Atlântico não possui uma sala acolhedora, o público não se sente, está longe, não há calor humano. José Carreras sentir-se-ia só com a sua voz. E eu queria imaginar que aquela voz cantava para mim, mas a velhinha sentada ao meu lado esquerdo trauteava as melodias e até três filas à frente todas as pessoas olhavam para trás, com olhares reprovadores, “mande-a calar” dizia a amiga sentada à minha direita “sei lá se quando tiver a idade dela não farei pior” e ela continuou deleitada…

Carreras prostrou-me no início da segunda parte. Passione, de Nicola Valente mereceu-lhe uma interpretação fabulosa e, quando a certa altura a meio da interpretação, por exigências da música o cantor se calou abruptamente, as notas pareceram ficar a pairar no ar, orientando-se para percorrerem a distância que as separavam de mim. Absolutamente fabuloso! Até me esqueci da velhota.

Dispensava a Carminho, que tem uma voz rouca que não aprecio. Não gosto de fado. Gosto de alguns fadistas. A Carminho não possui voz que fique bonita acompanhada com orquestra e quase não se ouviu na parceria da interpretação de Ave Maria, de Schubert, mas esteve bem em Pomba Branca,de Paulo de Carvalho.

A soprano convidada, Ailyn Pérez, possuidora de uma voz com a qual partirá os vidros, numa légua em redor, se se propuser a isso, também esteve fabulosa e a orquestra encantou, nomeadamente quando interpretou La Boda de Luís Alonso.

José Carreras teve três encores, eu fartei-me de gritar “quero o José!” “quero o José!”. As minhas amigas brincavam “deixe ir o homem embora” e o senhor da fila da frente, muito mal disposto reclamava com a esposa “vamos embora, queres dormir aqui, hoje?”

Ia muito alta a madrugada quando cheguei a casa, com os pés inchadíssimos, cansada de passear pelo Parque das Nações e sem capas nos saltos dos sapatos. Quem, se não uma louca, vai para Lisboa, com sapatos de Cinderela?

Ainda não me tinham desinchado os pés já me telefonava outra amiga “será que ainda não te vestiste? Esqueceste-te do almoço?” A mãe de um antigo aluno convidara-nos para o almoço, nas “Tasquinhas da Matodeira”. Comidinha dietética: Sopa da Pedra, seguida de passeio à Vieira. A Vieira… que nem é a praia de meus sonhos, mas que, há largos anos, entrou pela porta grande no meu imaginário! Depois apanhámos laranjas na Lameira. Há quantos anos não comia das maravilhosas laranjas da Lameira? Tão doces e sumarentas, não há!

Mais uma corridinha, para cumprir a visita à mãe e ajudar a dar o jantar.

O telefonema de outra amiga “já aqui estou. Vê se não demoras”. O jogo da seleção! Tínhamos combinado vê-lo na Praça, na esplanada do Chico Lobo. Eu a ver futebol!  “Guarda uma cadeira para mim. Assim que puder vou” e fui. Levava vestida uma camisola em tons de laranja e branco. Ralharam tanto que quase voltei para casa! 
Jantei a famosa tosta de frango e bebi chá de maçã/canela. A ligação foi um desastre, mas a seleção ganhou.

Hoje, para começar bem a semana, vou a Lisboa, mas vou de expresso. Vou à Fundação Saramago, se chegar a tempo, porque a finalidade máxima é ir beber “Um copo por Saramago”.

Convenhamos: quem começou o ano com dois pés esquerdos, a gemer pelos cantos, está a convalescer a “cento e cem”

Maldita solidão!

6 comentários:

  1. Amanhã... "é terça-feira, feira da ladra".
    :)
    Boa semana e se possível em óptima companhia!

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    1. É mais uma feira, sim senhor, a terça, desta semana e eu já toda torcida... e ainda faltam tantas feiras para feirar...

      Boa semana para si também.

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  2. Que vida tão monótona!... Razão têm as miúdas!... Eu cá sou uma "monga", que se há de fazer?

    Beijo.

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    1. Minha querida Gracinha,

      Há quem diga que "monga" é uma palavra originária do grego, que significa sózinha, solitária. Assim sendo, a "monga" sou eu, pois sou uma triste solitária a gemer pelos cantos, que este anos tenho estado doente e já estou farta. Não se nota porque tenho aproveitado bem os "intervalos" para fazer coisa divertidas, mas crê que as desditas bem me têm amolentado...

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  3. Somos os corpos mais im/perfeitos

    Perfeitos nos somos afirmação para outros
    Imperfeitos isolados no nosso mundo.
    A solidão é criada e alimentada por cada um de nós
    E a maior solidão é a ausência da razão de viver.

    Menina eu sinto.
    A tua ausência no meu espaço
    Que me habituou a ver-te comentar
    Que tantas e tantas vezes me motivou
    A escrever e a te procurar
    Foste a musa que sempre quis
    Foste mais, foste paixão
    Mas agora que tu não estás
    Olho para o tempo atrás
    E me pergunto
    Não estás. Qual a razão?
    Jluis

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    1. Olá, amigo.
      Quanta simpatia, quanta gentileza, quanta generosidade!
      Bem hajas por estas palavras lindas.
      Estou sempre. Posso não comentar, mas leio.
      Precisas dos meus comentários, do meu incentivo?! Não acredito. Isso é modéstia a mais. Para que servem os meus comentários a quem escreve com a facilidade que as tuas palavras testemunham?
      Tenho andado doente. Dói-me aqui, dói-me ali. Doeu-me a coluna, doeu-me a alma...
      Não gosto de projetar para os outros as minhas fragilidades. Para triste basto eu. Normalmente recolho-me em mim, espero que passe. Acho que já passou. Prometo ser mais assídua.
      Um abraço.

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