A avó Espírito Santo era uma velhinha redondinha com neve, muita neve nos cabelos, com uma cara redonda onde morou sempre um sorriso doce que me acolhia quando, sem cerimónias, lhe entrava pela porta dentro.
Naqueles tempos, lá pela Ribaldeira, as portas estavam só no trinco e, se alguém batia, não se perguntava “quem é” dizia-se “entre” e depois se veria com que visita a ocasião nos brindava. Todos eram bem-vindos!
A avó Espírito Santo deslocava-se com dificuldade, agarrada a uma linda bengala de madeira escura “como é que uma bengala poderá ser bonita?” pois eu achava aquele manípulo polido, onde ela colocava a mão, um bicho fabuloso, já nem me lembro como era mas, sei que fazia os meus encantos. Com a avó Espírito Santo vivia a prima Toninha, órfã de mãe e criada pela avó desde pequenina; o pai, genro da avó Espírito Santo, era um homem alto, polícia em Lisboa, que, com um ar simpático e maneiras finas, alterou o meu conceito de autoridade, aparecia muitas vezes para visitar a sogra e mimar a filha.
A prima Toninha tinha um lindo cabelo preto de ondas largas, igualzinho ao daquelas imagens dos postais ilustrados que havia em minha casa, trocados entre o meu pai e a minha mãe nos tempos de namoro. Era pela idade do meu irmão, talvez até um pouco mais velha, por isso não brincava comigo, mas facilitava-me o acesso aos bolos da avó Espírito Santo. Adorava vê-la num vestido de riscas largas coloridas, apertado na cintura fina com um cinto, que por vezes usava lá por casa.
A casa da avó Espírito Santo era pequena, pelos desaires da fortuna, soube mais tarde mas, parecia um ovo recheado de coisas lindas, muito bem arrumadas pela prima Toninha, coisas que só um diabrete como eu, ocasionalmente, tirava do lugar. Como qualquer criança “mexericava” em tudo o que era novidade e aquela arrumação, reconheço hoje, de objectos cujos contornos tão bem conhecia, proporcionava-me leituras estéticas que ainda recordo mas que gostava de alterar para voltar a imitar. Pude sempre mexer em tudo, arrumar e desarrumar a meu belo prazer e ver até respeitadas por algum tempo, as minhas “opções estéticas”.
O tio Joaquim era filho da avó Espírito Santo, morava com a mulher, a tia Joaquina, igualmente uma ternura de criatura, na adega contígua à casa da Avó Espírito Santo, que a má cabeça do tio Joaquim fizera transformar em habitação. A tia Joaquina, com chita colorida e imaginação, havia transformado aquela “amplitude” numa habitação de três assoalhadas.
O tio Joaquim, homem seco de carnes e curtido pelo sol, era de poucas falas e vivia agarrado à enxada, cavando na vinha de escassos metros a amargura e o pouco que ainda lhe cabia em sorte. Mesmo assim, ainda teve tempo, paciência e a feliz ideia de me montar um baloiço nas raízes das figueiras do quintal da minha avó Isabel que caiam abruptamente sobre a sua pequena propriedade, situada em terreno desnivelado, uns metros mais abaixo.
O que a minha imaginação voou no “vai e vem” daquele baloiço!
A Avó Espírito Santo morava perto da avó Isabel, só que… a avó Espírito Santo não era minha avó, era, isso sim, avó da prima Toninha que também não era minha prima e o tio Joaquim e a tia Joaquina, que eram tios da Toninha, também não eram meus tios!
Abençoado contexto social dessa aldeia de vinhedos, maçã reineta e pêra rocha! Usufruir de tanto afecto era para mim uma coisa natural. E aquelas visitas de Setembro ajudaram a moldar a alma rústica que possuo.
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