Páginas

sexta-feira, 2 de julho de 2010

A PORTA

Bem à beirinha da estrada da Figueira da Foz, na Carreira, uma aldeia que se localiza a pouco mais de quinze quilómetros de Leiria, nos terrenos onde hoje se situa a empresa a que familiarmente chamamos “fábrica do tomate”, vivia a minha avó paterna. A sua casa e a de minha tia Lucinda eram contíguas, a correnteza começava com a cozinha da minha avó e terminava na cozinha da minha tia mas, para quem vinha de fora, a vida começava ao meio, na porta virada à estrada, sempre aberta, escancaradamente aberta…

Nem era preciso bater, ia-se entrando e chamando até aparecer gente e, se acontecia chegar-se ao largo pátio das traseiras sem encontrar quem quer que fosse, fazia-se o caminho inverso e voltava-se mais tarde “estariam para o campo”, ou ficava-se calmamente sentado à espera, nessa sala de entrada de que recordo a espécie de cómoda, encostada à parede em frente à porta, com um pano de linho branco, imaculadamente branco e as enormes arcas, incomportáveis hoje em qualquer sala, onde se guardava o milho, com ovos à mistura para que se não partissem e sacos de feijão. Só o portão do pátio permanecia fechado, não por qualquer desconfiança mas, para que as galinhas, a maior parte das horas à solta pelo pátio, não fugissem.

Eu ia muitas vezes à Carreira com os meus pais. Seguíamos de comboio até à estação de caminhos-de-ferro de Monte Real e daí continuávamos a pé, até casa da minha avó, ou pelo carreiro que bordeava a linha férrea, comigo a saltar de chulipa em chulipa, ou pelo pinhal, antecedido de uma área de loureiros onde o meu pai, a pedido, apanhava sempre um raminho, ora para mim, ora para os cozinhados da minha mãe. Destes percursos, ficou-me o hábito de colher folhas e flores nos sítios por onde passo e que, à mistura com as notas de viagem, fixo nas folhas dos cadernos que me acompanham, “texturas de…” cheiros de…”

O terreno, muito solto porque arenoso, fazia com que a areia me entrasse nos sapatos e magoava-me os pés mas, no pátio da minha avó havia sempre uma farta camada de caruma espalhada pelo chão que minimizava esse efeito. E havia mais coisas! Havia alfaias agrícolas a que tomei o peso e senti a forma e, no vão da janela, a faca com que a minha tia migava as couves que, condimentadas com farelos, eram o alimento das galinhas. Sempre me apeteceu provar a mistura e invariavelmente a minha tia respondia “não tens bico, não podes comer”. Volteando com as mãos as couves cortadas para misturar bem os farelos, nem sonhava que anos mais tarde alguém haveria de substituir os farelos por broa, saltear a mistura em azeite aromatizado com alho e chamar “migas” ao pitéu.

Aquela deve ter sido a primeira faca com que brinquei, à revelia dos cuidados da minha mãe. Com ela gravei desenhos nos troncos das figueiras e combati as piteiras que havia perto do portão.

Aqui havia crianças para brincar, os meus primos, donos e senhores de todo o espaço mas eu, por causa da estrada da Figueira quase nos passar dentro de casa, só podia brincar no pátio. A minha mãe nunca me deixou transpor sozinha aquela porta sempre aberta!

Aquela porta aberta, escancaradamente aberta, ensinou-me que o espaço tem duas dimensões. Mais tarde vieram-me com aquela conversa do comprimento, largura e altura e ensinaram-me a contar até três. Teorias de quem nunca transpôs aquela porta…

De um lado, a disponibilidade para acolher, num tempo sem horas, fosse quem fosse; a segurança da religiosidade acolhedora daquele crucifixo de marfim pendurado no alto da cantareira, encimando os cântaros de água fresca onde, em prateleiras enfeitadas com papel rendado se distribuíam tigelas e pratos com fartura, mesmo à mão de quem precisasse; o conforto, materializado no lar sempre aceso onde três panelas de ferro providenciavam a qualquer momento substanciais sopas de carne, café e água quente. Do outro lado, a insegurança do espaço aberto, a espera, o perigo inesperado, o fascínio pelo desconhecido, o sentido de oportunidade.

De qualquer dos lados, a minha avó Joaquina Joana: a força, a determinação e a coragem, sobretudo a coragem de olhar a vida de frente!

2 comentários:

  1. Belos textos estes sobre as tuas avós. Tudo muito bem descrito. Às vezes até se lhes nota o cheiro do campo. E então para mim, menina nada e criada num andar de cidade, tudo é diferente das avós da minha vida.

    ResponderEliminar
  2. Agradeço a gentileza do teu comentário mas, o mérito cabe por inteiro às minhas avós.
    Por elas e em nome delas: Muito obrigada.

    ResponderEliminar