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sexta-feira, 2 de julho de 2010

A AVÓ JOAQUINA JOANA

A minha avó Joaquina Joana possuía uns lindos olhos claros, a que os anos foram tirando o brilho e a luz. Usava o cabelo grisalho, que dividia num risco ao meio, preso em duas tranças, artisticamente entrelaçadas na nuca. Era uma mulher bem-disposta a quem nem a cegueira nos últimos anos de velhice tirou a vontade de cantar ou de agir.

Falava pausada mas firmemente e nunca a ouvi dar ordens, só me lembro de a ouvir perguntar, de forma mais declarativa que interrogativa, se estava feito “Lucinda já trataste das vacas” “Lucinda já deste comer à criação” Lucinda para aqui, Lucinda para ali…. E a Lucinda, esposa do tio Zé Henriques e mãe de cinco filhos, lá ia cumprindo os dias, ao ritmo das perguntas da minha avó, que serviam mais para conferir a execução das tarefas do que para lembrar que precisavam de ser feitas.

De seis irmãos, a minha tia Lucinda fora a única que ficara a viver junto da mãe, depois da morte da irmã Maria, tia que nem cheguei a conhecer, mas que vim lembrar, pois nasci, anos mais tarde, no dia do seu aniversário.

É difícil falar da minha avó Joaquina Joana. Sinto que falar dela é quase desnudar a alma. Lembrá-la remete-me para o cheiro dos loureiros, para o murmúrio das águas de rega, para a sonoridade da corrente de água límpida do ribeiro, hoje completamente poluído, que serpenteava perto de sua casa.

Sem conhecer Kant ou ter lido Sartre foi ela, na sua rusticidade, que me ensinou que o tempo e o espaço são conceitos que ajudam a situar as circunstâncias da vida e que esta se faz de escolhas, ponderadas, por vezes com tanta angústia, e que as opções, depois de tomadas, geram responsabilidade e compromisso.

Herdei das suas características a forma como se ria do mundo, a maneira de enfrentar as dificuldades e a esperança sempre renovada de que a vida se cumprirá a contento, haja o que houver, aconteça o que acontecer. A sua memória transmite-me força, determinação, diria mesmo, sem qualquer tipo de pudores, uma certa dose de virilidade originada na rapidez de decisão e na forma de enfrentar a rudeza da vida.

A avó Joaquina Joana é a coluna firme, o cais seguro a que ainda hoje aporto nos momentos de aflição.

1 comentário:

  1. Encanta-me a forma escorreita, singela mas cheia de emoção, de arte no uso das palavras. É, enfim e para não me alongar, uma deliciosa leitura que se lê avidamente e se fica na expetativa de, com brevidade, se voltar a encontrar neste blog mais uma das tuas confidências da memória.

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