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segunda-feira, 5 de julho de 2010

O GUIGUI

Cada pessoa que passa pela nossa vida deixa a sua marca. Umas marcam-nos mais profundamente do que outras mas, na vida de cada um, para além dos familiares mais próximos, há pessoas incontornáveis.

Para mim, uma dessas pessoas é o Guigui! Álvaro de seu nome, nem sei como terá ganho tal epíteto; morava perto de nós, com a mãe e a irmã (não lembro se ainda teria pai) num primeiro andar, por cima da D. Beatriz “dos gatos”. Sendo um pouco mais velho que o meu irmão, era contudo seu amigo.

O Guigui era ardina. Vendia, por conta de outrem jornais diários, que transportava pendurados ao ombro num grande saco azul, quase do seu tamanho, correndo pela gare da estação dos caminhos-de-ferro de Leiria, à hora dos comboios. “Olhó diário!” gritava ele para os passageiros, chegando mesmo a entrar nas carruagens, nos curtos períodos de paragem. Vendia, não vendia e o comboio continuava, e o Guigui permanecia, à espera do próximo horário, para repetir os mesmos gestos apressados.

O Álvaro, a minha mãe nunca deixou que lhe chamássemos Guigui, era e é, pois continua vivo (o meu irmão é que já faleceu), um homem pequenino, na época muito magro, ao nascimento de quem a fada que distribuía a beleza, tal como a que distribuía as prendas que tornam um homem interessante, mesmo sendo feio, não chegaram a tempo. Para compensar, a fada-madrinha brindou-o com um sonho de excelência. O Álvaro queria ser bailarino!

Juntou a custo a quantia necessária e comprou um pequeno gira-discos. O primeiro gira-discos portátil que vi. A caixa fechada tinha a forma de um paralelepípedo, lembro, sem grande certeza, que seria de uma cor azul acinzentada com uns vivos claros nas arestas das faces menores e abria separando a tampa, mostrando o prato onde desandavam os discos e o braço com a cabeça, onde uma agulha os fazia tocar, quando ligada à electricidade. Não sei se a tampa teria algum préstimo para além da utilidade que o próprio nome lhe confere: tapar. Que coisa longínqua e complicada perante os actuais leitores de CDs!

Como todas as divisões da casa onde morávamos, o quarto do meu irmão era enorme. E, o Álvaro, que “fazia” a automotora das catorze, a das dezassete e o comboio-correio das vinte horas, vinha logo ao início da tarde com o seu pic up.

A minha mãe sempre franqueou a porta da nossa casa, tanto aos amigos do meu irmão como aos meus, sem qualquer obstáculo por parte do meu pai que, dizendo possuir uma espingarda para matar o primeiro com juízo que por lá aparecesse, se limitava a comentar a cada novo amigo ”ainda não é este que será morto”. Por isso, estando a minha mãe, o Álvaro vinha, quando queria ou podia, quer o meu irmão estivesse ou não, para treinar os bailados que escolhia. Descalçava os sapatos e, em peúgas era vê-lo em bicos dos pés tentando dançar em pontas ou rodopiando tentando piruetas, naquele quarto-feito-palco, onde tantas vezes, frustradas as tentativas, acabava caído em cima da cama.

Sem qualquer tipo de aprendizagem, daquela deselegância e falta de jeito resultavam cenas caricatas de que todos riam abertamente, mas ele persistia ” vocês riem-se mas, hei-de conseguir”. E a minha mãe respeitava aquele sonho! “ A vida não basta” dizia ela citando Pessoa sem saber.

Claro que não conseguiu! Progrediu no negócio mas continua a vender jornais e revistas, talvez por conta própria, numa carripana que coloca ao Rego d’Água.

Apareceu-me, há dias, tentando vender “a sorte grande”, num restaurante em que, incluída num grupo de professoras, jantava em Marrazes; ”começas a ter rugas!” exclamou como se isso fosse uma coisa impensável, “é a velhice, acontece a todos”, retorqui sorrindo, “vê mas é se te cuidas” recomendou partindo para outra mesa, com o sonho nas mãos, agora o da fortuna. Eu fiquei a olhar para ele “sonhar-se-á ainda o príncipe das histórias dos bailados que dançava?”

Foi também o Álvaro que me ofereceu, num aniversário, uma malinha de cartão com uns livros de histórias: “O Capuchinho Vermelho”, “Os Sete Cabritinhos” e nem sei que mais, nem recordo se seriam quatro ou seis, pois gastaram-se de tanto manuseio. As histórias pertenciam ao universo das muitas que me eram contadas mas, por aqueles livrinhos, eu quis saber ler.

Foi o som roufenho daquele gira-discos que despertou os meus ouvidos para a música clássica. Foram aqueles livrinhos de histórias que despertaram em mim o gosto pela leitura. Foi a vida dura deste homem que me ensinou que a utopia engrandece a alma.

“Pelo sonho é que vamos” “Chegaremos, não chegaremos?”O Álvaro materializou o meu encontro com Sebastião da Gama.

A atitude da minha mãe ensinou-me que, em qualquer esquina da vida, nos deparamos sempre com a realidade. A vida acontece, não é preciso ter pressa.

E o meu cavalo verde?! Leva-me a trote pela vida!

“Partimos. Vamos. Somos.”

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