O pai fizera exame e passara com distinção. Ser funcionário da CP não era fácil. Para progredir na carreira era-se avaliado de dois em dois anos, através de exame escrito e promovido de acordo com a nota. O pai obtinha sempre bons resultados e era dos primeiros a ser colocado, o que implicava mudança de estação. A mãe quisera radicar-se em Leiria e não achava graça à ideia, mas tinha de ser. Depois do Natal, o pai partiu para o Tamel, uma aldeia do Minho, situada perto de Ponte de Lima.
Ela adoeceu. Tinha febre, queixava-se dos ouvidos e doía-lhe a barriga, mas o Dr. Francisco Dias era categórico “isto não é físico, são saudades do pai”. Passado um mês o pai veio para a levar com a mãe. Ficava o irmão, já crescido, que desistira de estudar e começara a trabalhar. “O mão fica?!” Não queria, mas convenceram-na. Com o regresso do pai aprendera que a ausência não significava abandono e, depois, ela conhecia o local onde ele ficava, o que não acontecera com o pai que fora para o Tamel, um autêntico fim de mundo!
E partiram… Primeiro viajaram até Lisboa onde pernoitaram em casa do tio Manuel, o irmão mais velho do pai que era também seu padrinho. No dia seguinte, embarcaram para o Porto e, na estação de Campanhã, fizeram o transbordo para a linha do Minho. Um dia e uma noite, foi o tempo que durou a viagem.
Em Março, na terça-feira em que fez sete anos, levando numa mão um pacote de rebuçados, chegou ao Tamel.
Foram morar para Quintiães. A aldeia ficava a cerca de três quilómetros de Tamel mas o pai não encontrara casa senão aí. Conseguira aquela graças ao facto da esposa do amigo que lha arrendou ter medo das “almas do outro mundo” que passeavam pela vasta sala. Os pais achavam que aquela era uma casa vulgar e que a história servira de desculpa para a senhora se radicar em Braga, ideia que até lhes saíra a contento e, quanto a ela, estou em condições de garantir que se fartou de procurar por tudo quanto era canto e nunca encontrou alma nenhuma. Contudo aproveitou algumas vezes a história, para justificar o assalto às bolachas da dispensa ou aos torrões de açúcar que via convidativos no açucareiro, mas com plena consciência de que a mãe sabia muito bem quem fazia as tolices e não se importava. Foi assim que começou a treinar a ironia…
A casa ficava perto da estrada principal da aldeia, inserida no lado menor de uma vasta propriedade rectangular. À frente havia um muro alto, pintado de branco onde na Primavera floriam glicínias. Este transpunha-se ou pelo largo portão situado à esquerda, no extremo do muro, ao lado de uma pequena cavalariça sem qualquer cavalo onde se guardava uma charrete, ou pelo portão menor, situado na extrema-direita, que dava acesso à escadaria que subia ao primeiro andar onde moravam. Por baixo, no rés-do-chão, virada à frente, ficava a loja onde se guardavam grandes talhas de azeite e, nas traseiras, a casa onde vivia o caseiro com a mulher e a filha, a Micas (no Minho todas as Marias são Micas). Havia um pequeno jardim em frente da casa, depois um pequeno pomar e uma horta a que se seguiam os terrenos de cultura com mais árvores de fruto espalhadas, estendendo-se a propriedade para lá do pinhal que se via ao fundo, no outro lado menor desse rectângulo. Junto à casa do caseiro, ficavam o curral das vacas e os cortiços de abelhas.
Não havia luz eléctrica e a água provinha do poço, situado perto das cerejeiras, as árvores mais bonitas do pomar. Das cerejas que produziam, fez brincos que pendurou nas orelhas (a mãe não deixara que lhe furassem as orelhas em bebé mas, com uma imaginação tão pródiga, não lhe faltavam enfeites). Haveria de as recordar dois anos mais tarde, já a frequentar a terceira classe, na Sismaria da Gândara, quando estudou um texto que através das mudanças de aspecto de uma cerejeira, falava das estações do ano, mais ou menos assim “Deus disse: ponham a mesa às abelhas. E a árvore cobriu-se de flores (… ) Ponham a mesa aos pássaros e a cerejeira cobriu-se de frutos vermelhos”. Ela achou o texto tão bonito que até conseguia “ver” tudo aquilo acontecer.
Dividiu os rebuçados com a Micas e ficaram amigas. A Micas era uma menina da sua idade, bicho-do-mato, como ela, não falavam muito mas entendiam-se bem.
Naquela primeira semana teve férias. Chegara na terça-feira e a mãe deixou-a brincar livremente.
A casa da Micas foi um mundo novo! Na mesa da cozinha, sem toalha e sem guardanapos, à hora das refeições punha-se um prato enorme, à frente do pai. Ela ainda recorda um bocado de bacalhau perdido num enorme monte de batatas, tudo coberto com folhas de couve inteiras, artisticamente esticadas sobre o monte de batatas e toda a família a comer dali e ela também, para desespero da mãe. E a água?! “A água da Micas é melhor do que a nossa” e a mãe invariavelmente respondia que era igual, pois provinha do mesmo poço. Ela insistia e a mãe acabou por descobrir. Em casa da Micas demolhava-se o bacalhau nos cântaros da água que se bebia. A mãe assustou-se “quantas doenças se podem contrair!” e proibiu–a (ingloriamente, estou em condições de garantir) de comer e beber em casa da amiga, ainda sem sonhar que ela bebia o leite acabado de mugir!
Na segunda-feira seguinte, a mãe levou-a à escola.
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