Na sexta-feira, dia 13 de Agosto de 2010, por inerência da minha actividade na Junta de Freguesia de Marrazes, desloquei-me ao Museu Escolar.
Tropecei numa menina-de-cinco-olhos, esqueci ao que ia e desamparada caí na infância, mais precisamente na minha estada no Minho onde, na Escola Primária de Quintiães, conclui a primeira classe. Daí até à terceira classe, já na Sismaria da Gândara, foi um “pulinho”, traduzido fisicamente em dois ou três passos e vi-me com o Livro de Leitura na mão. Procurei o texto que achava mais bonito e deliciei-me de novo com “A Vocação da Cerejeira “ de Guerra Junqueiro. Voltei a sentir-me a lagarta que acorda, esfrega os olhos e se espreguiça, a abelha que bebe o néctar, o passarinho que come as cerejas, as folhas que caem no Outono e, mais que tudo, senti na alma o sono reparador do Inverno. E, quando já fechava o livro, depois da breve dissertação sobre textos deprimentes, de que é bom exemplo “A Morte da Princesa Joana”, sem merecer qualquer atenção do grupo que me acompanhava, veio-me à memória “O Relógio da Saudade”.
“O Relógio da Saudade” é um texto cheio de sentir íntimo que fez doer a minha alma de menina. Eu encarnava aquele emigrante que, na Argentina, longe da pátria, adquirira com o pouco dinheiro que conseguira juntar, o relógio que lhe lembrava o som do campanário da sua aldeia distante, para depois morrer. Enquanto aluna da terceira classe, aquando do estudo do referido texto, eu temia que a professora me mandasse ler alguns dos parágrafos que me tocavam especialmente, porque sabia que choraria e “morreria” de vergonha dos meus colegas de escola por me desfazer irremediavelmente em pranto perante o texto, sem poder explicar que me “doía” (e de que maneira!) aquela dor tomada de empréstimo.
Ainda hoje, seja ou não em momentos de fragilidade, o sentimento de falta que a ausência provoca me corrói a alma. Então a lembrança vasculha na memória e, tal como fazemos em casa quando arrumamos papeis velhos que teimam em desalinhar-se, vem ao plano consciente aquilo que já estava adormecido.
É, entre questões do tipo “nada me falta” ou “terei alçando na vida mais do que sonhei”, muito mais exclamativas que interrogativas, que dou comigo em absoluto conflito com a ideia linear de tempo que Aristóteles e Newton impingiram à civilização ocidental, à mistura com a ideia que a água de um rio não passa duas vezes debaixo da mesma ponte. Perdoem-me os filósofos esta visão ingénua (naif – como é “fino” dizer agora) e por isso mesmo tão redutora de anos e anos de pensamento.
Não gosto da linha do tempo e aqui deixo o meu mais veemente protesto. Abaixo esse escasso segmento de recta que define a nossa vida! No mínimo deveria ser uma semi-recta! E, se é recta deveria ser ascendente, só no que de bom a vida nos desse e deveríamos poder percorrê-la para trás e para diante materialmente, como fizemos nas aulas de matemática e não só com o coração, a nosso belo prazer, sem a dor da ausência. Haveria de poder afagar as rugas da minha avó, ir passear ao rio com o meu pai, dançar o rock com o meu irmão e comer os figos das piteiras no quintal da outra avó e até deveria poder voltar ao Hiper-Urânio, se é que foi por lá que andei antes de nascer, para voltar de novo ao presente a saciar-me nos abracinhos, beijinhos e prrttts do meu neto, o menino mais bonito do mundo e arredores, sobretudo dos arredores.
Quando menina, no quintal da casa da CP da Estação de Leiria, onde morava havia um tanque, que na altura me parecia enorme, destinado à lavagem da roupa mas, sem esse préstimo, porque as lavadeiras achavam mais divertido ir à Fonte Quente trocar pilhérias umas com as outras, mesmo carregando as bacias à cabeça. O tanque estava sempre cheio de água e eu, a maior parte do dia a brincar no quintal, ia de volta e meia atirar uma pedra lá para dentro só para ver aquelas deliciosas ondas concêntricas que o embate provocava. O meu pai ralhou por eu encher o tanque de pedras até a “Paixoa” opinar que se o esvaziassem eu deixaria de fazer aquilo. Foi o que aconteceu: o meu pai esvaziou o tanque, o “Coquelimoque” passou a tirar a água directamente da torneira para regar a horta e eu deixei de atirar pedras para o tanque, mas não deixei de gostar de linhas curvas.
A linha da vida deveria ser curva! Assim já não vislumbrávamos o infinito sem poder tocar-lhe. Seria o ponto final à dúvida existencial e à angústia.
Está na altura de promovermos uma revolução na filosofia. Cá por mim, perante a efemeridade, proponho que Deus reveja a Criação e emende a mão. Tem duas opções na consecução do mesmo objectivo: torna-nos eternos e manda de novo o Sartre cá abaixo (sim, o céu pode continuar lá em cima) para rever a teoria do existencialismo ou, não querendo mandar cá o Sartre, ou na eventualidade deste não querer vir, tira-nos a horrível mania de nos questionarmos.
Ah! Poupem-se ao trabalho de me vir com os argumentos de que a certeza do fim é que dá sentido à vida porque, cá para mim, tal como para o Montaigne (ele ter-me-á copiado a ideia…) o sentido está na busca da felicidade.
Reconheçamos, as sextas-feiras treze não são dias aziagos, mas lá que têm um certo sortilégio não poderemos negar.
Sem comentários:
Enviar um comentário