Há dias, alguém escrevia que havia
humor nos meus textos. E eu, que nunca tinha pensado nisso, remeti o facto à circunstância
de ter nascido no seio de uma família de gente bem-disposta, independentemente de eu, há muitos
anos, achar que o meu pai era severo e a minha mãe também, embora um pouco
menos.
Em casa todos os assuntos eram
falados à mesa de refeição e todos, eu incluída, tinhamos o direito de ser
ouvidos. Riamos com facilidade, também chorávamos se era caso disso.
Quando eu, criança ainda, ia com a minha mãe, de
comboio, à Figueira da Foz, visitar a Maria Manuela, amiga de minha mãe, proprietária
da casa em S. Martinho do Porto, onde pela primeira vez pernoitei, o meu pai, à entrada
do comboio, avisava sempre: “não te esqueças de, ao chegar, desceres do comboio, olhar para o chão,
ver uma porcaria e começar logo a gargalhar. Ferró fó fó, ferró fó fó.” A minha mãe ria e quando
chegávamos à Figueira ainda ria mais. “Ri-se de quê?”- perguntava-lhe (porque
será que nunca tratei a minha mãe por tu e o fazia com o meu pai?) “estou a
fazer o que o teu pai mandou” e ria mesmo com gosto, possivelmente por se
lembrar da recomendação e eu ria com ela, feita tonta, porque o seu riso era
contagiante.
Quando na viagem de regresso saiamos
do comboio, em Leiria, a primeira novidade que dava ao meu pai era essa: “cheguei
à Figueira e fiz o que me mandaste. Fartei-me rir. ”Ouviu-se cá” – respondia invariavelmente
o meu pai: “Ferró fó fó, feró fó fó”.
Quanto ao meu pai, era senhor dum
humor cáustico, absolutamente demolidor. Não há como ouvir as histórias da boca
do meu primo José Carlos que, alguns anos mais novo que eu, lembra coisa de que
nem tenho memória.
O meu irmão era uma simpatia.
Tinha sempre uma anedota para contar, uma brincadeira para promover. A sisuda da família era eu. Pousava
os olhos no mundo e absorvia até o que não entendia, para mais tarde questionar a vida.
Já na primária, fui aluna da Sra.
D. Maria Rosa Pires, amiga da minha mãe e possuidora de um sentido de humor inigualável.
Nunca, ao longo dos anos que já tenho, encontrei quem escarnecesse das agruras da
vida como ela. O humor com que analisava a desdita, tecendo histórias
engraçadas, era insuperável. Até a minha mãe calava o "ferró fó fó", prostrada de
admiração. E foi assim, enquanto viveu. Nunca faltaram as partidas originais de
Carnaval, nem os ditos jocosos, cantando loas à vida, nem deixou de empurrar-me
para a frente quando me adivinhava triste.
“Rir de si próprio é uma boa forma
de cair” – disse-me um dia o malogrado Zé Luís, meu colega de liceu e médico
pneumologista que seguia a minha filha mais nova – “Não. É uma forma de nos
levantarmos” – respondi eu, que entretanto já aprendera a rir-me da vida,
vingando o facto de ela se rir de mim.
Comecei a ler os textos publicados,
desde o primeiro, coisa que nunca tinha feito. Um texto escrito e publicado
deixa de pertencer a quem o escreveu, passa a ser de quem o lê, ganha asas e
voa. A universalidade bate-lhe à porta. Tenho consciência de que o blog torna a
universalidade enganadora. Texto que é publicado poderá nem ser lido… A quem
poderá interessar? E, o que escrevo não têm qualidade
para quem quer que seja poder encontrar resposta para as suas angústias, para se
rever nas historietas, para se maravilhar com o estilo. Poder-se-á, ao menos, divertir
por uns breves instantes?
Tenho rido com gosto, confesso,
com o que tenho lido. Não pelo que escrevi, mas com os comentários que mereceu à
benevolência de alguns dos meus amigos.
Na profusão de textos guardados neste PC, quando procedia à leitura sem recurso ao blog encontrei, por acaso, este:
O meu marido achava ser altura de termos
um filho e embora eu discordasse das razões que ele alegava, embora muito
jovem, conseguia perceber que com a sua forma de estar na vida “nunca seria
altura” e “nunca” é o termo exacto, mesmo para quem acha que “nunca” é muito
tempo…
Na primeira ida ao obstetra sugeriu que
minha mãe nos acompanhasse. A consulta foi tarde, depois de jantar e quando
chegou à minha vez de ser atendida ele já não estava no consultório. Tinha
descido para apanhar ar. Chegada ao carro, parado junto à entrada do prédio,
feliz com a certeza de que ia ser mãe, encantada por ter ouvido bater o coração
do meu bebé, aguardava-me um bilhete colocado no pára-brisas: “Encontrei o M. e
fui ao cinema. Vai para casa de táxi” E fui; com a alma estrangulada pela
desilusão, mas disposta a viver as alegrias da maternidade sozinha, sem deixar
que nada nem ninguém perturbasse aquele prazer novo. Quando ele chegou, eu
dormia. Não o ouvi entrar, nem me apercebi que se deitara.
Acho que foi nessa noite que comecei a
desenvolver uma nova técnica de meditação. Logo que me deito para dormir, fecho
os olhos, acomodo o corpo, o bem-estar físico é importante, esvazio a mente e
deixo fluir do meu íntimo toda a paz que sou capaz de inventar e assim adormeço
na melhor das beatitudes.
Também por esta altura, desenvolvi uma
extraordinária relação afectiva com trapos, agulhas, linhas, fios de lã e
material afim. Sempre me disseram habilidosa de mãos e foi com fios de lã que,
ao longo de nove meses, fui tecendo alegremente o amor à minha primeira filha.
Nasceu no Verão, no fim do mês de Julho e possuía uma quantidade incrível de
casacos e mantas, muitos dos quais nunca chegou a estrear. Chegada a altura de
os vestir, aqueles eram pequenos e eu já havia tecido outros. A esta chamei
Íris, juntando a leveza dos lírios à magnitude da deusa dos céus nos dias de
chuva. Sim, eu gosto da chuva benfazeja!
Três anos depois, tudo se repetiu. E
sabendo que se repetiria, havia dado toda a roupa da Íris e voltei a tecer com
fios de lã todo o amor e alegria da minha segunda gravidez.
A minha segunda filha nasceu no fim do
Outono. Deus premiou-me com mais uma ruiva, tão linda como a primeira, a quem
chamei Zara, juntando a beleza da flor de laranjeira com o mistério da moura
que, segundo a lenda, terá vivido no Castelo de Leiria.
O texto não foi concluído: Porquê? Sei lá porquê… Talvez achasse que as
minhas filhas não precisavam de correr o risco de ler isto, embora saiba que não leem o que
escrevo.
Sei que o passado só define quem somos e que a vida se faz vivendo. O Cavalo Verde cavalgará algures. Espero-o, se for necessário, até ao
fim da vida. Não abro mão do encontro.
Não se lastime pelo bilhete no pára-brisas... naquele tempo ainda não havia telemóveis.
ResponderEliminarQuanto ao cavalo... tem mesmo que ser verde?
Alface, lima, esmeralda, musgo... a escolha não vai ser nada fácil.
:)
Fácil é uma palavra inventada para nos empurrar para a frente, para vencer o medo.
EliminarO cavalo tem mesmo de ser verde! As orelhas poderão ser azuis, condescendo. E, a cauda ondulará ao vento como uma seara em movimento.
Ah, os nossos textos!...
ResponderEliminarTenho que vir aqui escrever um bocadinho, só para deixar algo preto no branco. Não sei é se não tem de ser verde no branco, por aquilo de que me apercebi, numa leitura rápida.
Acabei de chegar de Alcobaça, fui lá assistir a um concerto da Orquestra Sinfónica das Beiras, dirigido pelo Mastro António Vitorino d´Almeida. Um camaradão... sempre a tentar levar a música aos ouvintes eternos iniciados...
E com aquela 5ª sinfonia (dele próprio) deixou-nos estafados (a ouvir de pé, no claustro do Mosteiro!...)
...
A ver se não deixo que a memória se passe dos carretos e não me lembre de aqui voltar!
É preciso lata, heim?!...
;)
Olá, António.
EliminarVi o concerto em Leiria, sentadinha no Teatro José Lúcio da Silva. Porque foi tão longe? E de pé?! Haja Deus! Já não é para nós...
Também achei excelente. Na minha modesta opinião António Vitorino de Almeida fala de mais, mas é a sua (dele) maneira de estar na vida.
Inté!