Ele aí está, o novo trabalho do Cristóvão!
PREFÁCIO
Quem não se deixou seduzir, uma
vez que fosse, pela melodia da chuva, no aconchego do leito? Quem nunca sentiu
a carícia dos lençóis, numa noite de chuva e não cedeu à tentação de desfiar o
rosário dos dias, de alguns dos seus dias, sentindo-se o mais feliz dos mortais,
no embalo morno da cama, ao som da cadência dos pingos?
E a memória traz-nos José Gomes
Ferreira…
Chove...
Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
….
Mas isso que importa!
se estou aqui abrigado nesta porta
a ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?
….
E é num cenário de confortável e
doce intimidade a que se justapõem o colchão macio e a altura da almofada,
pouco propícios aos hábitos de sono de Paulo, que se inicia a narrativa.
Paulo, “de olhos bem abertos no
escuro” contrapondo a sua “melodia de silêncio” à “chuva que continuava a cair
impiedosamente sobre o telhado do Casarão dos Assis, lembra a mãe, porto seguro
de afetos, os familiares e depois os amigos, uma hierarquia que não nos deixa
quaisquer dúvidas quanto às prioridades que estabelece nos afetos e fala-nos de
si, das suas preferências, da música, “puxando o cobertor até ao pescoço,
tornando o aconchego num súbito prazer”. E o leitor começa a enredar-se neste
monólogo interior, sentindo vontade de ajudar a alcançar o que, nos sonhos de
Paulo, haverá por realizar: a paz interior, o bem-estar psicológico, aqui
simbolizados pela hipotética compra de o Casarão dos Assis, ação em volta da
qual se tece toda a trama.
São as preocupações com a prenda
de casamento de Laura e Jorge, cuja escolha recai sobre a escultura do Menino
Jesus, peça antiga, que pertencera à mãe e a consequente embalagem da mesma, que
nos põem perante Paulo, um homem “perto de fazer cinquenta anos” de bom
coração, generoso mas contido, tão contido que, para falar de amor, escreve “o
gostar”. Desvia-se da gramática, substantiva o verbo. Será medo dos afetos?
Perguntará o leitor, parecendo-lhe, como a Joseph Conrad, que as palavras não
podem bloquear o que há para dizer, mas a resposta encontra-se largas páginas à
frente: Paulo tem um “escudo protetor em volta do coração”.
É por Joana, mulher sofrida e
bela, “sabia o desejo que provocava nos homens”, que Paulo se vai enamorar. Despertada
a curiosidade pelos primeiros comentários que ouve acerca dela, encanta-se,
quando trocam o primeiro olhar. “ Joana estava ali mesmo, à sua frente,
sorrindo para ele”. O escudo protetor cai. São os olhares que, tal como a
latitude dos corpos transferem à narrativa toda a carga emocional. “Paulo ficou
sentado frente a frente com Joana. Assim poderia olhar para ela o tempo todo“ E
a vida flui… “Abraçados olham o rio que silenciosamente percorre o caminho”.
Paira por toda a obra o espírito
terno de Mariana, a já falecida mãe de Joana, esposa de Porfírio Assis. A sua
bondade, simpatia e preocupação com o bem-estar dos que a rodeiam contrastam
com o feitio reservado do marido, homem solitário e duro, “o velho pai que
encontra na rigidez a companheira das horas de solidão”, merecendo a todos mais
receio do que respeito. Abre-se contudo uma exceção para Padre Bonifácio, curador
de almas, bom conversador e fiel depositário de todos os segredos da família
Assis, que ousa amiúde e com irreverência enfrentar o patriarca.
Laura e Jorge, amigos de Paulo
poderiam ser um desses simpáticos pares de namorados, prestes a casar, com os quais
nos cruzamos na rua, diariamente.
João é um homem de vida apagada,
dedicado à família Assis sem o devido reconhecimento. O guardião de O Casarão dos Assis representa o
espírito de sacrifício, do guerreiro sempre pronto para defender a retaguarda que
lhe confiaram e que no fim se vê recompensado. Da esposa, Rosineide, frágil e
doente, quase sentimos o aroma dos cozinhados…
E, ao longo da narrativa vão-nos
urdindo os afetos a favor de padre Miguel, para só no fim nos confiarem o
segredo que o mantém longe.
As irmãs de Joana, no final,
revelam uma grandeza de alma própria das pessoas de bem.
É no diálogo íntimo das
personagens que o autor procura e encontra respostas. Será que se altera o
ritmo de vida, será que se traçam novos rumos ou, numa perspetiva cósmica,
deixa que tudo continue a fluir ao ritmo das estações? O Casarão dos Assis será um sonho que ganha movimento e acontece,
ou uma quimera que a distância adiou?
Numa escrita simples, por vezes
até informal, inserindo-se na perspetiva do
romance psicológico moderno, ao longo das páginas, a
vida vai acontecendo e cumpre-se situada no espaço e no tempo, lembrando que os
ventos não sopram de feição: “de Portugal não chegavam notícias animadoras”.
Esta narrativa fala-nos ainda de
lugares, assumindo-se como um pormenorizado roteiro de viagens, para quem
pretender conhecer o périplo da Rota do Ouro de Minas Gerais, passear-se pelas
ruas de Belo Horizonte, ou mesmo esquecer-se do tempo em lojas de alfarrabistas
ou procurar filmes antigos, para completar coleções.
É uma narrativa sem pausas, não está
escrita em capítulos; não se quebra a história. O leitor não se depara com a
decisão de avançar ou desistir. A história é para ler de um fôlego, até ao fim.
Leiria, pelo S. João, 2012
Isabel Soares
Mas eu sei lá escrever prefácios?! Corrijo: mas eu sei lá escrever?!
Os "trabalhos" em que os amigos nos metem... e para os alegrar, com que carinho nos metemos nos "trabalhos"...
Está a ver, Isabel?
ResponderEliminarLi este seu Prefácio de um fôlego!
E gostei. E, quem sabe, um dia destes me lembre de comprar o livro, numa das minhas prolongadas visitas a uma Livraria.
Hoje, o tempo a mostrar o seu ar sorumbático, deve chover. Aliás, já senti uns pingos na careca quando fui, numa fugida, ao jardim/quintal (talvez 75% jardim e o remanescente quintal).
Pois que chova. Mansamente, se possível, na ordem natural das coisas.
Nem sequer tenho grandes hipóteses de passear!
"O prisioneiro de Zenda!. Um filme que vi quando era adolescente, que me ficou na memória. E cujo título associei à minha condição atual: prisioneiro domiciliário.
"Chove
Mas isso que importa*
se a primavera, gota a gota,
já se nota
nas folhinhas prematuras da roseira?"
Lídia Borges
in "Searas de versos" (blogue)
*Em itálico, versos de José Gomes Ferreira
do poema intitulado: "Chove"
Que espírito contraditório, o meu, neste momento!
Gosto deste poema "Chove" de Lídia Jorge inspirado em José Gomes Ferreira.
EliminarQuando à chuva, eu até gosto, mas até a mim já farta e não gosto do frio que desta vez chegou. De facto só no quentinho de casa, se está bem. Enquanto formos tendo dinheiro para pagar o aquecimento. Bem receio que qualquer dia... (não falemos de coisas tristes...)
Obrigada pelo seu comentário. Gostei do que me diz. Obrigada.
Tantos livros para ler e eu sem lhes dar vazão!
ResponderEliminarBeijo.
E somos duas, Graça. Não consigo dar vazão às leituras atrasadas. A pilha vai crescendo em vez de diminuir...
EliminarBeijinho
Depois deste belo prefácio fiquei curioso...
ResponderEliminarObrigada, pelo adjetivo. É muita simpatia sua. :))
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