Segunda-feira, sete horas da manhã, saltei da cama.
Na verdade a forma verbal “saltei” é demasiado ágil tendo em conta a acção realizada. A agilidade corresponde à rapidez com que pelo pensamento passaram as tarefas a realizar antes de partir para Lisboa.
Os ossos reclamavam mais cama e apetecia-me rabujar, sem ter com quem, mas deixara tudo para “amanhã” e a solução era mexer-me.
A invariável torradinha do pequeno-almoço, acompanhada com o copo de leite morno é que não poderia deixar de ser saboreada, na paz do Senhor, sentada calmamente, a pensar na morte da bezerra, que não há meio de morrer para, confirmado o facto, me enfiar debaixo do chuveiro e acabar de acordar.
Despachei-me e pus-me a caminho de Lisboa, não muito cedo, para quem tem horários para cumprir e nunca sabe qual o fluxo de trânsito que vai enfrentar na segunda circular.
O troco da IC2 está um descalabro. Ultrapassei todas as viaturas pela direita e quando a via estreita, por conta das obras, e fica reduzida à faixa da esquerda, abri a janela, pus a mão de fora e disse “adeus” ao camionista que me deixou entrar no desfile que seguia a passo. Há sempre uma alma caridosa, incapaz de resistir a um gesto simpático.
O nevoeiro matinal com que me deparei logo que entrei na A8, remeteu-me inconscientemente para a minha colega CC “Senhor Presidente, seria bom que mandasse colocar uma lâmpada no pátio da escola. Ao fim da tarde não se vê a ponta dum… a ponta dum… a ponta de nada!” Pois ali ia eu, vendo “a ponta dum… a ponta de nada”, cheia de pressa, a pisar a cento e cem. E naquele meio limbo de quem está à porta do céu a prestar contas sem vislumbrar mais que a ponta do nariz, dei comigo a pensar como seria bom ter alguém que pegasse em mim e me levasse sem que eu soubesse para onde, de preferência para um sítio sossegado, no alto de um monte, paisagem larga e sem ruído, me desse a mão para adormecer e permanecesse em todos os lados da noite para que me mimar.
“Em que esquina da vida, estarás detido, cavalo verde dos meus sonhos loucos?” “Um dia morrerei tão só como tenho vivido”.
A voz da filha mais velha ecoou-me no pensamento “lastimo que a tua vida esteja nesta confusão por minha causa, mas acho que nunca foi de outra maneira e tu até gostas.”
E sem querer, porque detesto fazê-lo, olhei para trás no tempo e vi-me, do momento em que me encontro, esquecida das agruras, fortalecida pelas dificuldades resolvidas, a passar como no cinema, alguns episódios que vivi: os fins-de-semana a cozinhar para haver refeições variadas para as filhas, ao longo dos dias; as discussões por causa dos livros em co-autoria que se publicaram; as longas horas a preparar aulas; as folhas a voar, quando fazia os trabalhos para a especialização, já depois das filhas deitadas e altas horas na madrugada a apanhar as folhas do chão e juntar tudo “há-de aproveitar-se alguma coisa” e dezassete na nota final – “como conseguiste?” “atirei a sabedoria ao ar, misturei e passei a limpo”. E os verões em S. Martinho “deverias ter chegado ontem” dizia o Tó Zé “imagina que deu à costa um italiano todo nu” “como souberam que era italiano?” “trazia um esparguete no c..” E a Z. a rir da minha ingenuidade.
E as filhas crescerem e a vida a andar para a frente.
“Quem terá comido as peras doces, que me couberam em sorte?” Não tive direito a peras doces, mas acabei a rir à gargalhada.
E por alturas de S. Martinho o telefonema da filha “não precisavas de vir tão cedo, não disse nada porque assim não farás o percurso a voar. Aproveita para poupar a gasolina”
Já não há respeito. Não se fazem mais filhas como antigamente. Se o Sol brilhasse teria ido para a praia.
À noite, adormeço de mão dada com o escuro e também sei que vou morrer sozinha, ou não fora a morte um acto solitário, mas garanto-vos: A minha vida tem valido a pena!
Da forma como as coisas estão... e ainda apresenta um saldo positivo...
ResponderEliminarDesculpe que lhe diga, devia ter ido para Gestão ou Economia...
:)
Assim é que não vamos lá.
:(
Meu caro Rui: Eu não sou de carpir sobre o leite derramado. Como qualquer português, o que neste momento me apetece é dar pulos como os macacos, de raiva, pois então! Contudo, nada do que se está a passar me surpreende. Ganhou a direita, não?! O que pensava que ia acontecer? Favorecer-se o estado social? Anda assim tão distraído?
ResponderEliminarJá fiz muitos sacrifícios na vida. Não contava ter de passar por uma aposentação incerta, mas eu sou das que levanto a cabeça e sigo em frente, custe o que custar. Este governo não teve o meu voto, mas não deixo de me perguntar quantos dos que se manifestam agora indignados não terão votado nele.
Claro que valeu a pena! E vai valer por muito tempo mais. Aliás, todas as vidas valem a pena.
ResponderEliminarBeijo
Texto estupendo, assim neste seu estilo, com o qual vai partilhando sentimentos, sensações, emoções, momentos.
ResponderEliminarEu vou mais pela fotografia, que me inspira às vezes uns textozitos, a propósito do que me vai ocorrendo, seja porque observei algo que me despertou a atenção e que preciso de registar - para memória futura, gosto desta expressão - seja porque preciso de desopilar o fígado...
E, como andamos todos
(quase todos, que há sempre quem se safe, nem que seja à custa dos outros, dos que não têm outro remédio senão aguentar) mal do fígado, com tanto vinagre que nos andam a pôr no prato, razões não nos faltam para refilar, refilar...
Balanços à vida?! Pois que se façam, mas que sejam dinâmicos, que a vida está sempre em movimento,
(olha quem fala)
Ando preocupado com o meu neto com aquela coisa que se lhe meteu na cabeça de que quer ser jogador de futebol profissional, só tem 13 anos, mas já anda nisto há quase 4.
...
Bem. Ocasiões não nos vão faltar, com certeza, para continuar a refilar com a vida...
Bela, apesar de tudo, esta relação amor-ódio que vamos mantendo com a vida!...
E siga a rusga!...
Tudo de bom para si também Evanir.
ResponderEliminar"carol": O que eu pensava, enquanto conduzia, é que por vezes esta coisa de viver parece mesmo "uma droga" Só que a minha tem sido "uma droga" hilariante! (lol)
ResponderEliminarOlá, António.
ResponderEliminarEu ando sempre em "balanço":) Por isso até postei a melodia que poderá ouvir depois deste post e balanço tanto que por vezes até me espalho...
Isso dos catraios perseguirem os sonhos é muito interessante. A minha filha mais nova desde pequenina queria ser tradutora, da CEE em Inglaterra - dizia ela, pensando que os serviços da comunidade se situavam em Londres. Eu, que sempre adorei brincar, nunca liguei ao assunto, nem desfazia o engano. Costumava cometar "Ai que bom, vou ter quem me pague uma viagem a Londres!" Ao que a mais velha retorquía "quem te paga a viagem para Londres sou eu" e a mais nova acrescentava "eu ofereço-te o bilhete para Lisboa". Ambas a querem ver-me pelas costas... :)
Já me foi oferecida a dita viagem.A minha filha não está na CE, porque em Bruxelas as saudades apertaram.
Deixe sonhar o seu neto. Desde que ele estude e tire um curso, nomeadamente de Educação Física, por exemplo, que diferença faz que seja futebolista profissional. O ideal será gostar do que vier a fazer e que venha a ser o melhor que consiga naquilo por que optar.
Ser feliz é uma arte.