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segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

E DE NOVO O SR. FIALHO


Todos os dias, se me encontro em Leiria, visito a minha mãe, no Lar Emanuel. Desde o último internamento hospitalar, que a deixou muito debilitada, que opto por entrar pela porta principal, em vez de ir pelo jardim, passando primeiro pelo quarto, por admitir a hipótese de que poderá não estar bem e permanecer deitada. Quando aí a encontro, já não desço até à sala de convívio, mas se não está deitada eu sei que é aí que a encontrarei e para lá me dirijo. Na sala de convívio, passo obrigatoriamente pelo senhor Fialho e a esposa sempre sentados à mesma mesa, perto do bar. Este, muitas vezes tem alguma coisa para me dizer para além de retribuir os votos de boas tardes que vou proferindo em todas as direções.

“A senhora, que é professora… “ Começa sempre assim, saboreando o facto de me ir trapacear, tal e qual como uma criança perante a visão de um rebuçado que sabe seu. E repete “ a senhora que é professora…” e degusta outra vez. Eu já estou de sorriso aberto, presa às palavras que tardam em chegar. “Então a senhora que é professora, sabe que todos os carros têm rodas de borracha, as bicicletas também e até os motociclos têm as rodas de borracha. Todos os veículos têm rodas de borracha.” Eu concordo, que sim, que tem razão. “Então explique-me, se faz favor, por que razão as rodas do comboio são de ferro.”

E eu começo a inventar razões porque sim, mais porque também e o senhor Fialho escuta-me e olha-me com um sorriso misto de ironia e condescendência e deixa que eu diga todas as tolices possíveis e imaginárias, bloqueada pelo excesso de intelectualização e por manifesta falta de inteligência prática e concluiu:

"Então a senhora que é professora" – e saboreia de novo a frase, fazendo uma pausa, como quem gulosamente lambe os lábios – não sabe que a borracha apaga as linhas?! Como andaria o comboio, com as linhas apagadas?! E eu ri com vontade, enternecida por aqueles noventa e três anos plenos de alegria e acabei a contar a histórias às amigas mais velhas, num qualquer encontro de café.

Hoje fui eu que o provoquei: “então senhor Fialho, não tem questões para me atrapalhar?” Que não, que hoje não havia “Ah, mas o seu marido está doente!” – comentei para a esposa que, sentada ao lado, seguia atentamente a conversa. O senhor Fialho retocou o seu ar sério com uma pincelada de santidade “não, hoje não há piadas, mas vou contar-lhe a notícia de uma coisa que aconteceu na Madeira - disse-me ele com falinhas mansas - Apareceu por lá um insete, que punha toda a gente doente. Deram a notícia na TV e um miúdo que ouviu perguntou à mãe: ó mãe, o que é um insete?” – por esta altura eu pensava que o senhor Fialho não pronunciaria corretamente a palavra inseto e condescendentemente continuei  a ouvi-lo sem o emendar- não sei, pergunta ao teu pai, que ele deve saber- continuou o senhor Fialho – e o pequeno assim fez. Quando o pai chegou correu a perguntar-lhe: Ó pai, o que é um insete? O pai sugeriu que perguntasse à professora, porque ele também não sabia. Na manhã seguinte o petiz assim fez. Se fosse a si que ele perguntasse o que lhe diria? E eu vá de explicar o que é um insete: um invertebrado, com quitina - e tratei de explicar os conceitos, coisa a que vos poupo, agora  – que tem o corpo dividido… Nada disso - atalhou o senhor Fialho- um e sete são oito!

Não sei de quantos anos de vida disporei ainda, mas na eventualidade de vir a ser muito velha, adoraria, por essa altura, ser assim, uma doçura de pessoa, bem-disposta e atenta à vida, como o senhor Fialho. Será difícil porque eu sou um bicho-do-mato, que a cegonha por engano, largou no colo de minha mãe, uma mulher eminentemente social, que sempre adorou ver-se rodeada de gente, de muita gente. Só aprendi a conviver para não soçobrar.

4 comentários:

  1. Verdade, verdadinha que há muito não passo por cá. Que tanto tenho perdido. Também me fez lembra aquel miúdo que perguntou à professora:-catorzecumquinze quantos são? Claro, fica para a próxima, mas de certeza que não são 29-

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    1. João! Tenha dó, meu amigo. Chega o sr. Fialho para me trucidar, com a anuência da dona Delmira, a esposa, que acha muita graça às brincadeiras do marido.

      Hoje, quando cheguei ao lar, o sr. Fialho resolvia uma ficha de matemática, do quarto ano de escolaridade. Cumprimentei-o e à esposa, aliás cumprimento todos aqueles por quem passo e sentei-me junto de minha mãe que estava próximo. A certa altura o sr. Fialho olha-me batendo com o bico do lápis sobre a folha do caderno. "Precisa de ajuda?" - perguntei daquela distância de três metros. Acenou afirmativamente com a cabeça e eu aproximei-me. Expliquei-lhe a frequência numérica que o atrapalhara e deitei uma olhadela ao resto da ficha. Havia uma questão errada e alertei-o para isso.Como desconhecia o conceito que estava em causa, dei-lhe a explicação que me pareceu necessária. Gasto o meu latim... o sr. Fialho olha-me com ar maroto e diz: "sabe? Faço agora o que que fazia aos trinta anos" e eu pensei "Santa Bárbara, o que virá aí..." "sabe como consigo isso?" Eu respondi que não, que não fazia a mínima ideia. Ele deu uma gargalhada: "faço o que posso, tal como fazia quando era novo."

      Eu acho este velhinho pequenino um homem interessantíssimo. Possui um extraordinário sentido de humor e está na vida de uma forma tão simples... Nunca o senti triste, nem enfadado e há nele uma aceitação tão espontânea do quotidiano, uma tal calma, respira uma tal felicidade, que não posso deixar de me encantar.

      E agora veja lá se me explica a questão que me pôs que o meu paizinho viciou-me em palavras cruzadas e não em charadas. :))

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  2. Gostei muito do humor do sr.Fialho e da forma como, "a senhora que é professora", o soube transmitir. Ainda estou "saboreando" as suas palavras...
    :)

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    1. Muito obrigada, Rui. Neste caso, o mérito é do sr. Fialho. :))

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