Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos
bares à porta dos edifícios públicos nas janelas dos autocarros
mesmo naquele
muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na
vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de
caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia
o nosso amor
Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da
angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num
bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram
o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da
monotonia quotidiana
Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o
silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e
inesperado
Não saíram de mãos dadas para a humidade
diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora
subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente
imperativo
Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as
esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A
policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas
avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam
tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los
antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção
do amor se processe em cadeia
Há pesadas sanções para os que auxiliarem
os fugitivos
Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os
reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a
lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o Um homem e uma
mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É
indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e
a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração
das pessoas
Fechem as escolas Sobretudo
protejam as crianças da
contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino
pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo
o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos
silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da
disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os
psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo Vai ser internado
e submetido
a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros É
absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da
doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala
no cartaz colado em todas as esquinas da cidade
Está em jogo o destino da
civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que
nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações
políticas
...
É possível que cantem
mas defendam-se de entender
a sua voz Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o
rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de
Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a
infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das
montanhas
Foi condenado à morte é evidente É preciso evitar um mal
maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário
amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade
incorrupta
...
Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel
se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam
barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à
Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é
preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de
urgência
Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar
de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem
família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz
interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da
adolescência longínqua
Daniel Filipe (1925-1964), in A Invenção do
Amor
(Enviado hoje, por um amigo. Obrigada, chegou em boa altura.)
sábado, 27 de abril de 2013
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