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segunda-feira, 4 de abril de 2011

A ESCRITA

Ao longo da minha vida foram vários os momentos que me marcaram a escrita.

A memória recua até ao caderno de redacção da 2.ª classe e à paciência de meu pai, alinhavada na minha tentativa de resposta às questões sugeridas por dois gatinhos brincando com um novelo de lã. Lindos os gatos, pouca a vontade de escrever!

“Tens de responder com frases completas” e vencida esta crise graças à disponibilidade paterna, tomei o gosto à escrita ressalvando claro, aquele dia em que, tendo de escrever talvez aí pela centésima vez sobre um qualquer animal, resolvi, muito comodamente, copiar na integra a redacção da lousa da Cidália apresentada momentos antes à correcção e considerada boa. A professora lê, relê e sentencia: “será melhor escreveres tudo de novo. Isto nem parece teu. És capaz de fazer muito melhor”.

Voltei ao lugar sem entender muito bem o que se passava. “Cão ou gato, vaca ou cavalo, bom para a Cidália não servia para mim?” E a única resposta à medida da dúvida ecoava-me ao ouvido pela voz da professora: “isto nem parece teu!”

Professora inteligente a minha que assim me fixou a primeira regra da escrita e me levantou a primeira questão: Teria de ser ou parecer meu, mas o que era ser meu?

Não me dei ao incómodo de procurar resposta e lá fui escrevendo, umas vezes melhor outras pior ao sabor dos temas sugeridos e conforme o comprovaram as classificações que os professores foram atribuindo aos meus textos.

Chego então à aula do Dr. Amadeu. Homem esquisito, achava eu. Ele, o professor de matemática e o de Ciências formavam um grupo com o qual eu não simpatizava, nem um bocadinho.

Um dia o senhor chegou à aula dizendo que quem quisesse poderia apresentar trabalhos para o jornal do Liceu, “O Despertar”. Eu caí nessa e escrevi um conto cheio de sentir íntimo. O professor teve a triste ideia de se rir do texto com os amigos e isso fez nascer em mim a aversão que durante muito tempo lhe dediquei de alma e coração. Rejubilo contudo na lembrança do texto “A tempestade” escrito numa aula de teste que lhe pôs no ouvido o rugido furioso do mar, vingando assim o riso “crítica” às emoções que o meu conto anterior extravasava.

Estabeleci aqui o que achei ser a segunda regra, levantou-se-me a segunda questão e tomei a primeira opção. O que escrevia, para ser bom, não poderia ser subjectivo, mas teria eu de constatar os factos, descrevê-los e não opinar sobre eles? Pois bem, eu escreveria com a cabeça para os outros; escreveria com o coração para mim. E lá fui escrevendo ou tentando fazê-lo, arriscando mesmo o privilégio da poesia em rasgos de um Abril, deserto o areal de S. Martinho, onde então passava as férias da Páscoa.

Os anos fazem-me tropeçar na Filosofia, aprendo a estruturar o pensamento e também que opinar é um direito que me assiste desde que oiça e respeite a opinião dos outros.

Caio então na Escola do Magistério Primário. Alertam-me para o texto, ensinam-me a didáctica da redacção e mandam-me à vida apta a ensinar os outros a escrever sem se preocuparem com o que eu escrevia. Não desisti. Abençoada paciência de meu pai no dia em que dois gatos me arranharam a inércia.

Casei-me entretanto.

Interregno. Para trás ficaram quilómetros de cartas trocadas com os amigos e namorados e uma grande variedade de textos que a memória rasgou. Só lembro vagamente a carta de filosofada mágoa dirigida à Madalena sobre o casamento.

Nasceram as filhas. O tempo foi pouco. A vida complicou-se.

Pesou de solidão o quotidiano.

Num dia sem data, um qualquer de entre tantos, peguei no bloco e verti no papel o coração inteiro. Desnudado, enfiei-o num envelope selado e enderecei-o ao João. Recebi um cheque de vinte contos.

Incrível! O meu marido pagara a minha prosa, mas azar dos azares, com o dinheiro quebrara-se-me a corda e não fora a teimosia, parente directa da persistência e não mais pegaria na caneta, mas continuei a escrever, cartas longas, tristes, negras como a visão que tinha da vida no momento em que as escrevia, só não as endereçava a ninguém, fechava-as no envelope e escondia-as – os contos de reis que teria ganho do João! Bom, mas se me faltou o sentido para o negócio, tive pelo menos o bom senso de concluir não valer a pena recordar tristezas e rasgar as cartas logo que as encontrei.

Partindo do princípio de que não precisava de recordações do que não pretendia esquecer, deixei de escrever. Os Natais sucederam-se sem retribuir “Boas-festas”; os amigos ouviam-me pelo telefone; as conversas de ocasião multiplicavam-se; pegar na caneta, nem pensar.

Um dia, acontece por acaso, uma história numa tarde de Biblioteca Infantil, depois tento outra e mais outra…

Então, num qualquer momento com a Esmeraldina, submersas no mar de dias que os seus (muitos) diários testemunham, uma frase baila-me nos olhos “o gato da vizinha está com cio”. Rio-me com vontade e num misto de ingenuidade e confusão, a minha mente recria a noite de insónia de uma amiga a que as necessidades de um gato dão um cunho humorístico.

Não sofrendo de insónias e não havendo gato ou cão na minha vizinhança, no dia 20 de Março de 1990, comprei um caderno. Ter-me-á outro gato arranhado a inércia?

18 comentários:

  1. Bom conhecer-te assim:)

    Um belo percurso o teu. Com arranhões e repelões...

    Mas vendo este teu texto: um resultado feliz:)

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  2. Wolfgang Amadeus Mozart,deu-nos á sua música
    maravilhosa. Mas nem todos os Amadeus são assim.
    Há os que se riem de quem escreve maravilhosamente.
    Ou será que foi essa humilhação que a obrigou a escrever tão bem? Se assim foi ainda bem que ele teve aquela infeliz atitude.Tal com Einstein foi considerado um mau aluno e foi um génio, a Isabel é hoje uma escritora.
    Quando leio hoje algumas obras e sobretudo as suas histórias não percebo porque não as publica.
    No que puder pode contar com o meu apoio, nem que seja moral.
    A propósito, gostei muito da história do porquinho Xube. Parafraseando Junqueiro "... cante-me cantigas para me embalar..."

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  3. Por falar em histórias para crianças… CATA LIVROS - já a partir do próximo dia 5, um novo site concebido pelo projecto Gulbenkian/casa da Leitura, para os leitores mais jovens.
    (Isabel agora a resposta ao meu desafio "Aqui há Melro" está mais fácil...)
    :)

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  4. Bom, esse Dr. Amadeu devia ser cá uma besta! Sem ofensa para as ditas bestas, claro! Havia (e há...) tantos professores assim!

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  5. M:
    Há alguém que consiga seguir vida fora sem arranhões, repelões e tropeções?

    Para quem gostava de patinar na lama e trepar às árvores isso seria impensável. :)

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  6. Euchavi:
    O Guerra Junqueiro era um exagerado!!!!!!
    Possivelmente será muito crescidinho para eu o embalar, não?
    Muito obrigada pelo seu oferecimento, mas nunca pensei publicar o que escrevo.

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  7. Rui:
    Antes de vir ao meu blog fui ao seu e quando vi o cubo fez-se luz no meu espírito. Às vezes os meus neurónios navegam a remos. Consolo-me pensando que acontece aos melhores. :)

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  8. Carol:
    O Dr. Amadeu era, de facto, um homem estranho. Morreu ingloriamente num acidente de viação poucos anos depois do que refiro. Eu fiz a catarse daquele incidente com a tal redacção "A tempestade" em que me imaginei num farol de uma pequena ilha numa noite de temporal. O professor até me perguntou se eu tinha vivido aquela situação e eu nem nunca tinha estado sequer numa ilha...

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  9. Linda forma de escrever o teu percurso pela escrita! O meu foi bem mais simples, nem tenho coragem de o colocar aqui, à sombra deste poderoso testemunho.

    Beijoca!

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  10. Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Escrever é orar sem um deus para a oração. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.

    Vergílio Ferreira, in "Pensar

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  11. Assim é que é. Ficámos a saber do seu curriculum vitae para a escrita. E como sabe bem ler as experiências dos outros, sempre aprendemos e ratificamos o que temos na nossa consciência e de que, eventualmente, duvidamos por motivos, quantas vezes de tal maneira subtis que nem nós próprios os entendemos...até um dia!

    Gosto de escrever. E escrevo e escrevo. Tanta coisa sem nexo, pelo menos para quem me apanhe com a boca na botija. Por exemplo, quem descubra o meu "dispersamente". Quantas vezes não tive a tentação de o fechar, mesmo que temporariamente, para reflexão...

    Era uma vez um miúdo, tinha para aí uns 13 anos, chamava-se António (esse miúdo, entretanto cresceu e até já perdeu, nas corridas do tempo, a sua farta cabeleira). Um dia, a sua professora de Português (3º ano do Secundário?) mandou que a rapaziada escrevesse uma «redacção» sob o título "Quem parte saudades leva, quem fica saudades tem». Bem, como andava a ler uns livros de romances de "cavalaria" e outros que tais, lá me pus a debitar umas palavras que eu ia aprendendo ao consultar o dicionário.
    Vai daí sai uma narrativa dum cavaleiro que partiu para África mas que deixou a sua amada em
    Portugal.
    Tantas saudades. Tantas lutas, lá longe. Tudo misturado deu em que o dito cavaleiro acabou por «fenecer».

    Resultado. A professora não esteve com meias medidas. Escreveu, no sentido longitudinal da folha, a vermelho: "até parece um romance do século XVIII".
    Fiquei melindradíssimo, não gostei mesmo nada do comentário. Um colega, o João (João António Morais da Costa Pinto, fiquei com o nome de memória, para sempre), bom aluno, de família muito culta, acabou por me consolar e aconselhou-me a ler muito e «tirar os significados», anotá-los num caderno, etc.

    Nas férias grandes, que se aproximavam, passei os três meses da praxe a ler, ler sem fim, nesse lapso de tempo devo ter lido aí uns 4 livros por semana e escrevi em caderno os «significados» de muitas (mais de mil, sei lá) palavras que eu não conhecia.

    Foi assim que comecei a escrever qualquer coisinha. No ano seguinte tive outra professora, que me incentivou bastante.
    Debalde, talvez...

    (continua...)

    Um abraço
    António

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  12. Hoje, ao abrir o blog, tive uma sensação nova.
    Arrebatava-me um cheiro diferente. Procurei a sua proveniência.
    Ofereceram-me flores?
    Desabrochou a Primavera no meu blog?
    Não! Passara por aqui um "Rafeiro Perfumado" que deixara no ar aquele cheiro inebriante...
    Bem-vindo, amigo!

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  13. Meu querido "euchavi" (permita-me a familiaridade):
    Vinicius não diria melhor. Também ele defendia que a mágoa é que leva a criação literária, mesmo quando o texto não é dramático. Só que eu não sou escritora. Eu quando escrevo sei porque o faço e para quem o faço. Eu tenho sempre um deus para orar. Se ele não existir... invento-o.
    Naquele caderno comprado a 20 de Março de 1990, só escrevi dois poemas, porque tinha a quem escrever e podia sonhar. Mas, quando as saudades de alguém apertaram, hoje sei que foram três anos a fio,tive outro caderno: Na primeira folha escrevi: O encontro. Na segunda, a laia de introdução, escrevi o seguinte:
    Comprei hoje, propositadamente este caderno.
    Caderno de capa preta pela circunstância única de que as opções eram escassas e gostei mais desta capa do que da azul escura. Pensei no momento decisivo que, se o preto é ausência de cor, então a capa deste caderno seria recriada por mim, com os cambiantes que me apetecessem.
    Comprei o caderno para quê?
    Obviamente para escrever. Não acredito que vá escrever muito. Faço análises rápidas do que me vai acontecendo, detesto olhar para trás porque a vida toca-se para a frente, mas e sobretudo porque sou uma "bicha" tão socialmente solitária que há coisas que até ao papel me recuso a confessar; nada de gestos ou atitudes, mas de pensamentos. Sou uma temerária defensora do meu espaço íntimo.
    Não será então uma contradição adquirir um caderno com o fim de escrever, quando à partida já garanto não escrever muito, nem o que possa ser mais interessante? De facto é. Posso reforçar a afirmativa com o facto de gostar de escrever, mas detestar ler-me.
    Escrever e ler-me, só quando o melhor de mim sai pelos poros, quando me transcendo, quando a minha alma transborda da taça e as estrelas pousam nos meus olhos.
    Tudo calmo na linha do horizonte. Acho tudo bom, tudo bonito. Gosto dos dias que se sucedem e acontecem. Gosto do verde que me salta aos olhos pela janela da cozinha e se o tempo está a propósito, da buganvília do vizinho, invejavelmente colorida e pujante a gozar a raquítica que tenho num vaso da varanda.
    Então porquê o caderno?
    O "encontro" há-de acontecer, não sei quando, não sei onde, omito propositadamente se sei ou não com quem.

    Uma mulher sofrida como eu aprendeu a bastar-se. Se o tal deus não existe, invento-o e hoje só escrevo em papel as notas de viagem, os outros textos escrevo-os directamente no PC (modernices...)

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  14. Meu caro António:
    A sua professora de Português só poderia ser prima direita do meu professor, se não tivesse um parentesco ainda mais próximo.
    Será que se deve a essa senhora o ar meio tímido com que me deparei naquele evento nos Paços do Concelho, em que o reconheci?
    O António também foi professor. Sabe que tal como qualquer outra profissão, esta também se aprende e tal como em qualquer profissão uns são melhores profissionais do que outros.
    Hoje, já tão "crescidinho" nunca se perguntou que mal teria o seu texto parecer um romance do século XVIII? Não acha óptimo saber escrever, com aquela idade, um "romance do século XVIII" em vez de meia dúzia de banalidades? já considerou que a senhora teria pena de não ter ninguém que fenecesse de saudades por ela?
    Peço-lhe que não feche o "Dispersamente", nem sequer para reflexão. Está a ser excessivamente modesto ao duvidar da sua escrita e corre o risco de o acusarem de vaidade...
    Por vezes é um pouco pessimista (digo eu), mas os seus comentários são sempre ponderados, respiram maturidade e transmitem calma
    Um homem que até faz rádio, como pode pôr em dúvida a excelente qualidade do seu trabalho.
    Já teve tempo de mandar a professora dar uma volta.
    Fico à espera da conclusão do texto.

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  15. "Quem canta seu mal espanta"

    Quem conta,sempre encanta!Quem escreve,conta um conto...Diz um poema, abre uma flor...E canta! Com amor...com dor...ou com paz...
    Se,de tanto, for capaz.

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  16. Olá, Olímpio.
    Bem aparecido seja. Quem é que canta? Eu não que nasci em Março!!!!!
    Também não sei se sou capaz de alguma coisa. Serei?????

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  17. Voltei aqui só para ver o ambiente.
    Não resisti e quero deixar-lhe aqui um "olá", meio tímido, talvez...
    Acertou. Mas, atenção, já fui muito mais, agora já não me atrapalho com tanta facilidade como quando era professor, nos meus 20 anos. Turmas femininas (algumas) do antigo 5º ano, sotor vem muito bem vestido, traz um casaco assim, uma gravata assado, risco ao meio?!. Vi-me e desejei-me para impor alguma ordem naquela turma 25.
    Um dia - deve ter sido combinação entre as moças - danei-me, expulsei uma delas. Desencadeou-se logo ali uma onda de «solidariedade» para com a colega. Acabei por decidir, muito prosaicamente, que afinal eu é que me expulsava a mim próprio. Recomendei-lhes que se portassem decentemente, sem barulhos, abandonei a aula, falei com o Director e desci à cidade de Leiria. Passei o resto do tempo da aula no Jardim Luís de Camões!

    E esta? Não lembrava ao diabo, mas lembrou-me a mim.
    Dada a minha «tenra» idade para o mister, tudo passou, as meninas ficaram na sala até ao fim da aula, sem barulhos nem outras perturbações da ordem estabelecida.

    Hoje rio-me a bandeiras despregadas sempre que me lembro desta cena.

    Juventude!

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  18. Ora bem António, aqui está uma atitude muito mais consonante consigo.
    Há muitas formas de comunicar. Esse "voltar de costas" muito ousado para a época, deve ter deixado a turma numa grande expectativa. O silêncio, por vezes, fala mais alto que as palavras.
    Foi sem dúvida uma atitude corajosa. Você é um homem temível!

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