Em Dezembro, o meu amigo Cuca telefonou. “Fui ao seu blogue e estou farto de rir. Posso saber o que vai cortar? Àquelas “lindas horas” eu entendia lá a ironia! “Abra o blogue”, “Não vê nada?” Eu ainda nem o tinha fechado e via lá alguma coisa só com uma nesga de olho aberta! “Escreveu ablações em vez de abluções e mais abaixo escreveu Sol onde deveria ter escrito sol. Será que agora escreve com os pés?”
“Mas que simpático que o meu amigo está hoje! Não falamos, há imenso tempo, não nos vemos há muitíssimo mais e liga para me dizer essas coisas “simpáticas”? Boas Festas também para si!”
A surpresa tolhera-me. Não fora isso, eu teria cantarolado à marrazense “você é muito róim!" Seria a resposta ideal à observação de quem, especializado em metáforas e afins, estava do outro lado do fio a rir descaradamente do meu texto acabado de publicar. Mas, nada feito! O sono diminuíra-me a capacidade de reacção!
Conheci o meu amigo Cuca por volta de mil novecentos e oitenta e um, quando ambos trabalhávamos na EMPL. Apresentou-nos Eça de Queiroz, numa qualquer manhã, em que eu atentamente ouvia uma prelecção de que não me recordo o tema. Lembro-me da sala onde aconteceu, do lugar onde estava sentada e da voz clara, calma e grave, com que o meu amigo Cuca começou a declamar, de cor, um longuíssimo período do belíssimo conto de Eça “O Suave Milagre”.
“O quê?” pensei, “será que o cavalheiro está apostado em derreter a manteiga das torradas que não comi?”
Sou uma mulher de emoções, comovo-me facilmente, mas detesto que os outros dêem por isso e não pretendia que fosse acontecer naquele momento. “Como pode gostar desses períodos longos? Prefiro frases curtas e concisas” interrompi eu, sem cerimónias, comparando o incomparável ao citar um livro que acabara de ler, de que já nem recordo autor e título.
O meu amigo Cuca calou-se e olhou-me. A pausa terá servido para contar até dez, pelo menos uma dúzia de vezes, enquanto engolia a resposta que eu merecia ouvir naquele exacto momento e, de seguida, tentou delicadamente demonstrar que eu estava errada. “O Suave Milagre” ficou para outra ocasião. O meu objectivo fora atingido.
Iniciámos aqui um jogo do rato e do gato, de cariz profissional feito de salutares provocações em que a única regra válida, embora nunca formalmente estabelecida era a alternância de papéis. Não se pretendia “apanhar” o outro, mas desafiá-lo nas suas capacidades de trabalho, no seu poder inventivo, para as resoluções de situações de aprendizagem.
Confesso que quem lucrou fui eu. Aprendi imenso. O meu amigo, com uma formação académica muito superior à minha e uma generosidade desmedida prestou-se à brincadeira de cariz pedagógico e deixou-me pensar que o desafiava quando na verdade ele “tinha as cartas, baralhava e distribuía o jogo”. Ambos tínhamos consciência disso e se eu estava disposta a aprender, ele estava disposto a ensinar. De qualquer modo, que não fique a ideia de que o processo foi pacífico. Tanto um como outro são dos que "vendem" cara a pele.
Encontrámo-nos depois na ESEL, onde me confiou as aulas práticas de uma das suas disciplinas de quinto semestre. Aceitar este trabalho obrigou-me a juntar à bagagem de férias, quatro calhamaços, em cuja leitura tive o “mau gosto” de gastar o mês de Agosto. Fui ainda a sua aluna mais atenta nas aulas de “Comunicação não verbal” a que voluntariamente assisti por achar o tema fascinante.
Um dia entrou no meu gabinete e sentenciou “o livro que requisitou na biblioteca, está ultrapassado, não vale a pena perder tempo a lê-lo” “Também o D. Afonso Henriques”, respondi enquanto remoía a raiva por o meu amigo ter metido o nariz nas minhas requisições “não querem lá ver o cuca, a meter o nariz no que leio, não faltava mais nada” comentei com os meus botões, mas afinal faltava. Faltava ter percebido que aquele homem sabia de cor todos os livros que existiam na biblioteca da escola e por ter ido casualmente à prateleira onde aquele deveria estar, notara-lhe a falta e com boa intenção tentava avisar quem o requisitara, sobre as matérias em que o mesmo estava ultrapassado.
Como a minha vida se simplificou! Sempre que precisava de bibliografia sobre qualquer assunto, batia-lhe à porta (o seu gabinete ficava em frente ao meu) ”há na biblioteca alguma coisa sobre tal assunto?” e o meu amigo Cuca respondia “estante tal, talvez na prateleira tal, mais ou menos o número…” Simplesmente impressionante!
Assim ganhou o carinhoso epíteto de Cuca (quando souber trucida-me), não por meter o nariz onde não é chamado, mas por ter passado a ser a minha enciclopédia ambulante.
Que é feito de si amigo Cuca? Calce as botas da tropa e telefone. Já tenho saudades dos seus “mimos”