sábado, 31 de dezembro de 2011
ANO NOVO
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga
quarta-feira, 28 de dezembro de 2011
NATAL 2011


domingo, 25 de dezembro de 2011
POEMA DO MENINO JESUS
Maria Bethânia, Poema VIII de O Guardador de Rebanhos de Alberto Caeiro (excerto)
Poema VIII de O Guardador de rebanhos
Num meio-dia de fim de Primavera (s.d.)
Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
«Se é que ele as criou, do que duvido.» -
«Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.»
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
......
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre.
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do Sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
......
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
......
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
"O Guardador de Rebanhos".
In Poemas de Alberto Caeiro. Fernando Pessoa. (Nota explicativa e notas de João Gaspar Simões e Luiz de Montalvor.) Lisboa: Ática, 1946 (10ª ed. 1993).
"O Guardador de Rebanhos". 1ª publ. in Presença, nº 30. Coimbra: Jan.-Fev. 1931
quinta-feira, 22 de dezembro de 2011
CHEIA DE NÃO PRESTA
quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
SILENT NIGHT
Noite Feliz! Noite Feliz!
O Senhor, Deus de Amor,
pobrezinho, nasceu em Belém.
Eis na lapa Jesus, nosso Bem.
Dorme em paz, ó Jesus!
Dorme em paz, ó Jesus!
Noite Feliz! Noite Feliz!
Eis que no ar vêm cantar
aos pastores os Anjos dos céus
anunciando a chegada de Deus,
de Jesus Salvador!
De Jesus Salvador!
Noite Feliz! Noite Feliz!
Ó Jesus, Deus da luz,
quão afável é Teu coração
que quiseste nascer nosso irmão
e a nós todos salvar!
E a nós todos salvar!
Letra Joseph Mohr
Música Franz Xaver Gruber
(25 de Dezembro de 1818)
terça-feira, 20 de dezembro de 2011
NATAL
Acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Era gente a correr pela música acima.
Uma onda uma festa. Palavras a saltar.
Eram carpas ou mãos. Um soluço uma rima.
Guitarras guitarras. Ou talvez mar.
E acontecia. No vento. Na chuva. Acontecia.
Na tua boca. No teu rosto. No teu corpo acontecia.
No teu ritmo nos teus ritos.
No teu sono nos teus gestos. (Liturgia liturgia).
Nos teus gritos. Nos teus olhos quase aflitos.
E nos silêncios infinitos. Na tua noite e no teu dia.
No teu sol acontecia.
Era um sopro. Era um salmo. (Nostalgia nostalgia).
Todo o tempo num só tempo: andamento
de poesia. Era um susto. Ou sobressalto. E acontecia.
Na cidade lavada pela chuva. Em cada curva
acontecia. E em cada acaso. Como um pouco de água turva
na cidade agitada pelo vento.
Natal Natal (diziam). E acontecia.
Como se fosse na palavra a rosa brava
acontecia. E era Dezembro que floria.
Era um vulcão. E no teu corpo a flor e a lava.
E era na lava a rosa e a palavra.
Todo o tempo num só tempo: nascimento de poesia.
Manuel Alegre
FELIZ NATAL
sábado, 17 de dezembro de 2011
sexta-feira, 16 de dezembro de 2011
É O FADO
Um amigo, que já não via há imenso tempo, telefonou. Que ia ser operado ao olho direito, que queria ver-me enquanto me via bem, pois poderia ficar cego e ficar a ver-me só pela metade. Além disso, no Verão vira ginjas à venda, lembrara-se de mim, comprara, pusera-as em infusão em aguardente e pretendia dar-mas, para que eu fizesse licor.
Sugeri que viesse merendar comigo no Domingo, se queria olhar para um cromo em vez de esperar pela hipótese de ficar a ver mal e depois imaginar-me uma estampa e que trouxesse as ginjas na aguardente que eu tinha “Zabelinha Borrachona” e “Zabelinha Princesa”, dois dos afamados licores produzidos no Zabeleiria Laboratórios - SA, para a troca.
Apareceu com dois sacos de plástico. “Costumam dar-me lâmpadas para a empresa, como sei que compras, trouxe-te algumas”. Eram dois sacos porque umas tinham casquilho grosso e outras fino. Agradeci.
Pusemos a conversa em dia, comemos torradas e bebemos café com leite. Dei-lhe dos meus licores e uma taça de marmelada para levar.
Depois do meu amigo partir, quando ia arrumar as lâmpadas lembrei-me do candeeiro do escritório. No escritório, a que a minha filha mais nova sempre chamou pomposamente "quarto azul", talvez por a cor existir parcamente na decoração, há um candeeiro de tecto com cinco túlipas. Desde que inventaram a moda das lâmpadas economizadoras que o dito nunca mais dispôs de lâmpadas iguais, porque, por sovinice, recuso-me a comprar de uma vez todas as necessárias, que ainda por cima dão uma luz que detesto. Assim cada vez que compro uma lâmpada nunca recordo o desenho das que já tenho, resultando por isso, que o candeeiro tenha, desde há algum tempo, cinco lâmpadas diferentes, o que constitui motivo de riso para quem repara no pormenor. Eu justifico-me como posso “será que sabiam que existia tantas espécies de lâmpadas? Isto não é descuido, é informação, é cultura”, mas, justificavelmente, ninguém acredita nas minhas boas intenções.
No saco das lâmpadas de casquilho grosso escolhi cinco lâmpadas iguais, mas… não havia. O meu amigo dera-me conjuntos de quatro.
O candeeiro lá continua no tecto do quarto azul, desta vez com quatro lâmpadas de nove e uma de onze, são todas torcidas muito pomposas, só que a de onze tem mais uma volta. Não são todas iguais, mas são parecidas.
Má sorte ser candeeiro em minha casa! É fado ter lâmpadas diferentes!
quinta-feira, 15 de dezembro de 2011
À SEMELHANÇA DE FREI TOMÁS
Numa quarta-feira, única manhã em que disponho de umas horas livres, em Lisboa, espreitei na loja do pequeno Centro Comercial onde costumo comprar algumas peças de roupa e encantei-me com umas calças de ganga. Azar! Já não havia o número.
Chegada a Leiria, no feriado de quinta-feira passada, convidei a minha amiga P, para ir comigo a uma localidade próxima, onde sei haver uma loja que vende aquela marca de calças e onde costumamos ir passear algumas vezes, quer queiramos ou não adquirir alguma coisa.
A minha amiga P. é a mais consumista de todas as minhas amigas e assume o facto com a maior naturalidade. “Gosto de coisas boas e bonitas” costuma dizer. “Quem não gosta?”- pergunto eu. Pois com imensa piada a minha amiga P. há uns tempos para cá, assumiu-se como o amplificador de som da Troika e não pára de fazer a todos os amigos discursos sobre as necessidades de contenção, coisa que ela, na prática, nem sabe o que é.
Na quinta-feira, passada inquirida sobre a compra que pretendia realizar, ouvi o discurso. Porque eu quase nem visto calças de ganga, porque com frio já nem sabe bem vestir as ditas e a estes, outros argumentos se juntaram, demonstrando que o investimento seria desnecessário. Eu fui rindo e explicando que ainda estávamos na meia estação, que o modelo era giríssimo e que as calças de ganga que possuía estavam velhas e gastas.
Antes de nos dirigirmos à loja pretendida ainda passámos por outra onde eu experimentei um casaco que ia muitíssimo bem com “o meu tom de pele” e foi a minha deixa para entrar naquele coro de lamentações “nem pensar, em tempos de crise” “mais caro que o ordenado mínimo!?” “Compro-o depois nos saldos” e saí porta fora, aplaudida pelos elogios da minha amiga: “Fazes muito bem. Com os tempos que correm sabe-se lá se o dinheiro não fará falta para outra coisa? E a cimeira deste fim-de-semana? Nem sabemos se não teremos de ir segunda-feira, logo de manhã, ao banco levantar quanto dinheiro temos”.
Subimos a escada rolante de um lado e descemos do outro, mais uns metros de corredor e estaríamos onde eu pretendia ir, mas antes… “Espera, esta loja está com reduções e tem coisas giríssimas. Vou entrar”. E a minha amiga entra e dirige-se, direitinha, ao expositor dos seus encantos, comigo atrás. Mexe, apalpa, experimenta…
Enfim, eu continuo sem calças, mas a minha amiga possui mais duas camisolas e um casaco…
“Mas as coisas são lindas, lindas, lindas.”- Comenta a P. quando, por eu ter contado aos amigos, todos brincamos com o facto.
“À semelhança de Frei Tomás, façam como ela diz…”
quarta-feira, 14 de dezembro de 2011
O QUE AS AVÓS FAZEM
O André será o Feiticeiro Verde, na Festa de Natal. “Só poderia ser o Verde” – pensou esta avó e abismou-se em divagações sem ouvir que a filha pretendia ideias para o fato. Pela NET poder-se-iam encomendar fatos de todas as cores, menos verde. E a avó achou natural. As preocupações da filha eram mais palpáveis. Que modelo confeccionar? Que tecido comprar?
A avó desceu das nuvens. O neto explicou que o Feiticeiro Verde, no fim, roubava o ouro todo. A avó achou a história duvidosa e pensou que isso só poderia aconteceu por uma boa causa, mas não insistiu e sugeriu uma capa de cetim verde com luas e estrelas amarelas e, completando o conjunto, um chapéu bicudo, igualmente verde, decorado com os mesmos motivos.
A filha acalmou. O neto foi para o colégio. Os dias dessa semana cumpriram-se tão iguais como se vêm cumprindo desde Setembro.
No fim-de-semana, quando reparou no número de chamadas da filha que não atendera, apercebeu-se que haveria pânico. Já equipada para apagar o fogo, ligou. A filha pretendia saber que porção de tecido deveria adquirir, mas já havia feito a compra.
Foi assim que, na semana passada, me confrontei com cetim verde e amarelo em quantidade suficiente para uma capa para o neto e um tailleur para a avó. Armei-me de tesoura, cortei a capa, alinhavei a lua e as estrelas depois de coladas em entretela e deixei tudo pronto para entregar à costureira que faria o resto. Por resto entenda-se coser as estrelas e as luas a ponto ziguezague, debruar a capa a amarelo e colocar uma tira no pescoço com tamanho suficiente para dar um laço, que deveria ainda levar uma estrela em cada ponta.
Novo fim-de-semana. Novo pânico. Mais telefonemas. “A senhora do atelier do Continente, não faz a capa, porque dá muito trabalho. Se eu pedir a máquina emprestada à F., tu fazes a capa do André?” “Eu?!” – balbuciei – “Nunca cosi numa máquina dessas.” Em minha casa existe uma máquina de costura de marca Singer que pertenceu à minha avó Isabel, peça antigamente obrigatória no enxoval das noivas e que perfaz actualmente mais de cem anos, único objecto onde, tirando as bicicletas, alguma vez pedalei. “Se a F. é capaz, tu também és”.
E acrescida a tarefa de costureira, não prevista, ao meu actual “contrato de trabalho”, apresentei-me esta Segunda-feira ao serviço.
Estes dias, não só me tenho passeado com a Rita entre a montra de brinquedos, que são as prateleiras da estante do quarto do André e a paisagem da janela da cozinha, de onde se avista um ou outro Bob, como confeccionei a capa do feiticeiro verde mais bonito do mundo, do meu mundo de afectos.
Eu nem sabia que era tão habilidosa!
Ainda falta o chapéu (SOCORRO!!!!!!)
Nota de autor: Bob (plural: Bobs) é a designação pela qual, em léxico familiar, são conhecidos os trabalhadores da construção civil. A autoria do vocábulo é da responsabilidade do André, por analogia com a Banda Desenhada que, em tempos, fez os seus encantos. Para mais informações consultar o próprio, que a cultura da avó não passa de uma amálgama de saberes aglutinados uns com saliva, outros com cola de sapateiro. O assunto em questão pertence ao primeiro grupo.
terça-feira, 13 de dezembro de 2011
A SOPA DA RITA
A Rita completou quatro meses no passado dia dois, do corrente mês.
Depois da prevista visita à pediatra, começou, na quinta-feira da semana passada, a comer as primeiras refeições sólidas: umas coloridas sopas de puré de batata em que umas vezes se mistura cenoura e outras abóbora, seguidas de papa de fruta.
Hoje, aconteceu almoçarmos as duas. Aproveitei para explicar à Rita que devemos socializar com as pessoas que nos acompanham à refeição, conversando com os que estão à direita e à esquerda e, a título de exemplo, contei-lhe a história daquele senhor que, de relações cortadas com o companheiro que lhe calhara num dos lados da mesa, optara por lhe ir recitando a tabuada para que a dona de casa não se sentisse embaraçada ao aperceber-se da “gaffe” que cometera sentando-os ao lado um do outro.
A Rita, numa extraordinária manifestação de inteligência, qualidade que só pode ter herdado da avó Belita (modéstia à parte), fazendo jus ao meu discurso, começou a falar de brinquedos. Eu, embora preferisse falar da crise económica, numa tentativa de, perdendo o apetite, fazer dieta, condescendi. Estamos no Natal…
Então a Rita contou-me que pedira uma mota ao Pai Natal, mas que gostaria de uma daquelas de escape livre. E vá de fazer repetidas demonstrações, com a boca cheia.
No fim do almoço, propus um mergulho no Rio Tejo. Tomávamos banho e lavávamos a roupa, que os tempos vão difíceis e os vinte e três por cento de IVA não estão para leviandades, mas ela recusou. “A sopa de abóbora é muito indigesta”- contrapôs e tombou no melhor dos sonos.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011
AVARIAS
Tenho um amigo do qual me separam umas centenas de quilómetros, mas não é por isso que deixa de estar presente na minha vida.
Telefona ao fim-de-semana. “Que fazes em casa Isa?”- nem Isabel, nem Belita, como todos os outros – e antes que eu responda ordena “Vai para a rua”, “Vai conversar com as amigas”. E eu respondendo que irei mais logo, penso, invariavelmente, que este homem sabe quantos quilogramas pesa a palavra solidão.
Conhecedor das minhas andanças semanais entre Lisboa e Leiria, telefona à segunda-feira de manhã a desejar-me boa viagem: “Vai devagar, para chegares depressa”. Eu rio-me e a minha alma aconchega-se porque o meu pai não diria melhor. “Pois, terei de ir devagar para poupar gasolina” - respondo fingindo não ter percebido a recomendação. “Também por isso. Não ultrapasses as três mil rotações, senão… “ e mimoseia-me com uma onomatopaica engraçadíssima que nem sei reproduzir, com a qual pretende dizer-me que o consumo do veículo disparará.
E, a conversa vai acontecendo, segunda-feira após segunda-feira, quase igual.
Uma qualquer semana, parti mais tarde para Lisboa, mas a hora a que teria de chegar era a mesma. Ao entrar na auto-estrada pensei: “Lá se vão as recomendações…” e sorri. Sorri, porque é aconchegante lembrar os cuidados de quem se preocupa connosco, mesmo quando não pretendemos seguir as suas recomendações.
No percurso destes quase cento e cinquenta quilómetros que separam a minha casa, da de minha filha mais velha, as ideias multiplicam-se, as palavras fluem a uma velocidade vertiginosa e eu elaboro mentalmente textos intermináveis que depois nem sequer passo a escrito porque se o tentasse já não escreveria esses, mas outros diferentes. Muitos desses textos esquecidos são hilariantes, outros nem tanto e por vezes, um ou outro serve para chorar as mágoas.
Pois dessa vez, logo à saída de Leiria, a questão foi: “Como manter as três mil rotações sem deixar de carregar no acelerador?”
Atirado ao esquecimento o que era um motor de explosão a quatro tempos, acabei por admitir a hipótese de que a única solução seria um calce no ponteiro do mostrador do conta-rotações, à semelhança do que acontece com a bússola, quando não está a ser utilizada. Depois desta brilhante conclusão, começaram a desfilar na minha mente todas as máquinas caseiras às quais foi sendo feita a respectiva análise. À máquina de lavar loiça, possivelmente por ser um modelo barato, não veio acoplado o robot que arruma os pratos e panelas nos armários, no fim dos programas de lavagem. Acessório semelhante, mas à prova de água, encontra-se igualmente em falta na máquina de lavar roupa. Até os electrodomésticos menores, como a varinha mágica, o ferro de engomar, o aspirador, o leitor de CD tinham avarias que fui mentalmente resolvendo com o objectivo de rentabilizar os recursos. Era um dedo nuns, um braço noutros e seria tudo a trabalhar e eu a descansar, à imagem do velho slogan publicitário do Tide.
Pois ontem, espojada no sofá, lembrei-me deste inventário de loucura. Havia passado a manhã a fazer comer, algum para trazer para Lisboa, outro para congelar. À tarde deu-me a birra e fiquei em casa agarrada à televisão, mais propriamente ao AXN, único sítio onde os crimes se desvendam e os criminosos são punidos em tempo útil. Sozinha, só perto das dezoito horas fui visitar a minha mãe.
A questão acabou por surgir: Será que a única coisa verdadeiramente avariada cá em casa não serei eu, que todo o dia me senti a mesma “sem vontade com que rasguei o ventre de minha mãe”?