Sou a filha mais nova, muito mais nova de um casal com dois filhos. A cegonha deixou-me escorregar pela chaminé na madrugada de um longínquo Domingo, doze anos, doze dias e doze horas depois de meu irmão ter nascido; isto nos anos comuns, nos anos bissextos os dias passam a treze.
A minha mãe nunca fez segredo: não pretendia ter mais do que um filho, mas eu apareci e fui bem-vinda; do meu pai nunca soube a opinião, nunca se manifestou sobre o assunto. Honestamente, acho que a minha mãe também deveria ter guardado a opinião para si e eu nunca deveria ter sabido, porque o conhecimento de tal facto, numa criança como eu, com um mundo interior tão vasto e uns olhos de mata-borrão para as minúcias do mundo, à mistura com um ou outro gesto de impaciência de minha mãe, que seria impossível não acontecerem, geraram o sentimento de carência, que ainda hoje conservo bem guardado no fundo do peito.
Nunca me senti suficientemente amada e isso deriva do facto de saber que o meu irmão foi o filho preferido. Na verdade ele era um hino à simpatia: extrovertido, brincalhão, uma história a propósito de tudo e uma vida curta em ritmo acelerado que terminou ao terceiro enfarte do miocárdio, ainda bem novo.
O meu pai dizia muita vez “não tem juízo, não se cuida, há-de dar-me o desgosto de morrer antes de mim”. E aconteceu: morreu cerca de quinze meses antes de meu pai que, acamado devido a um AVC, já não teve a capacidade de se aperceber do facto.
À dor provocada pela morte de meu irmão, que eu estupidamente (nem há outro advérbio), mesmo vendo-o terrivelmente doente achava que nunca ocorreria, juntou-se a dor de minha mãe, absolutamente desfeita, numa mágoa tal que só quem tenha passado pelo mesmo desgosto saberá avaliar, numa raiva absolutamente incontida, numa revolta tão dura contra tudo e contra todos, que um dia vi-me obrigada a olhá-la nos olhos e dizer-lhe “mãe, por muito que o desejasse, não poderia morrer no lugar do meu irmão. Ninguém poderia!”.
Poupo os pormenores, mas foi a partir desse dia que acalmou e pôde estabelecer a ponte, a sua ponte e começar o luto. Não era uma ilha isolada na dor; havia mais quem amasse e sofresse com a morte do seu filho, havia quem estivesse disposto a ouvi-la; havia quem entendesse o que sentia.
E não será isso o que inconscientemente todos procuramos? Não queremos todos estabelecer pontes que terminem com o nosso isolamento? O problema não estará no facto de não sabermos o que nos isola? De não termos consciência de que facto ou factos da nossa vida nos magoaram ao ponto de nos fazerem cortar a comunicação com os outros?
Quantas vezes pesa em nós o silêncio da noite? Quantas vezes nos sentimos incapazes de ouvir a voz das nossas próprias mágoas?
Será por isso que nos entretemos nas redes sociais, fingindo comunicar, pervertendo o sentido da palavra AMIGO?
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