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segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

AVARIAS

Tenho um amigo do qual me separam umas centenas de quilómetros, mas não é por isso que deixa de estar presente na minha vida.

Telefona ao fim-de-semana. “Que fazes em casa Isa?”- nem Isabel, nem Belita, como todos os outros – e antes que eu responda ordena “Vai para a rua”, “Vai conversar com as amigas”. E eu respondendo que irei mais logo, penso, invariavelmente, que este homem sabe quantos quilogramas pesa a palavra solidão.

Conhecedor das minhas andanças semanais entre Lisboa e Leiria, telefona à segunda-feira de manhã a desejar-me boa viagem: “Vai devagar, para chegares depressa”. Eu rio-me e a minha alma aconchega-se porque o meu pai não diria melhor. “Pois, terei de ir devagar para poupar gasolina” - respondo fingindo não ter percebido a recomendação. “Também por isso. Não ultrapasses as três mil rotações, senão… “ e mimoseia-me com uma onomatopaica engraçadíssima que nem sei reproduzir, com a qual pretende dizer-me que o consumo do veículo disparará.

E, a conversa vai acontecendo, segunda-feira após segunda-feira, quase igual.

Uma qualquer semana, parti mais tarde para Lisboa, mas a hora a que teria de chegar era a mesma. Ao entrar na auto-estrada pensei: “Lá se vão as recomendações…” e sorri. Sorri, porque é aconchegante lembrar os cuidados de quem se preocupa connosco, mesmo quando não pretendemos seguir as suas recomendações.

No percurso destes quase cento e cinquenta quilómetros que separam a minha casa, da de minha filha mais velha, as ideias multiplicam-se, as palavras fluem a uma velocidade vertiginosa e eu elaboro mentalmente textos intermináveis que depois nem sequer passo a escrito porque se o tentasse já não escreveria esses, mas outros diferentes. Muitos desses textos esquecidos são hilariantes, outros nem tanto e por vezes, um ou outro serve para chorar as mágoas.

Pois dessa vez, logo à saída de Leiria, a questão foi: “Como manter as três mil rotações sem deixar de carregar no acelerador?”

Atirado ao esquecimento o que era um motor de explosão a quatro tempos, acabei por admitir a hipótese de que a única solução seria um calce no ponteiro do mostrador do conta-rotações, à semelhança do que acontece com a bússola, quando não está a ser utilizada. Depois desta brilhante conclusão, começaram a desfilar na minha mente todas as máquinas caseiras às quais foi sendo feita a respectiva análise. À máquina de lavar loiça, possivelmente por ser um modelo barato, não veio acoplado o robot que arruma os pratos e panelas nos armários, no fim dos programas de lavagem. Acessório semelhante, mas à prova de água, encontra-se igualmente em falta na máquina de lavar roupa. Até os electrodomésticos menores, como a varinha mágica, o ferro de engomar, o aspirador, o leitor de CD tinham avarias que fui mentalmente resolvendo com o objectivo de rentabilizar os recursos. Era um dedo nuns, um braço noutros e seria tudo a trabalhar e eu a descansar, à imagem do velho slogan publicitário do Tide.

Pois ontem, espojada no sofá, lembrei-me deste inventário de loucura. Havia passado a manhã a fazer comer, algum para trazer para Lisboa, outro para congelar. À tarde deu-me a birra e fiquei em casa agarrada à televisão, mais propriamente ao AXN, único sítio onde os crimes se desvendam e os criminosos são punidos em tempo útil. Sozinha, só perto das dezoito horas fui visitar a minha mãe.

A questão acabou por surgir: Será que a única coisa verdadeiramente avariada cá em casa não serei eu, que todo o dia me senti a mesma “sem vontade com que rasguei o ventre de minha mãe”?

24 comentários:

  1. Sem vontade não me parece muito teu:)

    Que tal um bom mecânico?

    :)

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  2. Olá, M.
    Acho que tens razão. Estou mesmo a precisar de um bom mecânico.

    lol

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  3. Avariada não digo, mas... com um parafuso a menos... Assim como eu.... Não querias mesmo mais nada: os eletrodomésticos a trabalhar e tu a descansar! E que bom teria sido se fosse possível no tempo em que as filhas ainda estavam em casa e não tínhamos tempo para nada!

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  4. Olá, "carol".
    Se fosse só um parafuso que faltasse...
    Por acaso até gostaria de ter mais uma coisa: uma varinha mágica daquelas que as fadas têm nas histórias. Se a tivesse nem precisaria de electrodomésticos (só me rendo ao novo acordo ortográfico a partir de Janeiro). Então sim seria uma festa!
    Quanto ao tempo... a minha vida continua a mesma confusão. Não sei se fui eu que perdi faculdades, se foram os dias que diminuíram, se serei eu que continuo com actividades em excesso. Na verdade, se tivesse tempo teria de o entreter, assim entretém-me ele a mim. :)

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  5. Olá, Olímpio.
    Sendo absolutamente contra o novo acordo ortográfico porque não resulta de uma evolução da Língua Portuguesa, mas de uma forte política da Língua Portuguesa do governo brasileiro (tiro-lhes o chapéu por isso), de que resultou a atitude política de Portugal ter de aderir e ainda por ser gerador de dupla grafia, situação a que como professora não sou indiferente (o acordo deveria simplificar e não complicar), a partir de Janeiro começarei a escrever segundo as novas regras.
    Porquê só a partir de Janeiro? - perguntará o meu amigo. Porque é a partir dessa data que todos os documentos oficiais passarão a ser escritos de acordo com o novo figurino. Ora, como vivo neste país e não em outro, procederei como mandam as regras.
    Cá fico à espera da sua "tareia".

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  6. "Chacun à son goût"... Mais...
    Em Roma, nem sempre sê romano! - Odoacro provou-o, há 1535 anos.

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  7. Pois Odoacro provou que quando não se é romano, faz-se por ser. Em 476 pôs fim ao Império Romano do Ocidente depondo Rómulo Augusto e a partir daí, governou Roma durante treze anos. Se isto não é tornar-se romano, então o que será?
    E ainda... como o Rómulo era bonito (lol) poupou-lhe a vida e atribui-lhe uma pensão de 6000 libras de ouro. Olhe lá, que fraquezas duvidosas para um bárbaro guerreiro de barba rija e pelo na venta?!
    Desta vez saiu-se mal com o exemplo! Saiu-lhe o tiro pela culatra!!!!! (imperdoável num militar com a sua larga experiência - lol).
    Amigo, estou numa junta de freguesia. Tenho responsabilidades e quer queira quer não queria tenho de respeitar as normas.
    O Odoacro só serviu para me dar razão. "Em Roma sê romano".

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  8. NÃO!!! Negativo!Negativo!Negativo!... ... ...
    O que importa é o substrato!A forma,POR VEZES, é pouco relevante!
    Odoacro, com uma forma qualquer, ACABOU com o Império Romano do Ocidente. Assim o tinha feito Alexandre, o Grande, com os Persas, apesar do seu casamento e toda a babilonificação ...
    Afonso Henriques não foi romano, leonês ou castelhano - foi o primeiro português.
    Os Lusitanos, acabaram, quando, depois de Viriato e Sertório,foram romanos.Napoleão quis ser romano! Até pôs ao filho o titulo de Rei de Roma! Etc.,Etc.,Etc.
    Isabel!!!! Culatra????!!!! - Todos os meus canhões são anteriores a 1580!Ainda não havia culatras - carregavam-se pela boca,com pólvora fabricada com carvão de carvalho, salitre e enxofre de minas profundas,e projécteis de ferro dos Montes de Reboredo!
    Eu sei!Espécies que não se adaptam, desaparecem com o tempo.Não é escolha!(Fado, não significa destino?)... - É pura questão genética!

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  9. Olímpio,
    Consigo imaginá-lo empolgadíssimo a fazer este discurso.
    Quanta exuberância!
    Concluiu bem: espécies que não se adaptam desaparecem com o tempo. O meu tempo é hoje e é com essa verdade que tenho de viver. Não é fado nem castigo. É a maravilhosa realidade de estar viva e a mexer.
    Abraço.

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  10. Não resisto, Olímpio!

    Já que falou em Lusitanos deixo-lhe a pergunta: Que seríamos hoje, se o general Decimus Junius Brutus não atravessasse o rio do esquecimento, pondo fim ao mito de Lethes?
    Se calhar ainda andávamos nos Montes Hermínios a saltar de pedra em pedra atrás das cabras... Que lhe parece?

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  11. QUE BOM MECÂNICO!

    Ao fazer uma ligação direta
    já foi estourando uma seta
    pelo pulo que deu no arranco.
    Saltou o carro além da meta
    por que ele não estava numa reta
    já quase sai voando num banco.

    Fui empurrando ciclista e bicicleta
    muita gasolina que no motor ejeta
    o que me segurou foi um barranco.
    Pra mim que nunca fui um atleta
    não estranhei a torcida quieta
    fiquei tonto pelo sôco do tranco.

    A coitadinha da minha neta
    que de flores fazia a coleta
    seu rostinho ficou até branco.
    Quando a ligação quase completa
    na terceira tentativa, ou tetra
    fui saindo do carro todo manco.

    Caindo lá na horta da Anacleta
    que só tem legumes para dieta
    do canteiro fui saindo de fianco.
    Minha saida não foi indiscreta
    com legumes não ia fazer seleta
    metade da cerca no peito ranco.

    Ela no palavrão me desinfeta
    mandou-me para a ilha de Creta
    sai de lá entre pulo e solavanco.
    Tanta cacetada a profissão não afeta
    me chamaram de jumento e de pateta
    mas qualquer motor destravanco.
    GIL DE OLIVE

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  12. Que BOM Isabel ter a sorte de ter um AMIGO como esse!!!...Que sorte; tenho muitos AMIGOS mas,... assim, que se lembra de mim com tanta frequência....nem pensar!!!...é preciso arranjar muitas estratégias para a solidão não pesar tanto!!!...
    Bem, ....e cá se vai andando...vai-te embora SOLIDÃO!!!...É preciso "um Sorriso" diz a minha prof de Yoga...
    Beijinho, Isabel!
    MHelena

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  13. Ora "euchavi", já me está a desmoralizar?!

    Que mauzinho, não????!!!

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  14. Olá, Maria Helena (desde ontem!).

    Ter amigos é bom. Mesmo muito bom! Ser alvo da gentileza deles é muito melhor. É o que me acontece consigo. A Maria Helena é uma pessoa disponível para distribuir palavras afáveis, calorosas, simpáticas, que me mimam a alma e sempre um sorriso nos lábios.

    Que generosidade! Bem haja!

    Não lhe chegou aturar a minha filha mais nova nas aulas de francês? :)

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  15. Negativo!
    E se o Decimus Brutus não tivesse existido?
    E se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno?
    Se somos fruto das circunstâncias, não o deveríamos ser!!

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  16. A minha primeira relação consigo vem de ter dado aulas de Francês à Zara, na E. Afonso Lopes Vieira!
    Belos tempos; recordo a Zara com saudades pois era uma menina excelente!...Nunca mais a vi e gostaria de me encontrar com ela...talvez, quem sabe???
    Tem razão ---- ter AMIGOS é o melhor que nos pode acontecer...levantam-nos a "auto-estima", quando são mesmo AMIGOS.....agora... nem sempre..... :( temos de ser muito analistas para seguir em frente o nosso caminho!
    Bom Domingo
    MHelena
    Bom Domingo
    MHelena

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  17. Olá, Olímpio.

    O cemitério está cheio de gente insubstituível. Se Brutus não tivesse existido outro providenciaria a romanização da Península Ibérica.

    Se o nariz da Cleópatra fosse menor a naja naja viveria sossegada no cesto dos figos mais uns tempos.

    Sarte diz que sim, que há um certo determinismo nas circunstâncias. Pelo menos foi o que me pareceu quando, há muitos anos, li a obra "Os dados estão jogados".

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  18. Maria Helena:
    Fica prometido que providenciarei esse encontro.
    Beijinho.

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  19. Obrigada Isabel! Tenho saudades de revê-LA com aquelas sardinhas que eu adorava...

    Beijinho MHelena

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  20. Negativo!Negativo! Negativo!
    Não há "ses..." em História ...(se o nariz de Cleópatra tivesse sido mais pequeno, não teria sido Cleópatra). ...Sartre não terá abordado, sequer, o Determinismo! No entanto, ter-se-á apercebido dele. ... ... A Natureza é Determinista!O homem, por arrogância,disfarce e cobardia, é Possibilista. ... ... Os dados sempre estiveram jogados! O homem, fraco jogador,tenta sempre fazer batota ... e,depois,pretende explicar-se, quando nem sequer consegue justificar-se, pois o que ele quer, de facto, é desculpar-se(!!)... ... (a escrita é muito limitativa...por isso,e não só,tem que ser determinista e não possibilista!-(IOL)-é assim que se diz??

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  21. "Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Escolho meus amigos pela cara lavada e pela alma exposta. Não quero só o ombro ou o colo, quero também sua maior alegria. Amigo que não ri junto, não sabe sofrer junto. Meus amigos são todos assim: metade bobeira, metade seriedade. Não quero risos previsíveis, nem choros piedosos. Quero amigos sérios, daqueles que fazem da realidade sua fonte de aprendizagem, mas lutam para que a fantasia não desapareça. Não quero amigos adultos, nem chatos. Quero-os metade infância e outra metade velhice. Crianças, para que não esqueçam o valor do vento no rosto, e velhos, para que nunca tenham pressa. Tenho amigos para saber quem eu sou, pois vendo-os loucos e santos, bobos e sérios, crianças e velhos, nunca me esquecerei de que a normalidade é uma ilusão imbecil e estéril"
    Fernando Pessoa

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  22. Olá, Olímpio.
    Os "ses" em história servem para o mesmo que fora dela: exercícios mentais de pura especulação.
    Para mim um "se" só tem valor ponderativo. Depois de decidir,quando passo à acção, aguento as consequências. Não deixo que chova sobre o molhado. Remeto-o para o texto que postei neste blog em 16 de Julho e que o meu amigo até teve a simpatia de comentar.

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  23. Olá, "euchavi",

    Metade de loucura tenho, um pouco de infância também, para a velhice caminho a passos largos, mas de santidade... Eu, por me chamar Isabel, costumo dizer que rainha já não serei (a monarquia acabou com o finado 5 de Outubro), mas santa nunca se sabe...

    Será que nestas condições poderei pretender que me considere sua amiga???

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