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sábado, 27 de outubro de 2012

AQUELE VESTIDO PRETO


Sábado, faz hoje oito dias, bem cedo, saltei da cama e comecei a desfiar as rotinas de cada amanhecer. Quando chegou o momento de escolher a roupa que vestiria, lembrei-me do tema posto em discussão no Facebook, ao qual não prestara a mínima atenção. Abordava a possibilidade das mulheres que usam calças serem menos femininas que as que usam saias. Ri-me. “Bem vamos lá disfarçar a minha masculinidade”, pensei enquanto tirava do cabide um vestido preto.

Conjuguei aquele vestido de saia ampla, bem curto com um casaco azul e optei por uns sapatos também pretos baixos, embora goste de o ver com uns sapatos azuis bem altos, mas tinha muito que andar e não só de carro. Combinei os restantes acessórios e fiz-me à vida.

Às nove horas e trinta estava na oficina, para o check up ao carro. Era o dia Honda, não recordo o slogan, e o exame ao carro, feito nesse dia, valeria trinta por cento de desconto nos serviços que posteriormente, fossem necessários. A fila de carros alinhada pela estrada fora, junto à oficina, já à espera de vez, fez-me concluir pela cabeça da minha amiga OC: aquilo a que me propunha era “coisa de gajos”, como ela costuma dizer e ri-me, mas ri-me com vontade: “mas eu vou ficar aqui à espera? Nem pensar!”. Estacionei e procurei o Sr. P., junto de quem marquei a revisão dos cinquenta e oito mil quilómetros, que o carro ainda não tem, mas que os óleos sintéticos, agora utilizados nos motores, obrigam a que se faça de ano a ano, sem esperar pela quilometragem certa. Garanti o desconto e pus-me a andar desprezando as gentilezas do café, dos bolinhos, do chá que a senhora encarregada de obsequiar os clientes, desfeita em sorrisos, pretendia que aceitasse. Trouxe o jornal que uma linda jovem me ofereceu: o Diário de Notícias, o meu matutino preferido. Às onze horas tinha outro compromisso.

E cumprida a manhã, tendo em conta que a tarde também não seria pródiga em disponibilidade, corri a visitar a minha mãe. Já a encontrei na sala de refeições. Puxei uma cadeira para o seu lado direito, como sempre faço e acomodei-me para lhe dar o almoço, tarefa penosa para quem aos noventa e quatro anos movimenta o braço direito com dificuldade.

O primeiro reparo foi para o colar. “Esse colar é bom?” A minha mãe detesta que eu use “porcarias”, como usa classificar certos acessórios, alvos prediletos da sua ironia, como aconteceu na última visita da neta: ”a tua mãe já te mostrou o anel novo? Pedi-lho emprestado mas, com medo que eu riscasse o onix, não mo emprestou. Tenta tu, pode ser que tenhas mais sorte” e referia-se a um anel que eu tinha adquirido na Feira das Velharias, em S. Martinho do Porto. Eu ajudei à festa: “Não viu bem. A pedra é cristal de rocha (um pedaço de plástico que o imita) e não onix. Não lho emprestei porque se o perdesse, devido a essa confusão, não saberia encontrá-lo.”

Expliquei que o colar, não era muito bom, mas também não era mau de todo e começámos o almoço. A observação veio entre duas colheres de sopa: “Esse vestido está curto de mais”, “o dinheiro não deu para comprar mais comprido” – brinquei eu – “mas estou a pensar em mandar a costureira acrescentá-lo, com um folhinho na ponta”. Em consequência das considerações seguintes, questionei. “Em que reparou primeiro? Não foi no colar? É naquilo em que toda a gente repara, na exuberância do colar, ninguém olha para as minhas pernas. Deixe de se preocupar com isso” e o assunto morreu.

Às quinze horas novo compromisso. Cheguei, bem em cima da hora e fiquei à porta, conversando com quem estava a aguardar o início dos trabalhos. Uma amiga calmamente aproxima-se de mim pega na volta exuberante do meu colar, que quase acompanhava a altura do vestido, torce-a e tenta enfiar-ma na cabeça: “Amiga, que a minha mãe não entenda, eu aceito, mas tu?” Os olhares daquele pequeno grupo convergiram em mim e vi-me obrigada a explicar: “A exuberância do colar distrai da irreverência do tamanho da saia. Este vestido é um escárnio aos anos que possuo. O colar dá subtileza à brincadeira, só um espírito arguto repara na mensagem” e acrescentei, brincando “assim ninguém repara nas pernas de quem o veste…” e rimo-nos. Alguém aprovou: “gosto da combinação”


“E o poema faz-se contra o tempo e a carne”  Herberto Hélder.

2 comentários:

  1. Alguém disse: "gosto da combinação" e eu não pude deixar de rir também.
    Razão tem a sua mãe... o vestido é mesmo curto.
    :)

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    1. Deixo-lhe a resposta que proferi então: O vestido não está assim tão curto.:)
      Parabéns pela argúcia.

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