Houve anos, em que a minha vida
era uma vertigem. A educação das filhas, inteiramente a meu cargo; a escola com
aulas, atualização pedagógica, orientação de grupos de estágio e toda a gama de
projetos pedagógicos a acontecerem em simultâneo em diferentes espaços, em que
estava sempre na crista da onda, muito antes de a lei falar e impor que se
realizassem; a visita diária à dona Julieta – o que eu gostava daquela senhora!
– e aos meus pais, onde aproveitada para recolher as ervilhas ou favas que
pedira ao meu pai para descascar; fazer comer, com antecipação para que, à hora, as refeições estivessem prontas e passar a ferro a roupa, mantinham-me numa tal
atividade que eu nem precisava de ginásio. Sim, tempos houve em que sem carro,
fazia aqueles dois quilómetros entre a minha casa e a de meus pais a pé sempre
pendurada nuns saltos altos bonitos. Gosto de sapatos. E daí? Nada de
espalhafatoso, tipo Chanel, de salto bem alto. E de ouvir o vento assobiar
entre as folhas das árvores do caminho que andava. Adoro a sinfonia.
Ainda arranjava tempo para tricotar,
fazer renda e até bordar. Muitas foram as tardes de inverno passadas em casa da
Maria Albertina, agarrada às agulhas e a tagarelar com as amigas… O Tó
fazia-nos o chá e ria-se de nós com o P, marido da L. que contava as anedotas.
E a garotada a brincar junto de nós…
Obviamente que ninguém estica os
dias e se o tempo faltava roubava horas ao sono. Deitava-me todos os dias
quando Deus queria e levantava-me impreterivelmente à seis da manhã, pois
começava a trabalhar às oito e nunca me dispensei ao ritual de saborear o leite
e a torrada do pequeno-almoço comodamente sentada, seguido do banho matinal e
da maquilhagem que só não faço nos dias de praia.
Se o dia-a-dia já não era fácil,
imagine-se quando fui estudar para Lisboa. As horas de sono diminuíram
drasticamente e a minha casa quase parecia que tinha entrado num sistema de
autogestão, mas não. Eu, é que tive muitas noites em que me entendi uma hora ou
duas na cama só para esticar os ossos, uma ou outra em que tomei banho e mudei
de roupa sem mesmo me deitar, poupando o trabalho de arrumar o quarto. Também
aconteceu dormir no sofá. Sentava-me a fazer alguma coisa e acordava de manhã
toda torcida e sem ter realizado aquilo a que me propunha. Eu e o sofá, ainda
hoje não nos entendemos bem. Se estou cansada, mal me sento, é “tiro e queda” e
depois acordo possuída por uma raiva surda de nem ter descansado devidamente,
nem ter feito nada aproveitável.
Quem vive sozinho tem hábitos
incríveis e eu claro está, não sou exceção. Adorava estudar deitada cama,
evitava a dor de costas. Levava os apontamentos lia, relia, escrevinhava o que
me apetecia e quando me dispunha a dormir, atirava os cadernos ao ar e gostava
de os ouvir cair no chão. “Lá vai o … e dizia o nome do professor de quem os
havia tomado – por ares e ventos!” E adormecia na paz do Senhor. O despertador
tocava impreterivelmente às seis da manhã.
Em Lisboa tinha uma colega, muito
mais velha do que eu, a E. Talvez tivesse a idade que tenho hoje, mas nem
faço ideia. Era velha, parecia-me, tal como hoje parecerei a quem está por
volta dos quarenta anos. Licenciada em Educação Física e a trabalhar com Airton
Senna, tal como o marido, especializava-se também em Supervisão Educativa. Era
uma mulher de espírito aberto, simpática, de riso fácil e talvez por isso
entendemo-nos depressa. Ela gostava de mim e eu gostava dela. Não sei o que lhe
terá acontecido. Acabei perdendo o contacto. Sei que a filha vivia nesse tempo
com o irmão de um amigo meu, cantor de profissão, mas sempre que estou com esse
amigo sinto um certo pudor de perguntar “que é feito da E. que era mãe
daquela outra I. que viveu ou vive com o teu irmão J.?” Meu Deus, isto
soa-me como se fosse a maior alcoviteira a devassar a vida de alguém que nem
sequer conheço. Por isso nunca perguntei, mas tenho de pensar numa forma
simpática de fazê-lo, porque gostaria muito de ter notícias daquela senhora.
Por altura das frequências o caos
era total. Eu tentava não faltar às aulas porque aprendia de ouvido, com
facilidade e era rápida a compilar apontamentos cheios de esquemas e chavetas,
com cores diferentes. Isso facilitava-me a vida, não só a mim como a todos os
que gostavam daquela forma de síntese. Mas as frequências exigiam mais
preparação. Um dia em que cheguei a Lisboa com cara de quem já não via cama há
algum tempo, por alturas da frequência de Administração, a E. interpelou-me “Que aconteceu? Estás tão mal encarada. Estás doente” E eu, do fundo
das minhas olheiras que chegavam às orelhas, respondi “deitei-me com o
Chiavenato, estou desfeita” (teórico das teorias de gestão e administração).
Dispenso-me aos comentários jocosos da minha amiga E. A partir daí, mal
chegava a E. perguntava “Isabel, com quem te deitaste ontem?” E eu entrava
no jogo e disseram-se muitas tolices cuja finalidade era desanuviar e rir. E
conseguimos.
Pois bem E., lá onde
estiveres, fica a saber que na quinta-feira passada Ian Mcewan lançou um novo
romance, Mel, de seu nome e esta tua amiga, fiel ao gosto de ler as primeiras
edições, livre de doutas opiniões de entendidos e desentendidos (o que por norma quase nunca consegue), foi a correr
comprá-lo. Na verdade não tão a correr como isso, porque só sexta-feira o
conseguiu.
Desde então deita-se com ele
todas as noites e mal escorrega pelos lençóis, aconchegam-se e adormecem
profundamente, coladinhos um ao outro... Nem uma linha lida, nem força para o atirar ao ar. O
que fazem os anos… já nada é como dantes…
Ah! Também já não me aguento em
cima daqueles sapatos que faziam corar as tuas sapatilhas…
Esse Chiavenato era cá um chato!... Também me chateou bastante, mas... nunca dormi com ele... Credo!
ResponderEliminarCada qual tem o que merece... :))
EliminarAcho muito bem que não troques o meu amigo Sidoninho por um calhamaço destes.
Beijinhos "pós" dois