Aconteceu há alguns anos. Foi na
primeira noite de Natal que passei sozinha com a filha mais nova. Quem tem a
filha mais velha casada com marido de famílias radicadas longe, está sujeita à
circunstância de ano sim, ano não, ficar sozinha com a outra.
Nesse ano, arquitetara a ideia de
voltar à Missa do Galo, soubera que o Padre Carlos recuperara do último AVC e queria
ouvi-lo cantar. Quem não canta, encanta-se com a voz dos outros. Ele fora meu
professor anos a fio e trabalháramos juntos na JEC. Cantava muito bem. Gostava
de ouvi-lo. Como era bonita aquela canção ”bom dia nada custa…" (acho que é por isso que cumprimento toda a gente). Teria de convencer a Zara a
acompanhar-me…
Eu fora à cabeleireira na manhã
do dia vinte e quatro. Fui à Lina, cabeleireira que dispunha de um salão
situado junto da escola aonde trabalhava. Era o hábito, só sabia caminhar para
aquele lado. “Só sei estacionar o carro no pátio da prisão” – brincava eu
referindo-me ao Largo Rainha Santa Isabel.
Ao chegar, reparei que esquecera a
maçã para comer a meio da manhã e, antes de entrar no salão da cabeleireira,
atravessei a rua e fui à mercearia da Alice. Ela estava lá, a dona Amélia.
Amélia tal como minha mãe. Uma velhinha muito magra e sumida de anos e solidão.
Queixava-se disso mesmo, de solidão. Ia passar a noite só, não tinha família.
“Dá-me licença que pague a maçã, antes de a senhora ser atendida?” Que sim, que
pagasse e eu saí em passo de corrida, com o coração a ordenar-me que convidasse
a dona Amélia para jantar connosco e a inventar desculpas para não o fazer. “Também
não vou levar a minha mãe” – a falta de elevador do prédio não permitia elevar
a cadeira de rodas até ao segundo andar; possivelmente a P. virá buscá-la – P. era
minha amiga, colega de trabalho e proprietária do pequeno apartamento onde
morava; quero ir à Missa do Galo e o convite impedirá isso; e só conhecia a
dona Amélia de vista; e tantas razões inventei que não a convidei.
A Zara chegou, as horas passaram
e depois do jantar fomos à Missa do Galo. Havia pouquíssima gente, estava um
frio atroz e o padre Carlos… o padre Carlos mal falava, como poderia cantar? E,
no fim, a Zara: “não voltas a querer trazer-me à Missa do Galo, pois não?”
“Melhor fora ter convidado a dona Amélia para jantar connosco… “ comentei e
contei-lhe o encontro dessa manhã, na loja da Alice – “Pois era. Nós não
apanharíamos frio e a velhota ficaria feliz” respondeu a Zara, mas já não havia
retorno.
Os dias passaram e quando a Carma
retomou o serviço perguntei-lhe pela dona Amélia : “A P. levou-a para jantar na
Noite de Natal?” – que não - “ah! mas a
senhora não sabe? A dona Amélia morreu poucos dias depois do Natal". Que notícia! E eu que sabia tão
bem o que era a solidão, fiquei sofrida, por sabê-la só no último Natal.
Segunda-feira, uma semana antes
do Natal, à janela da cozinha, tendo por fundo a mancha verde do jardim da vizinha
a que só a buganvília ainda com algumas flores cor-de-rosa, empresta cor e
manchas escuras, via chover. Pensava que, possivelmente, aquele jardim se fosse
meu não mostraria aquela profusão desordenada de folhagem, mas que era
gratificante para os olhos e para a alma mergulhar naquele verde imenso. Olhava
através da vidraça a chuva que caía decididamente oblíqua. Gosto de ver chover.
Estava tão feliz, que nem sentia a presença física da vidraça.
E lembrei-me da dona Amélia…
Acontece-me inesperadamente em
cada Natal, desde que a ouvi falar de solidão.
A minha 1ªvidita, creio...
ResponderEliminarSaudações poéticas!
E pode ler meus poemas de Natal em
http://vieiracalado-poesia.blogspot.com
Ou em lagospt com acesso directo.
Olá, Vieira Calado. Seja bem vindo!
EliminarJá espreitei o seu Blog e gostei. Prometo fazer uma visita mais prolongada.
Hoje, ainda me sinto muito melancólico, não irei comentar, nem sequer mencionar a "Ladainha dos póstumos Natais"...
ResponderEliminarA nostalgia também me ataca depois do evento... Há sempre um pouco de mim por preencher... Uma ausência que me dói sem saber onde... Bem me critico dizendo-me que não posso pedir de mais à vida, mas isso não me impede de estar triste. Há de passar.
EliminarDavid Mourão-Ferreira, pois!