“A mãezinha tinha os pés
apertados” - disse o meu irmão olhando a fotografia. “Pudera! - confessou a
minha mãe - Comprara os sapatos um número abaixo”.
Aquele tiro no escuro, dado pelo meu irmão, de olhos fechados, tinha acabado de acertar no alvo. Na verdade, a conclusão não tinha tanto mérito, como à primeira vista possa parecer; comprar os sapatos um número abaixo da medida devida era um hábito conhecido de minha mãe, no afã de conseguir ficar com os pés mais elegantes. Haverá mulher que não deseje ter os pés pequenos? A minha mãe nunca conseguiu o intento, mas que se esforçou, é um facto.
Aquele tiro no escuro, dado pelo meu irmão, de olhos fechados, tinha acabado de acertar no alvo. Na verdade, a conclusão não tinha tanto mérito, como à primeira vista possa parecer; comprar os sapatos um número abaixo da medida devida era um hábito conhecido de minha mãe, no afã de conseguir ficar com os pés mais elegantes. Haverá mulher que não deseje ter os pés pequenos? A minha mãe nunca conseguiu o intento, mas que se esforçou, é um facto.
A partir de então fomos imparáveis nos comentários jocosos. Aos pés apertados de minha mãe, juntámos o nó à banda da gravata de meu pai; o chapéu, que não parecendo dele, só poderia ser emprestado; a falta do chapéu-de-chuva para fazer riscos na areia (hábito igualmente conhecido de meu pai); o seu ar sério… “Parece mesmo o “chabanca”!
“Chabanca” fora o epíteto que meu irmão apusera a um dos tios, homem muito sisudo, nada dado a tiradas humorísticas. Ainda hoje me pergunto porquê, pois não sei o que é ser “chabanca”, nem tampouco me parece que o termo exista. Chibanca seria uma ferramenta, uma picareta, agora “chabanca”, realmente, só poderia ser aquele meu tio…
Tanto a minha mãe como o meu pai aguentaram estoicamente a nossa irreverência, não riam, não entravam no jogo, como de costume, mas também nunca se zangaram.
Existiam várias fotos iguais a esta. Nenhuma emoldurada. Aliás, em casa, não havia qualquer foto emoldurada, estavam todas guardadas mesmo as que se exibiam em molduras. Vá lá saber-se porquê… Talvez mercê do gosto minimalista de minha mãe.
Em mil novecentos e noventa e sete, o meu pai faleceu, um ano antes falecera meu irmão, e, cinco anos depois, em dois mil e dois, já com oitenta e quatro anos, a minha mãe decidiu ir para um lar de idosos. Abordou-me nesse sentido, pretendendo que eu fizesse as devidas diligências “Pois temos pena! - respondi – se quer ir para um lar terá de tratar disso sozinha; há quarto para si em minha casa, não a vou pôr em lar nenhum” “em tua casa não se ouve barulho e eu ficaria lá sozinha sem ter que fazer, enquanto trabalhas”. E a conversa ficou por aqui.
Pensando eu que o assunto estava arrumado, continuei a visitar todos os dias minha mãe, depois da escola, tal como já fazia. Como ficava em caminho, passava primeiro por casa de D. Julieta, que também vivia só e depois seguia, disponível para aquelas conversas, que algumas vezes nem ouvia, mas que tinham o mérito do afeto com que a fazia sentir viva e a mexer.
No fim do mês de Julho desse ano de dois mil e dois, minha mãe comunicou-me que, no mês seguinte, não iria comigo para S. Martinho do Porto. “Porquê?” Admirei-me. “Vou começar a integrar-me no Lar Emanuel, primeiro participando em atividades de dia e depois, se gostar, em regime de internamento.” Fiquei chocada, barafustei, mas ela foi inabalável.
O tempo cumpriu-se, com a indiferença habitual e a minha mãe, em meados de Setembro, entrou mesmo no Lar. Antes, entregara-me um envelope com fotografias: ”não quero que um dia a tua ex-cunhada se ria dos momentos importantes da minha vida, se não as quiseres, rasga-as, eu não sou capaz.” Abri o envelope e lá estavam todas as fotos. “Que tolice, mãe! Acha que o meu irmão não levou uma foto destas?” “Se a tua ex-cunhada (nunca a sua nora) já tem uma, não precisa de mais.”
Foi então que, apercebendo-me do valor estimativo daquela foto, me questionei porque seríamos, o meu irmão e eu, tão contundentes em relação à mesma.
Conclui que, sem consciência disso, sentíamos que aqueles não pareciam os nossos pais, porque a memória só nos permite regredir até aos seis anos de idade, excecionalmente até aos cinco, o que faz com que conservemos uma imagem familiar que percecionámos na idade da razão. Por ela, achamos estranhas as imagens anteriores e somos ainda levados a recusar o envelhecimento dos pais.
O registo fotográfico fora feito antes de nascermos. A fotografia não tinha qualquer correspondência com a imagem afetiva que meu irmão e eu tínhamos dos pais que, casados a vinte e cinco de Abril de mil novecentos e trinta e sete, se fizeram fotografar em Braga, no fim desse mês, em plena lua-de-mel.
Lua-de-mel?! Mas os pais casam-se? Dizem que sim, mas nós não vimos, esqueceram-se de nos convidar para a festa… Os pais têm sexo? Os pais não são aquelas pessoas assexuadas das quais nascemos por obra e graça do Divino Espírito Santo, tal e qual como aconteceu com o Menino Jesus?
O vestido granate com cravos bordados, perspetivando sem saber, outro Abril, de braço dado com o nó de gravata à banda e o chapéu às três pancadas, é o símbolo inabalável de um projeto de vida, que se cumpriu, longo no tempo e ainda mexe.
Pés pequenos e feminino têm um nexo historico civilizacional. Desde que o homem e a mulher inventaram o calçado...
ResponderEliminarPor outro lado, Salvador Dali tinha uma particular teoria sobre a relação entre predisposição criativa e sapatos apertados.
Excelente crónica. Parabéns e agradecimentos de leitor deliciado.
Muito obrigada pela generosidade e simpatia com que avalia os meus modestos textos.
EliminarE ainda bem... Bonito de saber.
ResponderEliminarMais uma foto antiga. Espero que tenhas gostado.
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