À distância de um ano repetia-se a
ceia da noite de S. Silvestre e eu fora, de novo, convidada. Como era costume
os amigos mais chegados levarem comer para diversificar o menu, eu informei, os
que iam de Leiria, de que levaria bacalhau com natas, para o jantar e as
passas, separadas em grupos de doze, para serem comidas nos últimos momentos da
noite.
Não acredito na tradição das
passas, tal como não creio em muitas outras coisas, mas cumpro o ritual porque
é importante para os outros. Como as passas sem nada desejar. Possivelmente é
por isso que sou feliz, como não tenho expectativas, tudo o que a vida me
proporciona é uma dádiva e a primeira de todas, que se vem repetindo
diariamente, é ver amanhecer.
No ano anterior, também levara
passas e sem saber se eram precisas, deixara-as ficar no saco, para só as
distribuir perto da meia-noite quando o dono da casa reconheceu que se
esquecera desse pormenor. “Eu trouxe” e os presentes suspenderam as lamúrias,
quando comecei a distribuir bouquet a
um, bouquet a outro.
Naquele ano, em que era convidada
pela segunda vez, eu quis obsequiar o anfitrião; mas que oferecer a um homem que
tem tudo e de que nem se conhecem os gostos? Pensei que se o presente não se
poderia impor pela qualidade, teria de impor-se pela originalidade. Assim,
decidi e comprei a prenda. Por saber que o senhor gostava de poesia, comprei
uma agenda poética, intemporal, daquelas que podem ser usadas em qualquer ano,
pois somos nós que escrevemos os dias e os meses.
Quando a ofereci ao anfitrião disse:
escolhi uma prenda para si. Trago o tempo, porque é coisa que ninguém tem, em
quantidade suficiente, para tudo o que quer realizar. Trago-o embrulhado em
poesia, para que seja mais doce e custe menos a viver, poderá geri-lo como bem entender. Entreguei o
embrulho, o senhor abriu e agradeceu.
O serão foi decorrendo, do meu
bacalhau sobraram para além dos tabuleiros, os laços em tons de verde, com que
os enfeitara.
O grupo era constituído por
pessoas simpatiquíssimas. Falou-se de poesia e ouve quem declamasse e
oferecesse rosas às senhoras, discutiu-se política, pretensamente solucionaram-se todos os
problemas do país, brincou-se e riu-se facilmente. Cumpriu-se o que restou da
noite com um sono curto, numa pensão que se situava perto e, no outro dia, após
o almoço, todos regressaram a suas casas.
Referi-o há dias e não
pude deixar de lembrar que, passado pouco mais de um ano, após aquela ceia
festiva, o homem, a quem eu brincando oferecera o tempo, morria de cancro.
Nos curtos meses de doença, que
antecederam a sua morte, vivi rezando para que não se lembrasse da brincadeira que,
imprevisivelmente, a vida transformara numa cruel ironia.
Ainda hoje, não consegui
racionalizar a dor que me provoca a dúvida: o meu gesto terá tornado ainda mais amargos os
últimos dias daquele homem?
Sem o saber, a Isabel ofereceu ao cavalheiro a única prenda que podia fazer sentido para quem tinha o tampo (mais) contado. Sem o poder adivinhar, aquela foi certamente a oferta mais significativa e bela que podia ter naquela noite. Uma homemagem à vida junto de quem dela se teria de separar em breve.
ResponderEliminarAs suas palavras são comoventes, são um bálsamo para a minha alma. Bem haja!
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